A espiral de uma dor sem fim
Com “O Deslumbre de Cecilia Fluss” completou-se o ciclo iniciado por “O Luto de Elias Gro”, a que se seguiu “O Paraíso Segundo Lars D.”, um conjunto a que João Tordo chamou a “trilogia dos lugares sem nome”. O livro é uma aposta ganha pelo autor, que prometera uma viragem — não no estilo — mas na tonalidade narrativa, acentuada de livro em livro. Com efeito, a trilogia fecha-se sobre um “deslumbr(ant)e” substantivo, que não remete obrigatoriamente para o conceito de fascínio, antes para uma perturbação que ofusca o significado exato da sedução enquanto exercício de querer, dir-se-ia à revelia do narrador. Em pleno trânsito exploratório de personagens singulares, a verosimilhança mora indubitavelmente na memória dos afetos e na angústia de os reconhecer, desolados, no vórtice do quotidiano. São três romances, inteiros, autónomos, que também partilham nomes, pistas e trabalho de linguagem. São expressões paralelas de uma mesma ferida aberta que carreia consigo outras, consubstanciadas na nítida inquietação de uma perda, de uma falha, de um lapso simultâneo mas em modo de desencontro. Constante, latente, insidiosa e omnipresente, essa perda sem nome nem estatuto é o outro lado da vida, da sua potenciação em lugar algum e sem noção, sequer fossilizada, de temporalidade. Se, em “O Luto de Elias Gro” (2015), estamos no domínio do suspense na resolução de um mistério em que o indício é apenas uma vaga mas insustentável dor, em “O Paraíso Segundo Lars D.”, o paradoxo entre a tristeza de uma existência penosa e a fuga à solidão através do encontro conflui através da conquista da voz desaparecida, que outrem (no caso, a mulher de Lars D.) assume e expressa. Apenas por curiosidade, o manuscrito deixado para trás tem o mesmo título que o primeiro volume da trilogia.
São três romances que, apesar de — por determinação firme do autor a partir da sua génese — se constituírem em trilogia e terem títulos e nomes de personagens em trânsito, narrando histórias “independentes” sem uma cronologia a seguir, qualquer ordenação aleatória não interfere na especificidade, quer do seu todo quer da sua parte. Do enredo de “O Deslumbre de Cecilia Fluss” sobressai a voz de Matias, um adolescente de 14 anos com os problemas de adolescentes de 14 anos: a descoberta assombrosa do seu próprio corpo e a procura de uma pureza ascética que o protagonista encontra no budismo. Vive entre duas mulheres que o perturbam tanto quanto o ofuscam e refugia-se dessa asfixia na cabana do tio Elias, o outro lado do espelho. Mas eis que Cecilia, a irmã polarizadora dos sentidos contraditórios do seu equilíbrio instável, desaparece. Talvez apenas um “deslumbre”, talvez fatalmente mais. E neste ponto de viragem, a narrativa de João Tordo, vinda dos dois anteriores exercícios de escrita, torna-se cada vez mais confessional, mais e mais intimista, gradualmente mais inebriante de sentimentos díspares onde pontua a perda, mais do que a simples nostalgia de todos os tais “lugares sem nome”, pontos que, aparentemente indeléveis na geografia pessoal do narrador, desencadeiam dinâmicas de superação, após um lapso temporal entre a adolescência e uma vida adulta que se revelará tanto ou mais esvaída quanto o adolescente, dando lugar ao professor universitário, é obrigado, a partir de uma carta misteriosa, a regressar ao passado.
Concluirá, talvez, que nada tinha mudado, ou talvez não; talvez apenas revisite a espiral de uma dor sem fim, e assuma que a dor da(s) perda(s), o conceito de fascínio e fixação permanecem imutáveis, evitando-o como se o tempo e o modo não existissem além da demência do tio Elias, em que Matias se reconhece do mesmo lado do espelho, afinal. João Tordo admite, sem falsa modéstia, que a aventura da escrita lhe inspira medo, dúvida, angústias, mas também prazer, e a ‘adrenalina’ que o faz viver para ela. E que há, sobretudo, três autores cuja inspiração reconhece: Roberto Bolaño, José Saramago e Philip Roth. Neste ciclo tripartido torna-se evidente (depois de dito pelo próprio, claro) que vive o mesmo estado de espírito e a mesma qualidade da escrita inquieta das personagens “desubicadas” (sem pouso certo) à procura do seu destino, sem a mordacidade e a violência do chileno Roberto Bolaño, que substitui por uma suavidade na voz e na nostalgia da perda; que respira o modo de criar personagens e descrições em amálgama do português José Saramago, com óbvios segmentos narrativos e descritivos muito próximos e que intervêm uns nos outros sem delimitação clara; mas, sobretudo, é evidente a ‘impressão digital’ do americano Philip Roth nas tensões e nas dificuldades do narrador ao narrar, do(s) conflitos de alter ego(s), no desejo lancinante de reconhecimento mais do que autocompreensão, mas também na sua capacidade de resiliência e na partilha corajosa de uma metáfora travestida de realidade alternativa. Uma trilogia a não perder, comece-se por qualquer dos múltiplos rostos ou por qualquer dos nomes próprios escritos depois de “Luto” ou “Paraíso”. Sempre um “deslumbre”, é garantido. / Luísa Mellid-Franco