Bauhaus
a casa do pecado

Nascida sob o impulso modernista num país devastado pela I Guerra Mundial, a mais mítica das escolas de artes alguma vez criadas, à qual estão associados nomes essenciais da arquitetura ou do design do século XX — como Mies van der Rohe, Gropius, Kandinsky, Paul Klee, Marcel Breuer ou Herbert Bayer —, faz 100 anos, e a Alemanha fará de 2019 o ano de todas as celebrações

TEXTOs VALDEMAR CRUZ NA ALEMANHA

Na rua só havia o caixão. Tocavam os sinos da igreja e fechavam-se todas as portas da rua. Sinal de respeito, a reclamar silêncio. Na rua só havia a passagem da caravana cansada. Um caixão. Uma carreta para transportar o caixão. Três quilómetros do sanatório até à igreja. Homens cadavéricos a dirigir a padiola. Um cadáver corroído pela silicose. O cortejo simbolizava a vitória da grande inimiga de quem descia às profundezas da mina de carvão. A rua era a rua. Só. A rua não verbalizava a dor, a miséria, o descalabro das condições de trabalho naquela que foi, nos arredores do Porto e até ao seu encerramento, em 1972, uma das principais minas de carvão portuguesas. A memória daquele quadro torna-se mais chocante, neste outono de 2018, à chegada ao complexo das minas de carvão de Zollverein, em Essen, uma cidade alemã no estado de Renânia do Norte-Vestefália, na região do Ruhr.

Nenhum olhar marcado pelas imagens daquele passado português está preparado para Zollverein. Zollverein está para lá de todos os olhares e concentra na sua absoluta beleza a dimensão total da possibilidade da imprevisível diferença. Todo o silêncio é subversivo numa mina de carvão, lugar expectável do feio, do horror. Pela exploração de um trabalho duro como poucos. Pela negritude entranhada na imensidão dos recantos visíveis. Pelo espectro cravado no silêncio escondido de pulmões condenados a uma morte certa, dolosa, lenta. Encontrar o belo numa mina de carvão poderá constituir o paradoxo maior. E, no entanto, é essa a inescapável perplexidade de quem chega àquela que foi, em 1986, a última das 291 minas de Essen a fechar nos últimos 40 anos. Só ali, onde tantas vidas se consumiram com o pó embrenhado nos pulmões, perderam-se 50 mil empregos. 500 mil em toda a região do Ruhr. Concebido pelos arquitetos Fritz Schupp e Martin Kremmer entre 1926 e 1932, o complexo mineiro, onde existe agora um museu, lojas e restaurantes, teve uma intervenção a cargo de Rem Koolhaas e foi, em 2001, declarado Património da Humanidade pela UNESCO.

<span class="arranque">Estilo </span>O complexo mineiro de Zollverein (1926-1932), em Essen, é, pela sua modernidade e arrojo estético, um dos grandes exemplos do estilo Bauhaus

Estilo O complexo mineiro de Zollverein (1926-1932), em Essen, é, pela sua modernidade e arrojo estético, um dos grandes exemplos do estilo Bauhaus

Jochen Tack / Stiftung Zollverein

Percebe-se o brilho no olhar de Álvaro Siza ao ser confrontado com imagens de uma mina cuja existência desconhecia. Verbaliza numa única palavra o turbilhão de sentimentos suscitados pela força estética, pela assombrosa modernidade daquela que é, por vezes, considerada a mais bela mina de carvão do mundo: “Fantástica.” “Isto é muito radical”, acrescenta. Estabelece de imediato uma comparação com o trabalho de Walter Gropius na fábrica de formas de sapatos Tagus, em Alfeld, perto de Hanôver. “O pórtico do Gropius tem muito a ver com isto. É lindíssimo. A geometria, a estrutura em ferro, é tudo fantástico.”

