Entrevista
Nuno Artur Silva

“Na cultura pop sou uma nota de rodapé”

Voltou ao estatuto de freelancer e sente-se feliz por ter recuperado o tempo. Numa primeira conversa longa depois da saída polémica da administração da RTP, o fundador das Produções Fictícias conta que está pronto para voltar à cena e continuar a produzir a cultura que se anda a fazer

POR ana soromenho (texto) e ana baião (FOTOGRAFIAS)

É

um democrata que se assume como um homem de esquerda. Acredita num Estado que trabalhe para o serviço público e para o bem comum. Foi isto que o motivou a aceitar o convite para integrar a administração da RTP, e durante os três anos em que lá esteve foi o que tentou fazer. Depois saiu por causa da polémica que causou, pelo facto de continuar acionista das Produções Fictícias, a empresa que fundou, precisamente há 25 anos. Não tem nenhum ressentimento. Olha para o que se passou como se estivesse a assistir a um programa cómico. O humor foi a pedra de toque da empresa de guionistas e foi um acaso: “Na minha vida fui fazendo escolhas. A dado momento, percebi exatamente que tipo de escritor queria ser, queria poder escrever para diferentes géneros.” Escreveu adaptações de teatro, sketches de humor, guiões de cinema, poesia, textos para séries e para banda desenhada... “No fundo, o que sou é um artista de variedades”, diz ele.

Nuno Artur Silva tinha onze anos quando aconteceu o 25 de Abril. Cresceu numa época em que se estava a começar tudo de novo e tornou-se adulto quando começou a haver espaço para a cultura pop. É marcado por isto, por esta ideia de que o tempo do qual faz parte é volátil e efémero.

O que anda a fazer?

Pela primeira vez, em 25 anos, estou literalmente a fazer o que me apetece. Neste momento não quero ser diretor de nada. Voltei ao meu estado de freelancer, o que é ótimo, e ao meu lugar natural, que é estar no escritório a desenvolver projetos de escrita e a trabalhar com equipas em coisas que me entusiasmam, e ando a escrever as crónicas para o “Diário de Notícias”. Há três anos que não escrevia e no início sentia-me o gordo do ginásio. Tinha perdido a facilidade de escrita e demorava o dobro do tempo. Nestes últimos meses estive também ocupado a desenvolver um projeto para a Fundação Gulbenkian, que foi muito recompensador.

Esse projeto, “O Gosto dos Outros”, foi delineado a partir das escolhas de várias pessoas em áreas diferentes, que foram desafiadas a partilhar as coisas que as motivam. Ainda tem o prazer da descoberta?

Não há nada mais estimulante do que descobrir um autor ou um compositor que não se conhecia e de quem, afinal, gostamos. É como fazer uma nova amizade. É das melhores coisas que há e acredito que pode sempre acontecer em qualquer idade. É verdade que vamos perdendo disponibilidade para experimentar e ver coisas novas, deixamos de ter tempo. Isso condiciona, arrisca-se menos... Também por isso, obrigo-me a ver coisas que desconfio que não vou gostar. Também posso dizer que tenho a sorte de poder trabalhar com uma data de gente muito mais nova, que tem muito entusiasmo e me contamina: “Já viste isto?” Trabalhar todos os dias com um grupo de pessoas criativas é altamente motivador.

Consegue escolher uma só palavra que o defina profissionalmente?

Autor. Não me sinto escritor, como aqueles que escrevem romances, também não me sinto dramaturgo nem argumentista de cinema. O que gosto é fazer um bocadinho disto tudo. Na realidade sou um agente provocador mas o ponto de partida é sempre a autoria. Existe uma expressão inglesa de que gosto muito: “to play”. Não existe uma palavra tão exata na nossa língua. Significa simultaneamente tocar, brincar, jogar... Aquela sensação de criar só para um momento e fazer coisas irrepetíveis.

Nessa tarefa, de fazer em conjunto, qual é a sua melhor parte?

Penso que ao longo do tempo tenho tido boas ideias, sei desenvolvê-las em conjunto e reunir equipas para as concretizar.

Os psiquiatras dizem que o humor é o pequeno triunfo maníaco sobre a depressão. Eu estou sempre a olhar para o lado cómico”

É um fazedor.

Por circunstâncias fui sendo produtor, empresário, programador, apresentador... Mas o núcleo duro é sempre a criatividade. No fundo, sou um artista de variedades.

