Isto de estar vivo
Logo na primeira frase da primeira crónica publicada no jornal “Folha de S. Paulo”, em abril de 2017, Ricardo Araújo Pereira deixou, no seu habitual registo irónico e autodepreciativo, uma espécie de aviso: “Eu não tenho nada para dizer ao público brasileiro, mas não vale a pena o público brasileiro começar a sentir-se especial porque a verdade é que eu não tenho nada para dizer a ninguém.” Mentira, claro. Não apenas RAP tem muitas coisas para dizer a toda a gente, como sabe dizê-las de uma forma única, só sua, algures entre a ligeireza grave e a gravidade ligeira. Ao dirigir-se a leitores de outro país, com um contexto social, político e cultural necessariamente distinto daquele em que costuma mover-se, não cedeu à tentação de ‘abrasileirar’ a escrita, nem se afastou um milímetro dos seus temas, processos mentais e obsessões. Ainda bem. Abaixo do equador, o RAP surge-nos ligeiramente diferente, mais universal, menos português, mas com a mesma atenção a “isto de estar vivo” e a tudo o que nos torna humanos.
Na elasticidade da página e meia de texto, cabe tudo: questionamentos filosóficos e pequenas ficções, paródias e aforismos, piadas e memórias familiares, sarcasmos e embirrações. Seja qual for o objeto da crónica — do pecado à relação entre o amor e as batatas, das televendas aos vários tipos de silêncio, dos vícios tecnológicos à mania de dar nomes ingleses a tudo (“Espero que tenha ficado claro, por todos estes inputs, que eu dou um feedback muito negativo a este mindset”) —, oscilamos entre o riso e uma pontada de inquietação. Por baixo do manto diáfano do humor, a realidade torna-se ainda mais cortante. Vejam-se as referências à política brasileira, ainda antes do fenómeno Bolsonaro, mas já pressentindo a sua sombra. Sem surpresa, as melhores crónicas são as que abordam a matéria-prima do escritor: a linguagem, o uso das palavras, o poder do verbo. “Desfruto mais de descrever o que fiz do que de o ter feito. Acho o relato da vida mais interessante do que a própria vida. Gosto mais da palavra beijo do que de beijos. Enfim, quase sempre.” / José Mário Silva