Perigos e prazeres
Um dos filhos de Lucia Berlin escreve na introdução a este volume de contos que a mãe levou uma vida inacreditável, feita de nomadismo, aventura, perigos e prazeres. E é bastante fácil acreditar nisso, de tal modo as histórias de Berlin dependem de um turbilhão de acontecimentos que as animam e de uma profusão de pormenores que as tornam densas e verdadeiras.
Tal como em “Manual Para Mulheres de Limpeza” (2015), a magistral antologia que resgatou Berlin (1936-2004) do esquecimento, os textos de “Anoitecer no Paraíso” são um permanente zumbido de movimentos, actividades, incidentes, vaivéns. As personagens não param quietas, sofrem de bicho-carpinteiro, querem estar onde não estão, ouvem jazz, discutem, cozinham, jogam bilhar, tomam drogas, educam os filhos, viajam, fogem a golpes de Estado latino-americanos, espalham veneno para os ratos, enganam os cônjuges. Berlin invoca algumas figuras tutelares, como Chaucer e as histórias que engendram histórias, Damon Runyon e a linguagem dos rufias, Brueghel e a exuberância do visível. O caos é um estado permanente. Quando alguém entra numa casa, por exemplo, encontra “pratos e gatos, frascos abertos, travessas de doce aguado, garrafas destapadas”, bem como “montes de roupas, sapatos, pilhas de revistas e jornais, secadores de camisolas, pneus”, e “uma janela de alcova mal iluminada, com persianas cor de açafrão manchadas de nicotina”, ou seja, um sítio vivido, desarrumado, uma “gloriosa e maravilhosa confusão” que, para Berlin, é sinónimo de vida.
A vivacidade de estilo de Lucia Berlin é o seu grande trunfo: as comparações fortes, os comentários inusitados, os finais abruptos, sem epifanias. Quem é que começa um conto perguntando: “Havia aviões a jacto nessa altura?” E quem é que escreve, depois de um diálogo, um parêntesis a dizer “Oh. Verdade.”, como se o narrador ou o autor se tivessem comovido com a fala de uma personagem? O grande problema desta nova escolha de histórias não tem que ver com a escrita mas com uma monotonia que se instala no meio da azáfama, sobretudo se a compararmos com a azáfama entusiasmante de “Manual Para Mulheres de Limpeza”. Berlin sabia perfeitamente fazer surgir acontecimentos no meio do nada, mas isso acontece de modo esporádico nestes contos, alguns dos quais parecem diários de dias nulos, excepto quando estão em causa factos terríveis (o desaparecimento de um bebé, uma tourada de morte onde quem morre é um espectador) ou tocantes (uma mulher tão desesperada que se recusa a descer do telhado, outra tão sozinha que vai ao cabeleireiro só para que alguém lhe toque).
Vale a pena, ainda assim, destacar algumas histórias, poucas. ‘Do pó para o pó’ conta o funeral de um motociclista, o choque dos colegas (que atiram os capacetes para o túmulo) e um ambiente de devoção quebrado por uns miúdos que admitem “coisas de que as pessoas simplesmente não falam”, coisas “como o facto de os funerais serem divertidos”. Em ‘Perdida no Louvre’, a protagonista, uma americana que sofreu algumas perdas pessoais, deambula por França, visita a aldeia que Proust usou como modelo de Combray, o cemitério de Père-Lachaise, e por fim vai ao Louvre, que atravessa com as mãos atrás das costas, “como imaginava que Henry James teria feito”, em busca do tempo perdido, tentando curar a melancolia com a beleza, ou a melancolia com a melancolia. E que triste é o conto-título, ‘Anoitecer no paraíso’, situado durante as filmagens de “A Noite de Iguana”, que triste é o sujeito que se apaixona por Ava Gardner, que se aproveita do estado alcoolizado da actriz, que descobre que o destino de todos os ideais é serem arrastados pelo chão. / Pedro Mexia
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia