O JOGO
DE MENDES

A proximidade que Jorge Mendes soube criar com jogadores e clubes fez dele o melhor agente do mundo, mas a sua ambição sem limites não representa apenas uma história de superação. É também a história de como o futebol se tornou um meio amoral para acumular dinheiro

texto Micael Pereira

Um bom olheiro sabe que o talento para ganhar esconde-se às vezes na capacidade de surpreender e que a surpresa pode manifestar-se não em grandes gestos de força, mas ao contrário: em pequenos sinais de fraqueza. Na sala de audiências em Madrid, é evidente quem neste momento assume a parte fraca.

Na primeira de três filas de cadeiras vazias, o agente de futebol Jorge Mendes trouxe uma senhora com ele para o tribunal de instrução de Pozuelo de Alarcón, na capital espanhola. Está sentada a seu lado quando o relógio interno da câmara de filmar, pendurada no teto da sala, marca as 12h57 de 27 de junho de 2017, para o início do interrogatório. O empresário português tem as pernas recolhidas debaixo da cadeira, o corpo tenso. As mãos estão inquietas, ora juntas, ora separadas, ora uma levantada, ora as duas.

Uma procuradora da Fiscalía, como é conhecido o Ministério Público em Espanha, diz-lhe que vai ser ouvido na “qualidade de investigado” e lê-lhe os direitos, incluindo o direito de poder permanecer em silêncio. “Hay lido usted la querella? Está usted conforme con los hechos que se cuentan en la misma?”, quer saber a magistrada. “O senhor concorda com os factos que estão descritos na querella?”, repete a senhora do lado, de sotaque brasileiro, indecisa sobre a tradução desse termo técnico. Com querella, a procuradora quer dizer a ação judicial.

O arguido recorre à intérprete apenas durante alguns minutos, até se esquecer dela, desembrulhando o seu próprio castelhano, rápido e suficiente: “Yo tengo estudios primarios y mismo que lo quisiera hacer no lo sé, nunca me ha dedicado a esos temas y hoy en día todo lo que está pasando es una cosa horrible, yo no tengo nada que ver con él”.

A gravação do interrogatório tem 52 minutos e foi obtida pela revista alemã “Der Spiegel” junto da plataforma Football Leaks e partilhada com o Expresso e com outros parceiros do consórcio EIC (European Investigative Collaborations). No decurso dela, por duas vezes o empresário refere os seus estudos primários, sublinhando desse modo como é um homem simples.

Ao longo dos mais de 20 anos de carreira que fizeram dele o maior agente de futebol do mundo, com centenas de transferências de jogadores a terem passado pelas suas mãos, algumas delas na lista das maiores de sempre, incluindo as contratações de Cristiano Ronaldo pelo Real Madrid e pela Juventus, Jorge Mendes aprendeu como a humildade tem o poder de conquistar os outros, de lhes baixar a guarda fazendo-os sentir próximos, ao ponto de os futebolistas que representa raramente assinarem acordos escritos com ele. “É mais uma relação pessoal, que sempre levei da mesma forma”, admite ao tribunal. Contratos só verbais. “Não vou dizer que pontualmente não tenha assinado algum acordo quando há um presidente de um clube que é um pouco mais difícil, porque por vezes aparecem pessoas a dizer que são elas os representantes.”

A fórmula parece perfeita, tendo em conta os resultados. Ainda em setembro deste ano o empresário foi eleito pela “Forbes” como o segundo intermediário desportivo mais poderoso de 2018 (depois de Scott Boras, no basebol), acumulando 100 milhões de dólares de comissões recebidas ou a receber relacionadas com contratos atualmente em vigor e para uma carteira de 114 clientes, suplantando, de acordo com as contas da revista americana, os 77 milhões que trazia de 2017.

Mendes está ali sentado na primeira fila não por culpa do seu sucesso, mas porque o seu nome foi invocado num processo-crime contra um dos seus jogadores, Radamel Falcao, acusado pelo Ministério Público de defraudar as Finanças de Madrid em mais de 5,6 milhões de euros em impostos relativos a rendimentos de 2012 e 2013, quando o ponta de lança colombiano era residente fiscal em Espanha e ao mesmo tempo recebeu direitos de imagem através de um paraíso fiscal, sem os declarar. De acordo com a Fiscalía, Falcao ocultou das autoridades todo esse dinheiro que era devido em impostos aos cofres da Coroa espanhola recorrendo a uma estrutura de sociedades e contas bancárias complexa que começava e terminava numa companhia offshore nas Ilhas Virgens Britânicas, a Fardey Overseas SA, da qual é ele o beneficiário.

