Portugal em Viena
A edição do disco “À Portuguesa” pela Harmonia Mundi é o pretexto para uma digressão internacional da Orquestra Barroca Casa da Música sob a direção de Andreas Staier
Texto Jorge Calado
Ir a Viena para ouvir música barroca portuguesa ou à portuguesa não é para todos (os dias). Ao exportar a sua Orquestra Barroca para a capital austríaca, a Casa da Música arriscava ir a Sintra para vender queijadas... Não há no mundo outra metrópole onde haja mais ópera e música de concerto. Só a Wiener Staatsoper apresenta mais de 350 espetáculos por ano de cerca de 60 produções diferentes. Com uma capacidade de 1700 lugares, atinge uma média anual de ocupação que ultrapassa os 98%! E há ainda a Volksoper (Ópera Popular) e o Theater an der Wien (onde o “Fidelio” de Beethoven foi estreado, e que mantém uma programação regular). Num raio de 500 metros à volta da Ópera encontrei cinco lojas de discos com tudo o que imaginava e outrotanto que desconhecia, cheias de clientes. Com as suas múltiplas salas, as centenárias Musikverein (Associação de Música, que alberga o Concerto de Ano Novo) e a Konzerthaus são os dois focos da música de concerto. Pois foi na bela Mozart-Saal desta última que a Orquestra Barroca CM apresentou o seu programa “À Portuguesa”, sob a direção do insigne cravista e pianista alemão Andreas Staier.
Na raiz do concerto está um disco admirável de Concertos e Sonatas Ibéricas dos tempos em que havia trocas musicais entre as duas cortes. Um dos traços de união terá sido Domenico Scarlatti — o Escarlate do “Memorial do Convento”, de José Saramago —, que passou seis anos em Lisboa e mais tarde se juntou em Madrid à sua pupila, a Infanta Maria Bárbara (filha de Dom João V), quando esta casou com o Infante Don Fernando (filho de Filipe V), futuro Fernando VI de Espanha. (Scarlatti morreu em Madrid em 1757, aos 71 anos.) A ideia de gravar um disco com a Orquestra Barroca CM partiu do próprio Staier, que aceitou imediatamente a inclusão no programa de dois concertos para cravo de Carlos Seixas (1704-42). Daqui à conceção de um programa de matriz ibérica foi um passo. Houve sugestões de parte a parte, e Scarlatti (que muito admirou o seu jovem colega português) seria um must. Não só compôs mais de 500 sonatas durante o seu período ibérico como Staier é um dos seus mais virtuosísticos intérpretes. A influência da música de origem portuguesa na música inglesa — através de Scarlatti — é conhecida, o que levou à escolha de obras de William Corbett (1680-1748) e de Charles Avison (1709-70). É, aliás, o “Concerto ‘Alla Portugesa’ [sic] para cravo e orquestra em Si bemol maior”, do primeiro, que dá o nome ao disco. O golpe de génio foi o desejo de Staier em fazer uma transcrição para cravos e orquestra de cordas do famoso Quintettino de Luigi Boccherini (1743-1805) sobre a “música noturna das estradas de Madrid”. (Luciano Berio compusera em 1975 um arranjo do último andamento em tempo de marcha.) O projeto seria desenvolvido e completado por Andreas Staier durante uma residência no Wissenschaftskolleg (Instituto de Estudos Avançados) de Berlim em 2017. A propósito: as sugestivas notas do livreto do CD são de Fernando Miguel Jalôto, cravista da Orquestra Barroca CM.
Hoje não há lançamento de disco importante que não seja acompanhado de uma itinerância internacional. “À Portuguesa” não é exceção. Depois de Dijon, Ludwigshafen, Queluz e Porto (onde o programa barroco foi apresentado em diálogo com obras contemporâneas tocadas pelo Remix Ensemble), chegou a vez de Viena. (Seguir-se-ão outros destinos em 2019.) Tive a oportunidade de assistir aos concertos em Queluz e em Viena, e além da diferença numérica (a Sala do Trono em Queluz senta duas centenas e meia de pessoas, enquanto a Mozart-Saal tem uma capacidade superior a 700 lugares) notei uma diferença acústica abissal. Em Viena, a meio da sala (praticamente cheia), ouvi instrumentos e notas que em Queluz, sentado na primeira fila, não consegui distinguir. O balanço sonoro da sala vienense é ideal para este tipo de música de câmara com uma quinzena de instrumentistas.
O carácter ‘português’ do “Concerto para cravo” de Corbett — uma das suas ‘Bizzarie universali’ — deve ser apreciado com uma pitada de sal (tal como acontece com a designação ‘sueco’ ou ‘dinamarquês’ na “Ouverture des nations anciens et modernes”, de Georg Philipp Telemann). Há também uma bizarria de Corbett à Moscovita, e não consta que ele tenha visitado a Rússia... O padrão de três andamentos é o habitual: dois andamentos vivos separados por um lento (Allegro, Largo, Allegro). Deu logo para apreciar a vitalidade e sonoridade radiantes da Orquestra e do solista-diretor. Para nós, portugueses, o interesse maior centrava-se nos dois concertos para cravo de Carlos Seixas, um dos pioneiros deste género. Morreu jovem, como Mozart, não saiu de Portugal mas demonstrou estar a par dos estilos italiano, alemão e francês. No andamento lento (Adagio) do concerto em Sol menor, Seixas surpreende-nos com um belo solo de violino (magnífico nas mãos do concertino Huw Daniel). O concerto em Lá maior, mais curto e vertiginoso, aproxima-o de Scarlatti, tanto mais que Staier favorece os andamentos rápidos.
O grande paladino de Scarlatti em Inglaterra foi Thomas Roseingrave, compositor e organista irlandês, que em 1738/39 publicou em Londres vários volumes de Sonatas do compositor napolitano dedicadas a Dom João V (“Essercizi per gravicembalo” e “42 Suites de pièces pour le clavecin”). Quando ouviu pela primeira vez (1709) Scarlatti ao cravo em Veneza, Roseingrave pensou que havia “dez centenas de demónios a tocar o instrumento”. Em Queluz e Lisboa, Staier interpretou, com arrepiante facilidade, cinco Sonatas de Scarlatti, todas num único andamento. (O disco da Harmonia Mundi inclui apenas três.) Uma vez composta, a música barroca pertencia a todos. Charles Avison, compositor e organista inglês baseado em Newcastle, pegou nas sonatas de Scarlatti publicadas por Roseingrave e, alisando as arestas e moderando a velocidade, construiu com elas uma série de “12 Concerti Grossi after Scarlatti” (1744) ao estilo quase clássico. O projeto “À Portuguesa” compreende o “Concerto Grosso nº 5”.
A ideia de gravar um disco com a Orquestra Barroca CM partiu do próprio Staier, que aceitou imediatamente a inclusão no programa de dois concertos para cravo de Carlos Seixas. Daqui à conceção de um programa de matriz ibérica foi um passo
Cresci embalado pelo célebre minuete de Luigi Boccherini — o terceiro andamento do “Quinteto em Mi maior” (1771) —, uma das peças favoritas dos meus pais, que mais tarde viria a encontrar em filmes como “Abbott e Costello Fantasmas” (1946) ou “O Quinteto Era de Cordas” (1955), com Alec Guinness. Boccherini — que também era um notável violoncelista — viveu mais de quatro décadas em Espanha, ao serviço de vários amos, vindo a morrer em Madrid em 1805. A rematar os concertos (e disco) tivemos o sensacional Quintettino de “Musica notturna delle strade di Madrid” op. 30 nº 6 (ca. 1780), arranjado por Andreas Staier para cravos e orquestra de cordas. São cinco andamentos de imaginação esfusiante, onde até os violoncelos são dedilhados ao colo, com palheta, como se fossem violas ou guitarras! Boccherini propôs-se representar aqui a música que perpassava pelas ruas de Madrid, desde as Avé-Marias até ao toque da retirada. Ouvem-se os sinos das igrejas, o rufar dos tambores dos soldados, os pregões, o minuete dos cegos, o tilintar das campainhas, a algazarra dos rufiões a caminho das tabernas, e a marcha final que impõe o recolher — um crescendo (rossiniano?) que passa por nós e se desvanece à distância. (Claude Debussy haveria de usar efeito semelhante em ‘Fêtes’, o segundo número dos “Trois Nocturnes”, compostos em 1899.) Gostaria de lembrar que o tema foi usado em “Master and Commander — O Lado Longínquo do Mundo” (2003), de Peter Weir, com Russell Crowe, e fez disparar as vendas dos discos da música de Boccherini...
Esta “Musica notturna” é simultaneamente hipnotizante e entusiasmante. Vi os músicos da Orquestra Barroca CM a sorrir enquanto tocavam, e no final o público a reagir, eletrificado, com calorosos aplausos. Que se seguiria, em extra, nos dois concertos? Mais uma portuguesice: o nº 6 da “Völker-Ouverture” (Suite Internacional) em Si bemol maior, de Telemann, precisamente intitulado “Les portugais”... Sei que entretanto os músicos da Orquestra Barroca CM (3/4 dos quais são portugueses) regressaram a casa, mas continua em Viena, no Kunsthistorisches Museum (até 13 de janeiro) a espantosa exposição “Bruegel”, comemorativa dos 450 anos da morte de Pieter Bruegel, O Velho.
O Expresso viajou para Viena a convite da Casa da Música