É a Bauhaus em todo o seu esplendor. A mais mítica das escolas de artes alguma vez criadas, à qual estão associados nomes essenciais da arte, da arquitetura ou do design do século XX — como Mies van der Rohe, Walter Gropius, Wassily Kandinsky, Paul Klee, Marcel Breuer, Josef Albers, Herbert Bayer, Johannes Itten ou Oskar Schlemmer —, celebrará 100 anos ao longo de todo o próximo ano. A partir de 16 de janeiro, com o grande festival de abertura programado para Berlim, a Alemanha tentará recuperar a essência de uma escola que, na sua radicalidade, no seu experimentalismo multifacetado, no seu internacionalismo, acabou por ser mais do que apenas um estado de espírito para se assumir como proposta de construção de um novo tipo de sociedade.

A partir da Alemanha e com escalas em locais tão diversos como Barcelona, Chicago, Moscovo, Telavive ou Santiago do Chile, a Bauhaus revolucionou o design gráfico e de mobiliário, construiu novas linguagens para a arquitetura e deixou um legado ainda hoje reverenciado pela ousadia nele contido. Algumas das criações saídas dos grandes mestres da escola tornaram-se icónicas, como o Pavilhão de Barcelona ou a Torre Seagram, em Nova Iorque, de Mies van der Rohe, a fábrica Tagus e o edifício da Bauhaus em Dessau, de Walter Gropius, os novos conceitos de design gráfico de Herbert Bayer, a cadeira Wassily, de Marcel Breuer, o bule de chá de Marianne Brandt, a cadeira Barcelona, de Mies van der Rohe, ou o candeeiro de mesa de Wilhelm Wagenfeld e Carl Jacob Jucker.

A Bauhaus proclama uma nova ideia de escola. Gropius propõe: “Pintores, arquitetos e escultores, regressemos ao artesanato. A ‘arte como profissão’ não existe”

Se é verdade que não era, nos anos 20, o único movimento de vanguarda, acabou, no entanto, por encarnar em absoluto essa ideia de rosto de um caminho novo e nunca antes trilhado. Desde logo por ter conseguido agregar as diferentes tendências vanguardistas e por “fazê-las aparecerem unidas, como se de um movimento homogéneo se tratasse”, diz Mateo Kries, responsável pelo alemão Vitra Design Museum, concebido por Frank Gehry e dedicado à investigação e apresentação do design do passado e do presente.

Ao propor um design sensível em que a forma segue a função e os ornamentos e artifícios decorativos são erradicados, numa violenta reação aos maneirismos e decorativismos arquitetónicos, a Bauhaus assume-se como uma escola de artes e ofícios, por oposição ao elitismo contido nas velhas academias de arte europeias. Ao libertar-se de todas as amarras historicistas, a nova escola, como fica claro no manifesto lançado em abril de 1919 por Walter Gropius, pretende esbater fronteiras e assume uma relação intrínseca entre arte e indústria, para o que se torna fundamental uma integração da arte e da arquitetura com os ofícios, valorizados nos diversos ateliês.

<span class="arranque">Design</span> O candeeiro criado por Wilhelm Wagenfeld e Carl Jacob Jucker tornou-se um dos ícones maiores da Bauhaus

Design O candeeiro criado por Wilhelm Wagenfeld e Carl Jacob Jucker tornou-se um dos ícones maiores da Bauhaus

Há muito de mitológico no modo como se olha hoje para este projeto visionário e ainda sedutor aos olhos contemporâneos, nascido na pequena Weimar, por onde tinham passeado antes grandes vultos da cultura europeia, como Martinho Lutero, Bach, Goethe, Schiller ou Liszt. E, no entanto, a mais lendária das instituições artísticas do século passado só consegue agora ser recordada por os acasos da História não terem deixado o seu projeto para sempre enterrado numa trincheira francesa durante a I Guerra Mundial.

Apesar de estar há algum tempo a ser sondado para se encarregar de uma escola de artes em Weimar, Walter Gropius não deixava de ser um soldado ao serviço do exército alemão. A frente de batalha era o seu espaço mais comum naqueles anos de brasa. Por lá andava em junho de 1918, na zona de Reims, a nordeste de Paris. Participava num combate quando um edifício colapsa e desaba sobre ele e todos os seus camaradas de armas. Único sobrevivente, fica soterrado três dias. É resgatado apenas quando uma patrulha, ao passar, ouve os seus gritos.

É este homem corajoso, várias vezes condecorado na guerra, com ideias muito firmes e com um passado já relevante no mundo da arquitetura, que vai dar os passos decisivos para a construção de um movimento que, nos escombros de uma guerra devastadora, pretendia substituir o velho mundo por um novo tipo de impulsos, carregados de esperança e uma elevada dose de utopia.

Marcada pelo interesse de se transformar numa escola em que o design funcionasse de uma forma interdisciplinar e com uma perspetiva internacio­nal, com o contributo de professores de várias nacionalidades e influências, a começar desde logo pelos construtivistas russos, a Bauhaus proclama uma nova ideia de escola, uma nova ideia de arte e artistas, uma nova ideia de sociedade. No manifesto então lançado, Gropius propõe: “Arquitetos, escultores e pintores, regressemos todos ao artesanato, pois a ‘arte como profissão’ é algo que não existe.” Defende a não existência de qualquer diferença “entre artista e artesão”, uma vez que o artista seria “uma elevação do artesão, a graça divina” que “em raros momentos de luz”, situados para lá da sua vontade, “faz florescer obras de arte”. Porém, e isso era essencial para Gropius, a base do “saber fazer” seria indispensável para todos os artistas, uma vez que, escreve, “aí se encontra a fonte da criação artística”. E chega ao culminar da sua tese quando apela para que todos juntos se libertem das barreiras artificiais entre artesãos e artistas e concebam e criem “o edifício do futuro, que será tudo numa única forma: arquitetura, escultura e pintura, que um dia se elevará para o céu a partir dos milhões de mãos de artesãos como símbolo cristalino de uma nova crença que há de vir”.

Aquela vontade de agitar consciências e trilhar outros desafios tinha já um caminho longo atrás de si, embora ninguém o soubesse ainda. Weimar fora já agitada e reagira em estado de choque às exposições de arte moderna organizadas em 1903 pelo conde Harry Kessler numa cidade conservadora onde, no ano anterior, o arquiteto e designer belga Henry van de Velde fundara uma escola de artes e ofícios. Instala-a no edifício por ele próprio desenhado e que, muitos anos mais tarde, acaba por receber a Bauhaus. O mesmo Henry van de Velde irá, em 1915, recomendar Walter Gropius como seu sucessor. Ambos eram membros da Deutsch Werkbund, uma associação de artistas, designers, arquitetos e industriais que defendia a cooperação entre arte, indústria e artesãos.

<span class="arranque">Arrojo</span> O Pavilhão de Barcelona (1929), de Mies van der Rohe, construído para a Exposição Internacional, é, para Eduardo Souto de Moura, o edifício mais radical do século XX

Arrojo O Pavilhão de Barcelona (1929), de Mies van der Rohe, construído para a Exposição Internacional, é, para Eduardo Souto de Moura, o edifício mais radical do século XX

ullstein bild via Getty Images

Não por acaso, na Bauhaus — cujo significado literal é “casa da construção”, numa inversão de Hausbau (“construção da casa”) —, os estudantes eram, a partir dos cursos preliminares, ensinados a trabalhar com materiais, numa base educacional inovadora assente em métodos experimentais.

Falhou rotundamente. E esse será um dos pecados da escola, na opinião de Eduardo Souto de Moura. Sustenta ser indiscutível que, “na história da arte do século XX, alguns dos melhores pertencem à Bauhaus, na pintura, na escultura, na arquitetura ou no design”. Porém, e isso intriga-o, percebe-se que “não deve ter sido uma grande escola em termos de produtividade”. Deteta ali um hiato, uma incapacidade de transmissão de discurso. Ou então, admite, “seria um discurso cheio de contradições”.

Quando colocado hoje perante a questão da importância da Bauhaus, Eduardo Souto de Moura entende-a como “uma visão romântica. Já ninguém quer fundar escolas como aquela”, cuja influência direta não se terá feito sentir em Portugal. O modernismo, explica, “vem sempre de Itália, depois muito do Brasil e de Paris, que era para onde iam estudar os pintores e os arquitetos”. José Fernando Gonçalves, também arquiteto, doutorado pela Universidade de Barcelona, defende que “não tínhamos uma indústria e não existia a tensão construtiva a que se assistiu na Europa”. Para muitos arquitetos, acrescenta, “era mais fácil, nos anos 1920/30, a aproximação ao estilo Art Déco do que ao radicalismo de Le Corbusier, que não compreendiam. Isso permite-lhes ter um uso das casas completamente tradicional, embora com uma imagem contemporânea. É o que sucede com os edifícios de Cassiano Branco nas Avenidas Novas, em Lisboa, ou com as primeiras casas de Arménio Losa na Avenida da Boavista, no Porto”.

Não obstante a crítica, os primeiros anos da Bauhaus são feéricos. Há no ar um espírito de busca, de partida para um desconhecido alimentado pelo desejo de descoberta, de mudança a partir de um novo começo. Gropius, para constituir a Bauhaus, fundira duas escolas antes separadas: a Academia de Belas-Artes e a Escola de Artes e Ofícios. Quem ensina nos ateliês, da cerâmica ao têxtil, da pintura à escultura, da madeira aos metais, é chamado “mestre” e não “professor”.

A primeira grande exposição da Bauhaus recebe visitantes de toda a Europa. É um fim de semana alucinante, com performances surpreendentes, como o “Triadic Ballet”, criado por Oskar Schlemmer.

Parecerá blasfémia estabelecer uma relação entre a Bauhaus modernista e a barbárie nazi. E, no entanto, ela existiu

Em meados de outubro passado foi possível reviver o imaginário desse ballet quase mítico durante uma convenção organizada em Weimar, com a presença de dezenas de profissionais das mais diversas áreas e oriundos de quase todos os continentes. Destinada a preparar o centenário da Bauhaus, incluiu a visita a várias cidades marcadas pela presença de obras concebidas por professores ou alunos da escola. Neste ano de 2018, o que os olhos vêm continua a suscitar uma intensa sensação de estranheza. Ivan Liska, ex-bailarino, coreógrafo, diretor do Bayerisches Junior Ballet, recorda que o “Triadic Ballet” não terá constituído um escândalo “nem teve qualquer influência na evolução da dança moderna”, mas era o inesperado. Schlemmer, prossegue, “colocou a figura humana no meio da sua arte e em relação com o espaço. Era tudo muito visionário”. Era mais importante a música, o espaço, as cores, “do que dançar uma história”, conclui Liska.

Outro decisivo fator de estranheza para a conservadora sociedade de Weimar passava pelo comportamento dos alunos e alguns dos mestres da Bauhaus. Desde logo Johannes Itten, pintor expressionista e designer suíço, professor e também um dos grandes teóricos da cor associados à Bauhaus, com quem Gropius tinha grandes discussões a propósito da sua diletante defesa da arte pela arte.

Durante uma visita às primeiras instalações da escola, agora com departamentos da Universidade de Weimar e onde é possível ver uma fiel reprodução do escritório de Gropius, Thomas, canadiano e um dos estudantes preparados para contar ao detalhe tudo o que se vivia naquele espaço, contava com algum humor como Itten, seguidor da filosofia neozoroástrica Mazdaznan, se passeava coberto por longas túnicas e praticava uma rigorosa alimentação vegetariana. Com um tremendo poder de influência sobre os discípulos, tinha atrás de si um pequeno exército de novos vegetarianos. O resultado, contava o jovem guia, “é que, como era tudo intuitivo, não tinham qualquer conhecimento de como seguir uma saudável alimentação vegetariana. Acabavam por ter um péssimo e até por vezes assustador aspeto”. Naquela época tornou-se voz comum, quando uma mãe pretendia repreender ou apavorar um filho, dizer-lhe que “ou se portava bem ou ia para a Bauhaus”.