<span class="arranque">FORTUNA </span>O empresário foi eleito pela “Forbes” como o segundo intermediário desportivo mais poderoso de 2018 (depois de Scott Boras, no basebol), acumulando 100 milhões de dólares de comissões recebidas ou a receber relacionadas com contratos atualmente em vigor

FORTUNA O empresário foi eleito pela “Forbes” como o segundo intermediário desportivo mais poderoso de 2018 (depois de Scott Boras, no basebol), acumulando 100 milhões de dólares de comissões recebidas ou a receber relacionadas com contratos atualmente em vigor

No intervalo de poucos meses, na sequência de uma vaga de artigos dos Football Leaks publicados em dezembro de 2016 pelo consórcio EIC e que revelaram vários esquemas semelhantes a esse, sempre com recurso a offshores, o colombiano foi apenas um entre vários jogadores representados por Jorge Mendes a serem indiciados por evasão fiscal em Espanha em processos equivalentes, com maior ou menor gravidade consoante os montantes. Fábio Coentrão (1,3 milhões de euros), Ricardo Carvalho (meio milhão), Pepe (1,8 milhões), Di María (1,3 milhões) e o mais mediático deles todos, Cristiano Ronaldo (acusado por 14,7 milhões de euros), além do mais famoso dos treinadores clientes do empresário, José Mourinho (acusado por 3,3 milhões). Trata-se uma mera coincidência?

Mendes emociona-se na cadeira. A voz treme um pouco. “Não sei nada dessas coisas. Podem falar com 400 jogadores, não há nenhum que um dia possa dizer que o Jorge o ajudou nisso” (meses depois, Ronaldo dirá sentado no mesmo lugar que Mendes ainda percebe menos de impostos do que ele e é uma pessoa honesta). O empresário dá uma explicação prática sobre o que realmente faz na vida. “Eu sou administrador de Gestifute e só me dedico a isto, a tentar encontrar as melhores soluções para os meus jogadores, e passar um ano é como passar um minuto. Tento dedicar o tempo que tenho à minha família e passo a vida a trabalhar, ao telefone até à meia-noite, movo-me por todo o lado, a minha mulher acompanha-me sempre que pode e esse é o meu trabalho.”

O enredo do caso Falcao, tal como foi dissecado pelo Ministério Público espanhol, envolveu personagens e entidades comuns com os enredos dos outros casos: em 2011 Mendes conseguiu a proeza de fazer com que o colombiano se tornasse na terceira maior transferência da história do futebol português, quando o Porto vendeu o passe do jogador por 40 milhões de euros ao Atlético de Madrid. Nessa altura, em paralelo com o contrato que Falcao assinou com o Atlético, em relação ao qual o agente recebeu uma comissão do clube, através da Gestifute, a sua agência especializada em transferências, o futebolista estabeleceu um outro acordo: decidiu ceder todos os seus direitos de imagem à Fardey Overseas SA. Depois, essa companhia das Ilhas Virgens Britânicas cedeu por sua vez os direitos do jogador a uma empresa na Irlanda, a Multisports & Image Management (MIM) Limited, que subcontratou uma outra empresa irlandesa, a Polaris Sports, para explorá-los, procurando no mercado patrocínios de marcas interessadas no catálogo das suas estrelas de futebol.

“PASSO A VIDA A TRABALHAR, AO TELEFONE ATÉ À MEIA-NOITE, MOVO-ME POR TODO O LADO, A MINHA MULHER ACOMPANHA-ME SEMPRE QUE PODE E ESSE É O MEU TRABALHO”, DIZ O AGENTE

Para quê tudo isto? A Polaris não só é uma empresa de Jorge Mendes como além disso tem captado e faturado os contratos de campanhas publicitárias em representação dos futebolistas e treinadores do próprio agente, pagando-lhes depois através de offshores, incluindo no caso de Falcao.