As Produções Fictícias celebram 25 anos. Criar a empresa foi uma das suas melhores ideias?

Posso dizer que foi uma coisa muito boa. Fizemos alguns programas que deixaram a sua pequenina marca na cultura popular do país. Todo o trabalho que fizemos com o Herman José, o “Contra-Informação”, o jornal “Inimigo Público”, todos os projetos de stand-up comedy... De repente estou a lembrar-me de tanta coisa! Foram tantos os atores e os humoristas que se estrearam connosco. Acho piada dizer que, de alguma maneira, fomos a Motown portuguesa dos cómicos dos anos 90.

Quando fundou a agência de guionistas por que razão escolheu fazer do humor o centro da produção?

Não escolhi, foi o humor que me escolheu. Pensei primeiro em escrever para séries e cinema. Só que no cinema português os realizadores fazem tudo, não há espaço para argumentistas, e na televisão, o único espaço que havia era escrever humor. Quando comecei, no início dos anos 90, só existia a RTP. Não tinha nenhum contacto, ia mandando textos, até que um dia consegui uma entrevista com José Nuno Martins. Já tinha escrito com o Rui Cardoso Martins umas peças de teatro nos tempos da universidade, chegámos a criar um grupo de teatro, fazíamos peças cómicas, e levei esses textos ao José Nuno Martins, que os entregou ao José Pedro Gomes e ao Miguel Guilherme. Eles estavam no programa do Joaquim Letria e precisavam de criativos. Correu bem. Entretanto, o Herman, que estava a iniciar o programa “Parabéns”, viu e achou graça: “Queres escrever para mim? Já não aguento escrever nem mais uma linha, estou farto!” Escrevi o número inicial do programa à máquina, cinco minutos de stand-up comedy, e mandei por fax. O Herman era um dos meus heróis, e foi surreal começar a vê-lo dizer o meu texto.

Qual é o seu tipo de humor? É aquele que ri ou o que faz piadas?

Talvez seja mais dos que fazem piadas.

Depois de tantos anos a escrever e a trabalhar com humoristas profissionais, o que é que ainda lhe provoca aquela vontade de ‘chorar a rir’?

O inesperado. O reconhecimento de uma situação que tem qualquer coisa de alterada. Rimos porque há uma alteração da regra e reconhecemos a regra detrás da alteração.

É a desconstrução que torna a coisa absurda?

Pode ser uma boa forma de explicar. Os psiquiatras dizem que o humor é o pequeno triunfo maníaco sobre a depressão. Eu estou sempre a olhar para o lado cómico. O Diniz Machado tem um texto com o qual me identifico, chama-se “Qual é o lado mais cómico disto?” Dizia ele que em qualquer momento da vida, mesmo os mais trágicos, via sempre o cómico, qualquer coisa que lhe dava vontade de rir. Como se o humor fosse uma pequenina redenção ou uma pequenina consolação para o facto de sabermos que vamos todos morrer.

<span class="arranque">Autor</span> Nuno Artur Silva não tem dúvidas: “Na realidade sou um agente provocador, mas o ponto de partida é sempre a autoria”

Autor Nuno Artur Silva não tem dúvidas: “Na realidade sou um agente provocador, mas o ponto de partida é sempre a autoria”

Ver o cómico do trágico é um tipo de humor, mas há outros. O que referia há pouco, sobre a desconstrução de uma regra, não é uma linha diferente?

Claro que há muitas variáveis. Mas há sempre uma coisa em comum, uma leveza que retira o peso do mundo. O riso é uma coisa física, um pequeno desconjuntar do que estava organizado. Isso causa um prazer físico e liberta uma pequenina felicidade. Fazer rir é muito bom, exatamente por isso. Como se estivéssemos a dar alegria ao outro.

Porque há tão poucas mulheres a escrever comédia?

É curioso, mas é verdade. E não se passa só aqui. Se fizermos a lista dos maiores comediantes americanos do século XX são quase todos homens desde o Chaplin, os irmãos Marx, ao Buster Keaten, o Woody Allen, é o mesmo com os ingleses.

O núcleo duro das Produções é masculino.

Já não. Quando começámos éramos um grupo de amigos. Depois, quando se tornou menos clube de amigos e mais empresa, deixou de fazer sentido.

O ponto de partida foi esse? Grupo de rapazes, todos bons amigos?