Marianne Brandt concebeu em 1924 este bule de chá, muito simples nas formas — é a beleza Bauhaus em todo o seu esplendor

Marianne Brandt concebeu em 1924 este bule de chá, muito simples nas formas — é a beleza Bauhaus em todo o seu esplendor

É nesse contexto que se verifica a necessidade de Gropius manter os estudantes cada vez mais unidos. O principal recurso são as festas, algumas delas lendárias. Por tudo e por nada organizava-se uma festa na Bauhaus, à qual acorriam alunos e mestres vestidos com as roupas mais extravagantes. Oskar Schlemmer encarregava-se dos cenários. A população não deixava de notar e de anotar, sobretudo, a entusiástica participação das mulheres. Às vezes atingiam-se extremos, como quando os alunos foram acusados de se banharem nus no rio Ilm. A sociedade que tão chocada se mostrava era a mesma que aceitava, com a mais plácida das indiferenças, os banhos no rio de um Goethe completamente nu. Aqueles comportamentos, verdadeiros ou não, em nada diferiam do que se passava à época em vários sectores da sociedade alemã, mas eram associados à degenerada vivência de Berlim. Os honestos e honrados cidadãos de Weimar não podiam tolerar aquela vida pecaminosa.

Era notória a existência de um ambiente que começava a minar os apoios da escola. Ainda assim, Gropius persiste em proclamar um modernismo que, afinal, descobrira muito antes, em Berlim, no ateliê de Peter Behrens, com quem também trabalhara Mies van der Rohe, e que concretiza na fábrica de formas de sapatos Tagus. Construída em 1911 e considerada Património da Humanidade pela UNESCO em 2011, contém, diz Álvaro Siza, “uma inovação técnica e funcional muito forte”, até para corresponder às novas exigências da indústria.

Essa indústria, que a princípio alimentara os projetos da escola, deixa-se vencer pelas persistentes queixas de imoralidade alimentadas pelo puritanismo local. O pecado morava na Bauhaus, sustentavam cavalheiros indignados e damas ofendidas.

Claudia Perren, diretora da Fundação Bauhaus, acentua o carácter de vanguarda da escola, mas era justamente esse posicionamento que tanto irritava a sociedade de Weimar. “Era uma escola que reunia arte, design e arquitetura sob o mesmo teto e depois continua a trabalhar na interdisciplinaridade em escolas internacionais”, diz Claudia. Em sua opinião, “a Bauhaus, em si mesma, sempre foi internacional. Sempre estimulou múltiplas perspetivas. Havia muita luta, mas tudo por uma nova ideia e fundação democrática. Era, na verdade, um novo estilo de escola”.

Por aí passava outro pecado da Bauhaus. Os poderes fáticos de Weimar, numa Turíngia cada vez mais conservadora, como se passa a refletir no governo local a partir de 1923, olhavam para a escola e percebiam que mais de um terço dos pouco mais de 200 estudantes eram estrangeiros. Os professores, por sua vez, também muitos deles oriundos de outros países, mantinham inúmeros contactos com arquitetos, designers e artistas de todo o mundo. Para o austero e luterano gosto local, a Bauhaus surgia como demasiado “internacionalista”. Daí até ser considerada comunista e infiltrada por judeus tratava-se apenas de um pequeno passo, mas um grande salto na perceção e aceitação da escola. O caminho estreitava-se. Em 1924, o orçamento da Bauhaus é estrategicamente reduzido, e todos percebem ter chegado a hora de dizer adeus ao projeto ou, em alternativa, encontrar um outro ponto de apoio.

Dessau impõe-se como solução. Com um presidente de Câmara mais progressista, a cidade acolhe a escola e propicia a Gropius condições para desenhar de raiz novas instalações para a academia. O novo edifício é uma espécie de declaração de princípios, através da qual, com as imensas fachadas envidraçadas, as amplas janelas, as torrentes de luminosidade, se exemplifica o conceito de vivência implícito naquela vanguarda. Ícone maior da arquitetura da Bauhaus, o edifício acolhe agora também as instalações da Fundação. Os erros cometidos em Weimar, que inaugurará a 5 de abril de 2019 um museu dedicado à Bauhaus, e as lições tiradas das más experiências materializam-se ali numa estrutura arquitetónica que situa todo o projeto muito para lá de uma simples escola e faz florescer um movimento que, sem aquele passado, nunca teria atingido tanto futuro.