A juíza de instrução que preside à audiência quer entender melhor porque é que, apesar da sua dupla ligação ao caso, o interrogado insiste em dizer que não sabe nada. E com respeito às empresas através das quais são faturados os direitos de imagem? “Não tenho ideia nenhuma”, responde. “Tudo isso não passa por mim, eu sou administrador da Gestifute e posso dizer que sou o máximo responsável da Gestifute. Depois, a nível da Polaris é o meu sobrinho que é administrador, porque eu não participo. É uma pessoa que procura sponsors para a Polaris, como a Coca-Cola ou a Toyota, e daí obtém um contrato para um determinado jogador e tem uma comissão. Não tem nada a ver com sociedades, nada a ver com isso.”

A juíza passa a palavra à procuradora do Ministério Público, que agora foca um pouco mais a questão:

— Diz que é acionista da Polaris?

— Sou acionista, não sou administrador.

— E é acionista em nome próprio ou através de alguma sociedade?

— Está tudo declarado em Portugal.— Mas é Jorge Mendes, enquanto pessoa física, que é acionista ou o acionista é uma sociedade de que é proprietário?

— Foi o meu advogado que no final decidiu como fazer, mas o mais importante de tudo é que eu pago todos os impostos destas sociedades em Portugal e sou eu o maior acionista da Polaris.

— Em que percentagem?

— Não posso dizer agora exatamente, mas a maioria.

— Pergunto outra vez: o senhor, pessoa física, ou a Gestifute?

— Não é querer ocultar nada, que eu não quero ocultar nada, mas como o escritório de advogados é que trata sempre dessas coisas…

Como pode um homem que diz desconhecer tudo à volta a não ser a atividade de negociar bons contratos com os clubes para os seus jogadores, ter construído um pequeno império que em 2016, quando passou a ter sócios chineses, valia quase 280 milhões de euros? E porque é que, com um negócio em que toda a gente parece ficar satisfeita, passou a ser posto em xeque pelas autoridades não só de Espanha como de outros países, incluindo Portugal, onde uma equipa de inspetores fiscais coordena uma investigação à escala europeia sobre os seus negócios? Há alguma coisa de errado em nascer pobre e, à custa de muito trabalho, ficar rico?

Independentemente das versões que possa haver sobre essa história e sobre a escala que a ambição do agente ganhou, aconteceu tudo muito rápido.

Um plano B que virou A

Jorge Paulo Agostinho Mendes nasceu a 7 janeiro de 1966. A sua biografia oficial, “Jorge Mendes, o Agente Especial” (“La Clave Mendes”, na edição espanhola), não diz onde. Os seus primeiros 23 anos de vida ocupam, aliás, apenas 17 das 427 páginas do livro publicado em 2015 com a bênção do visado e escrito por dois jornalistas espanhóis, Miguel Cuesta Rubio e Jonathan Sánchez Mora.

Descontando uma camada espessa de elogios, exalados por toda a gente que se dá com ele, a impressão que fica sobre como Mendes cresceu é um pouco vaga. Embora seja referida a existência de um irmão, que teve um papel decisivo num momento crítico do seu percurso, pouco é dito sobre a presença dele durante a infância e adolescência e até que ponto o terá influenciado. Dezoito anos mais velho e formado em engenharia, João Manuel Grosso Correia virá a morrer em 2009, segundo um artigo do “Jornal de Notícias”, “na sequência de uma queda de bicicleta” durante um passeio de grupo em Viana do Castelo, onde mora.

A narrativa do “Agente Especial” começa em 1976, quando Jorge tem 10 anos e já chuta à bola, envergando uma alcunha herdada do pai, Manuel, a quem chamam de Cabanas e que trabalha como segurança na refinaria da Sacor, em Cabo Ruivo, onde mais tarde irá ser construído o Parque das Nações, na fronteira entre os concelhos de Loures e Lisboa.

A família vive no antigo Bairro da Sacor, um complexo desenhado no final dos anos 50 para os operários daquela empresa petrolífera, na margem serpenteada do rio Trancão, no que é hoje a freguesia da Bobadela. Depois de ter sido batizado de início como o Bairro Salazar, mudou definitivamente de nome para Petrogal quando a Sacor foi integrada na Galp a seguir ao 25 de Abril de 1974. Apesar da poluição do rio, que só irá ser limpo no final da década de 90, numa reconversão profunda impulsionada pela abertura da Expo-98 no Parque das Nações, naquele bairro operário há grandes espaços verdes, onde o miúdo passa o tempo a jogar à bola.