É verdade. Éramos colegas de liceu e de faculdade e juntámo-nos pelo gosto que tínhamos em escrever. Isso criou uma matriz de um certo tipo de cumplicidade. Imagino que não fosse fácil para uma rapariga entrar na nossa rotina de rapazes. Provavelmente nenhum de nós tinha essa postura de Clube do Bolinha, onde “menina não entra”, e a verdade é que passado pouco tempo, em 1994, quando convidei o Nuno Markl, que já é de outra geração, ele me indicou uma colega sua, a Maria João Cruz, porque ela escrevia bem sobre humor. Foi a primeira mulher das Produções.

O humor feminino é diferente do masculino?

Hoje em dia não sinto grande diferença. Uma das pessoas que neste momento melhor escrevem sobre futebol, que é um terreno tradicionalmente masculino, é uma mulher. Chama-se Joana Marques.

O que alimenta o seu processo criativo, o que é que o estimula?

A curiosidade. Trabalhar com pessoas muito mais novas é uma coisa que me estimula imenso. Pelas Produções Fictícias já passaram várias gerações.

Como começou este percurso?

Quando comecei nas áreas artísticas e culturais, uma das primeiras coisas que fiz foi integrar um grupo de teatro onde eram todos muito mais velhos do que eu. Na altura teria uns 17 anos e eles já estavam nos trintas. Andava no Liceu Pedro Nunes e era um grupo de teatro anarquista que tinha um espaço na rua Pedro Álvares Cabral, onde também funcionava o jornal “A Batalha”. Ainda conheci todos os anarcossindicalistas. Houve um momento em que lhes disse que não tinha talento para ser ator nem cenógrafo e sugeria que dividíssemos as tarefas. Acusaram-me de desvio pequeno-burguês e disseram que eu ia acabar a minha vida no Parque Mayer se continuasse assim, e na verdade não se enganaram muito. No fundo, o que sou é um artista de variedades. Quando saí dali percebi que tinha sido ótimo ter sido ator e ter aprendido umas coisas sobre cenografia e teatro, mas vi que não era para mim. Depois liguei-me ao grupo da literatura e comecei a andar com um grupo de poetas à volta do Al Berto e do Hermínio Monteiro, da Assírio&Alvim. Com ele organizei uns recitais de poesia no Jardim Botânico à noite, ainda era o mais novo do grupo. Mais tarde fundei as Produções Fictícias com pessoas da minha idade, José de Pina, Manuel Viterbo, Rui Cardoso Martins, andávamos todos na casa dos trinta.

Cresceram por causa do trabalho para o Herman José.

Éramos conhecidos como os rapazes que escreviam para o Herman. Ninguém conhecia o nome Produções Fictícias.

Por circunstâncias fui sendo produtor, empresário, programador, apresentador... Mas o núcleo duro é sempre a criatividade. No fundo, sou um artista de variedades”

Aquela frase “ó meus amigos, não havia necessidade” que escreveram para a personagem do Diácono Remédios tornou-se viral ainda antes de haver esta ideia de coisa viral. Foi sua?

Não. Mas a história é engraçada. Tínhamos feito para o “Herman Enciclopédia”, o sketch da ‘Última Ceia’, que eu e o Markl tínhamos escrito, por volta de 1995, para rádio. Era uma reportagem à porta de um grande acontecimento, como eram as reportagens da SIC daquele tempo, do tipo [dá ênfase à voz] “estamos aqui, fomos os primeiros a chegar, estamos a ver os apóstolos a chegar: ‘Judas, há rumores de uma possível traição, quer comentar?’” Depois eles iam para dentro, batiam com os garfos e gritavam “beija, beija”. Esta era a versão que passou na Rádio Comercial, em que o Herman gravou sozinho fazendo as vozes todas, e houve uns protestos. Passado um tempo propus ao Herman fazer em televisão. Ele decidiu suavizá-lo porque sabia que ia dar problemas, mas antes de ir para o ar houve uma promoção em que ele aparecia vestido de Cristo e rebenta a grande escandaleira. De repente está toda a gente indignada: “Como é que é possível um serviço público que ofende a religião principal deste país?” Na altura era diretor de programas o Joaquim Furtado que decidiu ir para a frente. Houve muita polémica, e o grupo mais violento foi o da Rádio Renascença. Passado um tempo, já estávamos a desenvolver o “Herman Enciclopédia”, ele vem ter comigo: “Vê lá esta frase que a minha mãe me disse a propósito daquela confusão: ‘Ó filho, tu és um bom artista, não havia necessidade.’ Era giro fazer aqui qualquer coisa.” Como é um criativo excecional apanhou logo a frase. Nós imaginámos uma personagem que interrompe, tipo o provedor do programa, que cada vez que há qualquer coisa mal, interrompe: ‘Ó meus amigos, não havia necessidade.’ Fizemos isto e propus ao Herman, que fosse o Reverente Remédios, por causa da Rádio Renascença, ele não se quis chatear, e foi o Pina que sugeriu Diácono Remédios.