Peter Keler inspirou-se no trabalho de Kandinsky para criar este berço, apresentado na primeira exposição da Bauhaus

Peter Keler inspirou-se no trabalho de Kandinsky para criar este berço, apresentado na primeira exposição da Bauhaus

Uma ida a Dessau, que a 8 de setembro de 2019 inaugurará o grande museu da Bauhaus, a cargo do gabinete de arquitetura González Hinz Zabala, de Barcelona, permite visitar, numa só cidade, mais edifícios originais da Bauhaus do que é possível encontrar em qualquer outro local do mundo. Para Claudia Perren, “a Bauhaus é um facto histórico que continuou em várias partes do mundo”. Nesse sentido, “não é apenas um nome. É como uma fonte capaz de ligar algumas ideias e algumas questões que se nos colocam hoje sobre a Bauhaus histórica, embora estejamos num tempo diferente e numa sociedade diferente”.

Em Dessau, a nova palavra de ordem de Gropius era já não a inicial “a forma segue a função”, para assumir: “Arte e Tecnologia — Uma Nova Unidade”. O foco estava claramente posto na colaboração com a indústria e no design de produtos destinados ao quotidiano dos cidadãos, preferencialmente baratos, duradoiros e bonitos.

As duas últimas premissas cumpriram-se. Basta ver a quase insuportável beleza do Pavilhão de Barcelona e das casas Lange e Esters, construídas em Krefeld por Mies van der Rohe há 90 anos. Ou os coloridos prédios sociais do “Jardim Italiano”, de Otto Haesler, em Celle, na Baixa Saxónia, tida como a terra onde terá nascido a Nova Objetividade. Ou ainda o muito mobiliário concebido por grandes nomes da Bauhaus.

A componente preço foi um problema desde a origem. O mobiliário é disso o exemplo maior. As reproduções certificadas existentes no mercado atingem valores elevadíssimos. Em relação a isto, Eduardo Souto de Moura tem opiniões surpreendentes. Quando diz, por exemplo, que a cadeira Barcelona, de Mies van der Rohe, “é lindíssima mas representa a total falência do design. É o antidesign”. Alguns daqueles produtos, como acontece com Le Corbusier, têm pormenores construtivos que tornam o processo complicado, demorado e caro.

Se há lugar onde na atualidade se reproduz o espírito Bauhaus é na Ikea, diz o arquiteto, apesar de, apaixonado pelo mobiliário de Alvar Aalto, nunca ter adquirido uma peça da empresa nórdica. Tem design, “é muito barato, e esse é o verdadeiro espírito da Bauhaus, embora eles inovem pouco. Dizem que depois dura pouco”. Talvez por isso, Mateo Kries afirma que “criar objetos para o uso diário e para a maioria das pessoas nem sempre significa que ser mais barato seja melhor. Às vezes, um objeto que dura 30 anos é mais sustentável e democrático do que um que se deita fora ao fim de cinco anos”. Ainda hoje, garante, há muitos designers ligados ao “critical design, open design ou social design que estão socialmente envolvidos e seguem ideias similares às da Bauhaus”.

Já sob a direção de Hannes Meyer, um arquiteto suíço demitido ao fim de dois anos devido às suas alegadas simpatias comunistas, a escola, a partir de 1928, insiste em tentar dar resposta às necessidades das pessoas e não tanto às exigências do luxo. O mais desconhecido dos diretores da Bauhaus rapidamente dá lugar a Mies van der Rohe, o terceiro e último responsável. Se Meyer é despedido, Mies não consegue aguentar as cada vez mais intensas pressões políticas decorrentes da ascensão do nacional-socialismo. Em 1932, o Parlamento da cidade de Dessau decide encerrar a Bauhaus, e o arquiteto transfere-a para Berlim. São tempos de negritude crescente. Após alguns meses, e não obstante os protestos de Mies por a Bauhaus ter passado a ser privada, os nazis encerram-na em 1933.

Deixava de existir um edifício de ensino, mas o espírito da Bauhaus iria espalhar-se pelo mundo. A ascensão do nazismo e o deflagrar da guerra faz dispersar por várias latitudes aqueles que tinham sido os mestres e grandes intérpretes da escola. Muitos vão para os EUA, outros escolhem a então Palestina e fazem com que Telavive, agora em Israel, seja hoje uma das cidades do mundo com mais presença de construção inspirada na Bauhaus. Outros ainda dirigem-se para a América Latina.