Uma vizinha de infância citada por Cuesta e Sánchez resume para memória futura o temperamento ambicioso do rapaz: “Às vezes, punha-se a gritar que ia triunfar.” Os elogios ao seu espírito combativo surgem logo nessas primeiras páginas. Diz a versão oficial que aos 13 anos, com a família suportada apenas no emprego do pai, Jorge anda com a mãe, Maria, pelo areal da Fonte da Telha, no limite sul das praias da Costa da Caparica, a vender cestos de vime e chapéus de palha aos banhistas. E para ter dinheiro de bolso para si e para as saídas com os amigos, vai vender objetos e roupa em segunda mão na Feira da Ladra, em Lisboa, às terças e sábados. É, de resto, descrito como sendo muito popular na adolescência, uma espécie de animal social à volta de quem se juntam grupos de amigos e conhecidos.

Além de adepto do Benfica e fã de Fernando Chalana e de Maradona, desde muito cedo, ainda como juvenil, alinha na equipa do Grupo Desportivo e Cultural dos Trabalhadores da Petrogal, o Clube Petrogal, na Bobadela, que já nos anos 80 é beneficiado por ter um campo relvado. Joga à defesa, como lateral esquerdo.

Parece levar o futebol a sério, ao contrário da escola, cuja frequência mal é abordada no livro, onde se lê apenas que aos 23 anos decide mudar de vida e que nessa altura abandona os estudos, “na fase final do curso dos liceus, antes de ir para a universidade”. Aos autores do livro contou que foi estudar à noite e que sonhou em tirar Direito e ser advogado. Mas qual é a sua escolaridade, afinal, tendo em conta o que virá a dizer no tribunal em Madrid em 2017, sobre o facto de ter apenas “estudos primários”? Na vez em que foi interrogado pela mesma juíza espanhola, Cristiano Ronaldo dirá ainda, para reforçar a convicção de que o seu agente não tem capacidade para montar esquemas de evasão fiscal, que Jorge Mendes possui menos um ano de escolaridade que ele próprio, o que significa que o empresário terá completado apenas o 5º ano.

Seja como for, e depois de ter um primeiro emprego aos 18 anos como operário na fábrica de gelados Olá, em Santa Iria da Azoia, o que Cabanas quer realmente ser é jogador de futebol profissional. E quando se transfere com 23 anos, no ano de 1988, do Bairro da Petrogal para Viana do Castelo, indo morar com o seu irmão João Manuel, esse é o plano que está de pé. Entra para o Vianense com uma carta de recomendação do Eusébio e no balneário do clube conhece aquele que vem a ser o seu primeiro sócio no mundo dos negócios.

Mas está visto que não é a pisar relvados que vai ter um futuro brilhante. Em contrapartida, a abertura de um clube de vídeo com o seu novo companheiro de equipa e sócio, António Alberto, permite-lhe enveredar por uma carreira como empresário para a qual tem nitidamente um talento especial. O que começa por ser o seu plano B rapidamente se transforma num plano A. Desenrascado e criativo, com uma grande capacidade de improviso, está disponível para trabalhar horas intermináveis e é muito focado em cumprir objetivos. Abre o videoclube, o Samui Video, num centro comercial pouco frequentado de Viana do Castelo e, apesar dos conselhos para o não fazer, o negócio corre bem o suficiente para abrir um segundo negócio, uma casa de hambúrgueres (o Big Burger), ao mesmo tempo que, mantendo-se como jogador do Vianense, começa a vender painéis publicitários para o campo de futebol aos empresários da região.

EM MIÚDO, A FAMÍLIA VAI VIVER PARA A BOBADELA. PASSAVA OS DIAS NA RUA A JOGAR À BOLA. ERA ADEPTO DO BENFICA E FÃ DE FERNANDO CHALANA E DE MARADONA

Depois, alarga o espectro. Monta um restaurante-bar-discoteca na praia do Cabedelo, nos limites de Viana do Castelo, o Luziamar, e a seguir, em 1991, associa-se a uma outra discoteca em Caminha, o Club Alfândega, na Rua Direita, e que ainda hoje existe. É onde passa a estar parte do seu tempo. Daí até iniciar a sua futura vida de intermediário desportivo é só uma questão de rasgo.