A religião ainda é tabu?

Hoje já não. Estou a falar em estados laicos, claro.

Agora o que ofende?

O futebol. É o que provoca reações mais violentas. As vezes em que fizemos humor e tivemos ameaças físicas teve sempre que ver com os clubes. Mas a maior hipocrisia vem de áreas económicas. Se fazemos humor sobre determinadas instituições, arriscamos a não ter patrocinadores. É por isso que os programas humorísticos têm tanta dificuldade em arranjar patrocínios. Fazer humor ou é inócuo ou torna-se muito complicado.

E os políticos?

Em democracia tornou-se politicamente correto aceitar o humor. Nunca nenhum Presidente dos Estados Unidos foi tão gozado e caricaturado como Trump. E o que é que isso lhe faz? Nada. Nem o belisca.

A popularidade que teve com esses programas com um certo humor, mais sofisticado, é ainda possível conseguir em televisão?

Não é possível porque já ninguém vê a mesma coisa. Naquele tempo, se uma pessoa chegasse ao trabalho e perguntasse, “viram aquilo ontem” toda a gente sabia do que se estava a falar. Agora não acontece porque cada um está a ver a sua coisa. A não ser que tenha sido um jogo de futebol ou um acontecimento excecional.

A partir de onde é que se trabalha para conquistar públicos?

Substituindo a difusão em massa pela difusão viral. A única maneira é produzir coisas que vão passando e vão sendo partilhadas por ficheiro. De alguma maneira, em Portugal isto já tinha começado com a geração dos Gato Fedorento. Foi aí que os sketches começaram a ser partilhados em computador. Os humoristas estão sempre a trabalhar no meio mais atual. Há pouco falávamos na história do cinema do século XX, nessa altura estavam todos no cinema. Depois, nos anos 60, mudaram-se para a televisão. Naturalmente, com o aparecimento da net e da difusão dos vídeos, é onde estão agora. Tal como na música, uma das características da produção de programas de humor, é estar sempre na linha da frente da tecnologia com o meio mais recente.

Para empresas como as Produções Fictícias é uma fase complicada?

Sempre nos adaptámos ao tempo, estamos numa fase de reinvenção. Agora o que se faz é o humor de cidadão. De repente qualquer pessoa cria piadas online, faz montagem, e depois manda gifs e snapchats. Portanto, assistimos a um tempo onde os humoristas têm de criar de uma forma muito mais espontânea. O próprio Herman José, veteraníssimo, a coisa mais divertida que anda a fazer são as brincadeiras com o Snapchat. Também se fazem as piadinhas Twitter, muito rápidas e com o mínimo de carateres. Na verdade é o que está a acontecer com a sociedade em geral. Aquela, onde toda a gente queria ir para casa ver um programa, acabou. Um dos problemas da democracia é que deixa de haver um sítio onde toda a gente se encontra. Quando começámos, os canais generalistas tinham um bocadinho a função do Rossio, da praça pública, o local onde toda a gente se encontra. Agora, vivemos em bolhas. Pensamos que uma coisa que está a acontecer ali está a ser seguida por toda a gente, mas não está. Fora daquela bolha não existe.

Antes de passar pela administração da RTP, afirmou numa entrevista que uma das grandes derrotas do pós-25 de Abril era a política do audiovisual.

O que queria dizer era que o que faz a força da cultura de um país, ou de uma comunidade, é a capacidade de criar a sua mitologia. As grandes culturas, são culturas capazes de criar mitologia. Romances, filmes, poemas que se estabelecem como referências mundiais e permanecem no imaginário coletivo. A mitologia contemporânea há muito tempo que se expande através do audiovisual e é muito forte. Em Portugal, até 1974, tínhamos uma televisão única que não alimentava esta mitologia. Era uma estação ligeira de variedades. Não havia ficção portuguesa nem documentários, a não ser que fosse uma coisa propagandística.

E continuou anacrónica?