A cadeira Wassily, do arquiteto húngaro Marcel Breuer, foi concebida em homenagem a Kandinsky em 1925-1926

A cadeira Wassily, do arquiteto húngaro Marcel Breuer, foi concebida em homenagem a Kandinsky em 1925-1926

Eduardo Souto de Moura, para quem o Pavilhão de Barcelona “é o edifício mais radical do século XX”, não tem dúvidas em afirmar que, ao abandonar tudo e emigrar para os EUA, Mies van der Rohe encontra o espaço e o tempo certos para construir a sua melhor obra. “É a mais radical. Lá encontra a tecnologia e o dinheiro, coisa que não tinha na Alemanha, e constrói edifícios notáveis”, como, em 1958, a Torre Seagram.

Ao saírem da Alemanha nazi, todos aqueles homens da Bauhaus deixam um rasto só mais tarde compreendido na sua plenitude. Até porque muitos ficam e dão-se muito bem com a nova ordem hitleriana. Dado todo o percurso anterior, parecerá blasfémia estabelecer uma relação entre uma Bauhaus representativa da modernidade e o retrocesso e a barbárie do nacional-socialismo. E, no entanto, ela existiu. Não obstante todos os ataques e calúnias de que a escola foi alvo até os nazis a fecharem em 1933.

Uma das situações mais surpreendentes é a boa aceitação conseguida por Walter Gropius e Mies van der Rohe, primeiro e último diretores da escola. Ambos contribuem para uma exposição organizada em 1934 pelos nacionais-socialistas. Nesse mesmo ano, Mies assina uma moção de apoio a Hitler com vista a um referendo então realizado. Em 1935, com a sua companheira Lilly Reich, desenha o pavilhão alemão para a Exposição Universal de 1935, em Bruxelas. Acaba muito criticado por antigos companheiros da Bauhaus pela sua relutância em condenar o regime nazi.

Para Álvaro Siza, Mies van der Rohe, “evidentemente, não era um nazi, embora tenha cedido. Era um apaixonado pela arquitetura” e não terá resistido à vertigem de construir.

O design gráfico é outra das linguagens a beneficiar da verdadeira revolução provocada pela Bauhaus, materializada na redução formal, na assimetria dinâmica ou na sistemática estruturação do espaço. Nasce, diz António Modesto, designer gráfico e professor na Faculdade de Belas-Artes do Porto, “uma tipografia construída com um sentido depurado, em que as letras se libertam de todos os artifícios. Acabam com as maiúsculas, o que significava acabar com as hierarquias”. E isso tinha um profundo significado político. Um dos grandes agentes dessa mudança é o austríaco Herbert Bayer. As fontes por ele criadas definem a identidade tipográfica da Bauhaus. Porém, também Bayer acaba por ter uma relação muito complicada com o nazismo. Desenvolve um intenso trabalho ao serviço de Hitler ou das juventudes hitlerianas e concebe o programa para os Jogos Olímpicos de 1936. Também ele acaba por emigrar para os EUA, onde desenvolve uma carreira de grande sucesso.

Seria de uma tremenda injustiça para todos quantos, ligados à Bauhaus, resistiram, sofreram, foram presos ou mortos passar a ideia de que a escola terá sido conivente com o nacional-socialismo, que tudo fez para a destruir. Não se trata, por isso, de um qualquer julgamento à distância, mas de perceber como nunca a História é linear.

Assim, num outro extremo, surge um ex-discípulo de Bayer, Franz Ehrlich. Prisioneiro no campo de concentração de Buchenwald, próximo de Weimar, é forçado a desenhar as letras colocadas no portão de entrada do campo: “A cada um a sua escolha”, numa tradução livre. E a escolha de Ehrlich foi contornar o pecado maior do colaboracionismo. Sem que as SS se apercebessem, deixa um subtil sinal de resistência ao usar uma fonte para as letras, muito inspirada na tradição da Bauhaus, que os nazis julgavam banida para todo o sempre. Não há pecado sem redenção. O nazismo é agora apenas uma excrescência. Sob outras formas, sempre ancorada numa proposta de modernidade e na ideia de mudança, a Bauhaus vive. Sem pecado.

O Expresso viajou a convite do Turismo Alemão