O Club Alfândega foi aberto em 1989 por três empresários, António Rosas, Morais Vieira e Toni Novo. Segundo contou um dos seus fundadores, Morais Toni, ao Caminhense, um jornal local, para um artigo publicado em 2014, a ideia é inspirada na noite de Ibiza. “O que nós fizemos foi criar um espaço inovador e uma nova maneira de explorar a noite convidando figuras públicas, gente da televisão e manequins, para estarem à porta, nos bares e a animar a discoteca.” A discoteca torna-se um local de poiso obrigatório.

Morais Toni e António Novo já são sócios de Mendes no Luziamar, em Viana do Castelo, quando o futebolista recém-convertido a empresário junta-se a eles também no projeto de Caminha.

É nas noites de jet-set do Club Alfândega que Jorge conhece o seu primeiro cliente importante, Nuno Espírito Santo, então um ambicioso jovem guarda-redes de 1,90 metros de altura, nascido em São Tomé e Príncipe, que entrou para o Vitória de Guimarães em 1991, com apenas 17 anos.

Estamos no verão de 1996, e Nuno, entretanto com 22 anos, desenvolve uma amizade com Mendes, que tem nessa altura 30 anos. O empresário já experimentou colocar alguns jogadores em clubes de escalões mais baixos, empurrado pelo seu permanente voluntarismo e o seu à vontade para meter conversa com todos e convencê-los dos seus argumentos. É já um agente em estado embrionário e o que diz ao seu novo amigo guarda-redes parece convincente mais pelo seu extremo otimismo do que por qualquer outra razão. Ainda que sem provas dadas, promete-lhe que é capaz de o transferir para uma grande equipa. O Porto anda interessado no jogador e contacta-o diretamente, mas Nuno Espírito Santo reencaminha-os para Mendes, que identifica como sendo seu representante. Esse é o pretexto para um primeiro contacto com Pinto da Costa, presidente dos dragões, com quem em pouco tempo virá a cultivar uma relação longa e lucrativa. O recém-empossado intermediário vai então ter com o presidente do Vitória de Guimarães, Pimenta Machado, que recusa vender o guarda-redes ao clube das Antas, dizendo que só o liberta dos três anos que ainda lhe falta para cumprir o contrato de trabalho com o clube se lhe oferecerem um milhão de dólares.

Mendes não desiste e vira as suas atenções para o Deportivo da Corunha. O clube galego está em alta, tendo vencido no ano anterior a Copa del Rey e a Supercopa de Espanha. Nesse verão o empresário passa a fazer 340 quilómetros várias vezes por semana, de carro, até à Coruña para falar pessoalmente com o presidente do clube galego, Augusto César Lendoiro, e que é capaz de esperar horas só para trocar duas palavras com ele. Lendoiro não está particularmente interessado em comprar um guarda-redes, mas dirá mais tarde, para a tal bio­grafia oficial, que a frequência das suas visitas é tanta que fica rendido com a persistência e simpatia do jovem português: “Não me avisava e eu na maior parte das vezes tinha outras coisas, mas claro, como ele estava ali, que é que eu ia fazer? Mandá-lo de volta sem falar com ele?”

A verdade é que o guarda-redes, talvez inspirado pela promessa do seu amigo, tem tido um bom desempenho e é convocado nesse verão para a seleção nacional que participa nos Jogos Olímpicos em Atlanta, nos Estados Unidos. Tem não só um futuro promissor à frente como acaba de ganhar uma nova montra. Com a insistência de Mendes e a ascensão de Nuno, o Deportivo fica convencido e avança com uma oferta. Sempre aparece alguém com um milhão de dólares a bater à porta de Pimenta Machado. Décadas depois, em 2016, o agora treinador do Wolverhampton Wanderers contará a sua versão da história ao jornal britânico “The Guardian”: quando vão falar com o presidente do Vitória de Guimarães, a fasquia já é outra: agora só se for por cinco milhões.