Só em 1992, 18 anos depois da revolução, apareceram os canais privados. Mas, antes disso, houve uma coisa determinante que condicionou toda a política do audiovisual. Foi quando, a RTP encomendou uma telenovela chamada “Gabriela, Cravo e Canela”, em 1977. Fez bem, mas a partir daí o prime-time da RTP passou a ser ocupado por telenovelas brasileiras. Com a guerra de audiências, a SIC e a TVI também começaram praticamente só a produzir telenovelas e assim chegamos aos nossos dias onde a produção televisiva de ficção se resume a isso.

Mas o audiovisual não passa apenas pela televisão.

Precisamente. Porém, o que acontece é que no cinema temos um sistema de financiamento absurdo. Todos os anos é uma lotaria, e só uns poucos é que filmam. O resto, pode ficar anos à espera que o júri decida atribuir um subsídio para produção. E assim perdemos gerações de cineastas. Num país pequeno, com uma escala pequena e com uma língua que, apesar de ser falada no Brasil, não é percebida, trabalhamos para um pequeno universo onde o cinema português e a televisão estão de costas voltadas. No cinema acham que a televisão é supermercado, e na televisão acham que os realizadores são uns intelectuais e só fazem filmes para eles. Este divórcio é dramático para o desenvolvimento de uma indústria no sector. Pessoalmente não tenho nada contra as novelas nem contra o cinema de autor. O que acho muito mau é que não haja nada entre uma coisa e outra. É dramático e gera, precisamente, um enorme vazio que faz com que a televisão seja um deserto do ponto de vista da criação ou da divulgação, da tal mitologia. Tudo se alterava se fossem criadas condições para haver linhas de financiamento mais diversificadas, e que não dependam só dos júris. Mas também nada disto se faz sem uma televisão pública a sério que invista em séries, filmes, documentários.

Foi esse o sistema que quis implementar na RTP?

Foi. Mas houve uma série de condições. Pela primeira vez a televisão pública ficou dependente do Ministério da Cultura e, ainda mais importante, fomos a primeira administração da RTP nomeada por um conselho geral independente e não pelo Governo. É um grande passo.

Os humoristas têm de criar de uma forma muito mais espontânea. O próprio Herman José, veteraníssimo, a coisa mais divertida que anda a fazer são as brincadeiras com o Snapchat”

Quando aceitou o convite para integrar a administração da RTP, função que acumulou com a assessoria criativa de direção de programas, teve de sacrificar a produção da empresa para a estação que sempre foi o seu principal comprador.

A realidade é que, quando surgiu o convite, pela primeira vez em muitos anos não estávamos a fazer nada com a RTP. A administração anterior à minha tinha cortado com as Produções Fictícias.

Por que razão?

Questões políticas, seguramente. Aconteceu no Governo de Passos Coelho e não se percebia exatamente porquê. Mas tivemos a certeza de que era uma medida política contra nós, quando o próprio Herman José me disse que, também pela primeira vez em 20 anos, lhe tinham imposto como condição para continuar no programa, deixar de trabalhar connosco. Isto aconteceu, foi um facto. Portanto, fiz uma leitura. Decidimos fazer outras coisas e reduzimos a nossa produção. Nessa altura, fui fazer uma coisa que nunca tinha feito na vida, um espetáculo no São Luiz em que eu próprio fazia um misto de stand-up comedy com conferência, com o António Jorge Gonçalves e música dos Dead Combo. Estava-me a divertir imenso e tinha orientada a minha vida para os próximos tempos, não pensava em televisão, quando a administração da RTP caiu. Comecei a acompanhar com muito interesse. Era vice-presidente dos produtores de televisão, estava muito curioso para saber quem iria para lá, quando recebo um telefonema do Gonçalo Reis. A grande novidade em relação ao que era habitual foi que só fomos aprovados quando apresentámos um plano estratégico desenhado pelos três elementos da administração, sendo que a parte dos conteúdos coube-me a mim. Fiz aquilo em que acreditava, que a RTP não deveria ter como primeiro objetivo a luta de audiências e a conquista de mercado, mas ser diferente e fazer o que os outros não podem fazer.

A questão que fez com que depois saísse teve que ver com o facto de não ter deixado de ser acionista na empresa e de haver incompatibilidade.

