Estranhos encantos no Porto/Post/Doc
Quem passar esta semana pelas salas do Rivoli e do Passos Manuel encontrará uma competição internacional sem um eixo editorial nítido ou uma linha temática aparente, de tal forma divergem entre si os 14 filmes da secção principal do Porto/Post/Doc. Ausência de critério? Nada disso, bem pelo contrário: a sensação é de melting pot, mas nenhum dos que vimos se rege por seguir convenções, nenhum deixa de interrogar a abreviatura “Doc”. Há até — e talvez esta seja uma hipótese de aproximação — um apelo ao estranho e ao sensorial que podia servir de gancho comum a algumas obras, embora seja preferível tratar os eleitos separadamente: se este é um concurso com ‘14 snipers’ em que nem todos atingem o alvo, todos disparam de maneira diferente. “Donbass”, filme já trazido a estas páginas durante Cannes e aposta que o comité do Porto/Post/Doc aprecia mais que o autor destas linhas, destoa no lote? Sem dúvida: é o último trabalho do ucraniano de origem bielorrussa Sergei Loznitsa, cineasta experiente, multipremiado (ainda este ano, na Croisette).
E é um filme-mosaico, circense e caleidoscópico à sua medida, feito de várias situações que erguem uma teatralização macabra em torno daquela zona leste ucraniana colada (e constrangida) à Rússia, “território ocupado”, diz-nos logo Loznitsa para atalhar caminho. O tom da farsa resulta contudo desigual, desequilibrado, e o desconforto deixado ao espectador neste caso (por via de uma ambiguidade política que é a grande força do olhar do cineasta) não tem a intensidade de “Victory Day” e de “The Trial”, as duas outras obras das três que Loznitsa concluiu em 2018. Resumo: preferimo-lo definitivamente a documentar do que a ficcionar (e “Donbass” ficciona). Há quem tenha ouvido aqui ecos de Roy Andersson, o que se viu foi antes um ‘Iosseliani enjorcado’. “Putin’s Witnesses”, assinado por outro ucraniano, Vitaly Mansky, vale mais do que a mera curiosidade de ter captado os bastidores da primeira eleição de Putin em 2000 após a resignação voluntária à presidência de Ieltsin, no último dia de 1999. O filme retrabalha e reflete historicamente o footage e a candid camera do futuro todo-poderoso Presidente russo, num retrato sardónico e pessimista sobre a sua escalada e que tem sabor a teorias da conspiração.
O canadiano Peter Mettler, na sua busca incansável de perceções novas sobre o pulso do tempo, do planeta e da vida, correaliza com Emma Davie e a colaboração do filósofo David Abram um “Becoming Animal” noturno, sensualista, imersivo, num parque nacional do Wyoming pejado de criaturas — veja-se aqui uma meditação Homem/Natureza que recorda mas perde para o fabuloso “Grizzly Man”, de Herzog. Já “Fausto”, de outra canadiana, Andrea Bussmann, é prova do estranho encanto sentido neste Porto/Post/Doc, procurando lendas, narrativas, telepatias e prováveis pactos com o Diabo no estado mexicano de Oaxaca — reflexão sobre os colonialismos de ontem e de hoje. Atenção ao olhar paciente de outro filme noctívago, rodado em super-16mm pela suíça Nicole Vögele, “Closing Time”, e à observação dos movimentos de vida em torno daquele restaurante de Taipé, cidade que não dorme. De tanto seguirmos e nos habituarmos às personagens, nascem hipóteses de ficção de momentos banais do quotidiano em que aquela porventura jamais se insinuou. Mais intenso ainda é “Bisbee 17”, novo filme de Robert Greene (“Kate Plays Christine”), inquérito político sobre os 1300 mineiros de cobre grevistas, sobretudo mexicanos e europeus com inclinações socialistas, comunistas e anarquistas, deportados selvaticamente em 1917 daquela localidade do Arizona. Greene gasta seis capítulos a desafiar-nos: como encarnar pelo cinema um choque social de há cem anos que reverbera com violência nas relações laborais da América de hoje?
Mas o grande filme do ‘caldeirão’ deste festival — e merecedor do prémio máximo — tem aquela palavra no título e vem do Japão, “The Kamagasaki Cauldron War”. Custou cinco anos de trabalho a Leo Sato — e é um dos achados do ano! Também filmado em 16mm, passa-se num arrabalde de Osaca que atrai operários, prostitutas e gangsters desde a II Guerra Mundial e entrega-nos um retrato de uma comunidade que sentimos estar profundamente ancorada na sociedade nipónica. Sato filma com os habitantes de Kamagasaki histórias que são necessariamente deles, porventura até inventa um lastro de ficção quando um pote sagrado, talismã do clã Yakuza local, é roubado por um paupérrimo pai de família, e o que nos aguarda a partir daqui é uma catadupa de peripécias infinitas em que o drama está sempre a ceder à comédia e à sátira, tão infinitas como a generosidade que, pouco a pouco, se vai descobrindo existir entre as personagens — aquilo que, afinal, elas têm de mais precioso num ambiente hostil que aprendemos a partilhar. “Hamada”, outro filme de relevo rodado pelo galego Eloy Domínguez Serén num campo de refugiados com o povo sarauí (que aguarda há décadas pela independência) testemunha um humor e uma vitalidade nas relações humanas igualmente vibrantes. Mas os olhos ficaram no País do Sol Nascente, em Kamagasaki. / Francisco Ferreira