Livros

Acaso e destino

Michelle Obama descreve o seu percurso pessoal com realismo e uma atenção aos pormenores algo literária <span class="creditofoto">foto Nathan Congleton/NBC/getty images</span>

Michelle Obama descreve o seu percurso pessoal com realismo e uma atenção aos pormenores algo literária foto Nathan Congleton/NBC/getty images

Longe da autoanulação de outras primeiras-damas, Michelle Obama escreveu um livro de memórias afirmativo, em que revela toda a sua maturidade e inteligência

TEXTO LUÍS M. FARIA

Quando Barack Obama começou a tornar-se notado como candidato a candidato à Presidência dos EUA, a primeira coisa em que reparámos logo, além da cor da pele (que muitos consideravam um obstáculo inultrapassável), foi a qualidade intelectual (graças à qual começámos a suspeitar que afinal talvez houvesse uma hipótese). Aquela inteligência calma, informada e percetiva, que não se exibia mas se notava em cada entrevista, era extremamente bem-vinda após oito anos da mediocridade trágica de George W. Bush. Como diz Michelle Obama neste livro, “o Barack era a pessoa certa para este momento na história, para um cargo que nunca seria fácil, mas que, devido à crise financeira, se tornara exponencialmente mais difícil. Eu andava a anunciar isso aos quatro ventos havia mais de ano e meio, por toda a América: o meu marido era calmo e preparado. A complexidade não o assustava. Tinha um cérebro capaz de analisar todas as complicações (...). Neste ponto, seríamos insensatos se não o elegêssemos.”

Após a eleição de Barack, houve gente preconceituosa que ficou menos chocada com a ideia dele na Casa Branca do que com a imagem da sua mulher. Ainda Michelle: “Eu tinha plena consciência de que seria medida por uma bitola diferente. Como era a única primeira-dama afro-americana de sempre a entrar na Casa Branca, era à partida ‘outra’ (...). Não me poderia dar ao luxo de me adaptar ao meu novo papel sem pressa, antes de ser julgada.” Equiparando-se ao marido em inteligência e equilíbrio, Michelle viu-se obrigada a uma vida que, sugere, ia contra o que ela teria preferido, mas que se justificou por permitir introduzir diversidade onde ela não existia. Parte desse legado, escusado será dizer, perdeu-se desde então, mas a perda deve ser temporária.

Não vamos aqui lembrar o catálogo de infâmias e rasquices que tombaram sobre o casal e se prolongaram durante oito anos inteiros. Digamos apenas que eles conseguiram atravessar esse período sem a mais pequena mancha na sua reputação. Barack pode ter mais apetência pela vida política, mas “Becoming — A Minha História” devolve-nos uma voz que é claramente a de outra pessoa. Longe da autoanulação de outras primeiras-damas ou dos clichés enjoativos de Hillary Clinton (incapaz de contar uma história que não desemboque num sermão), Michelle descreve o seu percurso com realismo e uma atenção algo literária aos pormenores. Conta os começos modestos, a família que a estimulava, a doença do pai, a sua própria motivação incessante, a metódica ascensão académica e profissional. Mas também assume limitações temperamentais — que, aliás, estima, por a terem ajudado a progredir. E evoca desejos de vários tipos: consumistas, sexuais e de ambição.

A certa altura entra em cena outro jovem jurista, um pouco mais velho e muito mais abstrato, que Michelle encontrou no escritório de advogados onde trabalhava. O contraste entre os dois parecia condenar a relação ao fracasso, mas depressa viram que se complementavam. Michelle jamais assume a intimação de um destino. À parte o esforço constante de dar sempre o seu melhor, nada a predispunha ao que quer que fosse, muito menos a um lugar na História. Ela fala da vida como uma coisa que se vai fazendo, sem omitir a importância do acaso ou os acidentes que vão pontuando a vida: as dificuldades em conceber, com um aborto pelo meio, e a opção pela fertilização artificial; as ausências de Barack por causa da política, que afetaram gravemente o relacionamento entre os dois e os levaram a procurar terapia; a perceção crescente, e angustiante, de que as duas filhas jamais poderiam ter uma adolescência normal...

No meio de tudo isso, o imperativo de ser exemplar, num papel que lhe coube redefinir quase de raiz. “Não existe um livro de instruções para as novas primeiras-damas dos Estados Unidos”, escreve Michelle. “Teoricamente não é um trabalho, e também não é um título governamental oficial. Não é remunerado e não tem um conjunto específico de obrigações. É uma estranha espécie de sidecar da Presidência...”

Mesmo sabendo que este tipo de livro costuma ter a ajuda de ghostwriters, é plausível que sejam de Michelle não apenas as histórias como muitas das expressões felizes que lá encontramos. Quanto às opiniões, são tipicamente maduras e moderadas. Só uma vez a autora admite um animus: quando diz não perdoar a Trump que a sua retórica incendiária contra Barack Obama tenha posto em risco as filhas do casal. Quem a poderá criticar?