Quando aceitei, como é obvio, foi-me exigido que deixasse de ser administrador das minhas empresas e de trabalhar em conteúdos. Coisa que fiz. Nessa altura fui à Assembleia da República e foi aprovado que poderia continuar como acionista. Depois foi-me perguntado numa entrevista se eu considerava a hipótese de vender. Respondi: “Se houver uma boa proposta, considero.” Mais nada. Um ano depois, o tema volta a aparecer. Quando negociámos a saída do antigo diretor e ele dá uma entrevista a dizer que é uma vergonha o que se passa na RTP. Só quando se começa a falar em recondução do meu lugar, em final de 2017, é que o tema volta a ser falado. A ideia é que iríamos ser reconduzidos, e cheguei a fazer o projeto. Mas em janeiro, cirurgicamente, sai uma notícia a dizer que tínhamos aprovado duas séries das Produções Fictícias. Expliquei que as séries não eram das Produções, mas dos autores que trabalhavam connosco. Tinham sido escritas há uns anos, e os autores, sabendo que não as podiam apresentar agora à RTP, foram ter com outros produtores para que pudessem apresentar as suas obras. Foram aprovadas pela direção de programas, mas a comissão de trabalhadores pede um esclarecimento. “Há muito gente aqui que vem das Produções.” Perguntei: “Definam lá o que é ser das Produções Fictícias?” É que connosco já trabalharam centenas de pessoas. Já trabalhei com toda a gente que está neste meio.

Mas foi o mesmo conselho geral independente que decidiu que não poderia ser reconduzido.

Mediante o que se estava a passar concluíram que, afinal, não poderia continuar acionista da empresa. Ainda ponderei. Depois percebi que havia um desconforto, e eu próprio disse que saía.

Sem ressentimentos?

Nenhuns. Foi uma coisa completamente instrumental. Eu sabia onde me ia meter. É um lugar duro. Fiz o que fiz e concretizei o que queria. Hoje, quando olho para o que se passou, só vejo o lado da comédia de toda a cena. Faz parte do passado, estou muito longe de tudo isso. Foram três anos, o trabalho está lá, a estratégia e os resultados também. Saí no dia 31 de maio e acompanhei até ao fim o Festival da Eurovisão, que foi um projeto que nasceu na área dos conteúdos e que correu muito bem. Fizemos uma política de investir em ficção, produzimos oito séries por ano. Produzimos documentários e transformámos a informação na RTP3. O jornalismo de serviço público não é melhor do que o outro. O jornalismo ou é bom ou é mau. Acontece que o serviço público pode dar-se a um luxo que os privados, para terem audiências, não podem. Numa estação de serviço público deve abrir a notícia mais importante e não a mais popular. É nos alinhamentos e não nos conteúdos que se pode fazer diferente. Para mim, a coisa mais importante que fizemos foi abrir o arquivo da RTP à comunidade. Defendo militantemente que o acesso ao arquivo seja gratuito, e que qualquer cidadão, esteja onde estiver, possa ter acesso. É a história de 60 anos de um país, e a RTP não é do Estado nem da administração. É dos cidadãos.

Essa consciência do bem comum vem do tempo em que era professor de liceu? Pergunto porque referiu que ter sido professor na escola pública foi um das experiências fundamentais da sua vida.

Foi muito importante, é verdade. Mas essa noção de estar a trabalhar para o bem comum vem, sobretudo, do meu pai. Era um homem discreto mas muito dedicado aos outros. Entendia a política como uma questão de cidadania. O meu pai era soarista e o meu tio comunista. Lembro-me de ouvir as discussões entre eles que na altura eram as discussões que haviam em Portugal no pós-25 de Abril. Eu era anarca. Fui educado pelo benfiquismo do meu pai e o catolicismo da minha mãe, tornei-me ateu. Cresci naquela pequena burguesia lisboeta dos anos 70, cheguei ao 25 de Abril com onze anos e apanhei com um país que começava ali.

Faz parte da história?

Não! Temos de nos pôr no nosso lugar. Na nossa cultura pop sou uma nota de rodapé. Posso dizer que à minha maneira contribuí com uma pequenina coisa para a cultura popular de um tempo. E não estou apenas a falar do passado, porque espero continuar a contribuir. Faço parte daquela geração que chegou à idade adulta nos anos 80. Há 30 anos que trabalho sobre cultura pop. Faço parte do espírito do tempo. Aquilo que mais prezo é a extraordinária diversidade do mundo, o mundo da cultura, em que criamos peças extraordinárias. O que sinto é que tenho um certo gosto em ver que algumas coisas que fui fazendo, deixaram pequenas marcas, e alguns sinais que, com o tempo, provavelmente se irão desvanecer.