Cinema
A família-fantasma
© Expresso Impresa Publishing S.A.
A estreia nas salas de cinema portuguesas da Palma de Ouro de Cannes
Texto Vasco Baptista Marques
O nosso último encontro com Kore-eda não nos enchera as medidas. O filme que propiciou esse rendez-vous (“O Terceiro Assassinato”) era um thriller psicológico reminiscente do “Rashomon” de Kurosawa que, de modo laborioso, baralhava os pontos de vista sobre um mesmo facto (um homicídio). Não nos espanta que, após esse ensaio, Kore-eda regresse agora ao território que assegurou o seu reconhecimento: o melodrama familiar. E, embora pouco acrescente ao seu cinema em termos temáticos ou formais, a obra que o devolve ao seu género de eleição (“Shoplifters”, Palma de Ouro em Cannes 2018) será talvez a mais complexa da sua carreira.
A primeira coisa que nela se nota é uma diferença social: ao invés do que é hábito, a sua ação decorre, não entre a classe média, mas entre a classe baixa. Quem a representa? Uma família de cinco (um rapaz pré-adolescente, os pais, a tia e a avó) que se amontoa num casebre, vivendo à custa de trabalhos precários e dos furtos que pai e filho fazem nos supermercados locais. No fim de um desses roubos, ocorrerá o evento-chave da narrativa: o encontro do par com uma rapariga de cinco anos que, tendo sido abandonada durante a noite pelos pais, será levada pelo duo para a sua casa (onde descobrem que o corpo da criança está pejado de feridas…). Alguns dias depois — e para não incorrerem num crime de rapto —, os membros da família decidem devolver a rapariga à procedência, mas dão meia volta quando, ainda na rua, percebem a violência com que a mãe fala sobre ela.
Aqui arranca uma história de adoção ilegal, que parece centrar-se na harmoniosa integração da rapariga no seio da sua nova família. Para a descrever, Kore-eda seguirá uma vez mais na senda de Ozu, encenando sem ênfase uma série de cenas do quotidiano, onde a inclusão da criança no gang é sinalizada por via de pequenos episódios. Não será preciso esperar muito, porém, até que o cineasta comece, passo a passo, a decompor o quadro de felicidade que nos ofereceu, para expor a natureza artificial (e radicalmente criminal) de uma família onde ninguém é o que parece. E, ainda que seja quase impossível aflorar o resto da narrativa sem contar demais, podemos dizer que o que nela é magnífico é a maneira como Kore-eda cultiva a ambiguidade, pintando os adultos como figuras contraditórias (todos eles são, à vez, bons e maus), perante as quais não sabemos o que sentir.
Dir-se-á, talvez, que “Shoplifters” é uma obra mais calculista do que os anteriores melodramas de Kore-eda, dedicando-se sobretudo a frustrar as nossas expectativas. Mas se o cineasta passa aqui a vida a tirar-nos o tapete debaixo dos pés, ele nunca o faz ao jeito de um acrobata que estaria encarregado de provar o seu talento. Fá-lo, apenas, para introduzir camadas adicionais de complexidade no filme, ao ponto de o forçar a rebentar emocionalmente pelas costuras. É o que acontece naquelas sublimes cenas finais, onde — caídas já todas as máscaras — a memória afetiva das relações que entretanto foram desfeitas continua a ressoar, em surdina, nos gestos dos que as viveram. E basta o último gesto de uma rapariga que fita o horizonte em busca de uma família que em rigor nunca foi a sua, para perceber que, neste cinema, a mentira pode ser mais verdadeira do que a verdade.
A estreia nas salas de cinema portuguesas da Palma de Ouro de Cannes