<span class="arranque">CASOS</span> O colombiano Radamel Falcao foi apenas um entre vários jogadores representados por Jorge Mendes a serem indiciados por evasão fiscal em Espanha em processos equivalentes, com maior ou menor gravidade consoante os montantes. Fábio Coentrão (1,3 milhões de euros), Ricardo Carvalho (meio milhão), Pepe (1,8 milhões), Di María (1,3 milhões) e o mais mediático deles todos, Cristiano Ronaldo (acusado por 14,7 milhões de euros), além do mais famoso dos treinadores clientes do empresário, José Mourinho (acusado por 3,3 milhões)

CASOS O colombiano Radamel Falcao foi apenas um entre vários jogadores representados por Jorge Mendes a serem indiciados por evasão fiscal em Espanha em processos equivalentes, com maior ou menor gravidade consoante os montantes. Fábio Coentrão (1,3 milhões de euros), Ricardo Carvalho (meio milhão), Pepe (1,8 milhões), Di María (1,3 milhões) e o mais mediático deles todos, Cristiano Ronaldo (acusado por 14,7 milhões de euros), além do mais famoso dos treinadores clientes do empresário, José Mourinho (acusado por 3,3 milhões)

Perante esse volte-face, Nuno é convencido por Mendes a alinhar numa espécie de contraofensiva radical e arriscada. Deixa simplesmente de aparecer no Vitória de Guimarães e durante três meses esconde-se em casa do empresário. Segundo a entrevista dada por Nuno Espírito Santo ao “The Guardian”, ao fim desse tempo todo desaparecido, Mendes vai ao apartamento do guarda-redes, põe tudo num desalinho e a seguir pede para que o jogador finja que está alcoolizado antes de levar Pimenta Machado a ir vê-lo. “Foi uma farsa”, contará Nuno ao jornal britânico. “O presidente do Vitória vem visitar-me e eu comporto-me como… se tivesse estado a viver na rua.” Certamente que a recusa em deixá-lo ir embora está a provocar-lhe uma depressão, pensa o dirigente desportivo. É aí que depois de perguntar a Mendes se o jogador está mesmo bêbado, Pimenta Machado dá o braço a torcer: “Pode levá-lo embora amanhã... Mas não deixe que lhe façam nenhum teste!”

Pippo Russo, um jornalista italiano que também publicou um livro sobre o agente, mas com um título bem menos simpático, “A Orgia do Poder”, escreve que Pimenta Machado aceitou o negócio também porque, aparentemente, a proposta que lhe chega é muito boa: “O Deportivo da Corunha já não paga apenas um milhão de dólares, mas antes um valor em escudos equivalente a 2,5 milhões de euros.” Uma fortuna para a época. Esse é o valor que vem referido no Transfermarkt, o site internacional sobre transferências. Russo, ainda assim, diz que se trata apenas de uma de várias versões que existem em torno dessa primeira transferência conseguida pelo agente.

É essa primeira comissão a sério recebida por Mendes que serve de impulso para arrancar, de modo profissional, com a sua nova atividade. A 26 de setembro de 1996 é fundada a Gestifute — Gestão de Carreiras Profissionais Desportivos SA. O mercado é dominado por um emigrante regressado do Luxemburgo, apenas três anos mais velho mas que desde 1992 representa os principais futebolistas em Portugal. Fernando Couto é transferido do Porto para o Parma em 1994 (por 2,7 milhões de euros) e do Parma para o Barcelona em 1996 (por 5,5 milhões). Paulo Sousa vai do Sporting para a Juventus em 1994 (4 milhões) e dali para o Borussia Dortmund dois anos depois (3,6 milhões). Figo sai do Sporting para o Barcelona em 1995 (2,5 milhões) e do Barcelona para o Real Madrid em 2000 (60 milhões).

Será só uma questão de tempo até esse statu quo ser virado do avesso. Com o êxito do cerco persistente e humilde ao presidente do Deportivo da Corunha e com a solução pouco ortodoxa encontrada para dar a volta ao presidente do Vitória de Guimarães, o empresário aprende uma lição: conquistar os presidentes dos clubes é tão importante quanto angariar jogadores. E atrás disso vem um princípio a partir do qual constrói um método de trabalho: é preciso estar sempre disponível para fazer o impossível. Sobretudo, para perder tempo com as pessoas, conviver com elas, criar laços.

Os sete anos seguintes são a aplicação desse princípio e desse método, caso a caso, peça a peça, como num dominó. O sucesso sentido por Nuno Espírito Santo com a sua saída ajuda a convencer um outro colega de equipa no Vitória de Guimarães, Nuno Capucho, a recorrer a Mendes como intermediário, que entretanto já conhece Pinto da Costa e consegue colocar o extremo esquerdo no Porto no verão seguinte, em 1997. Meses antes disso, convence o Mónaco a ficar com Costinha, que estava a jogar na terceira divisão, no Clube Oriental de Lisboa, e cujo talento foi notado por um colega e por um treinador que são amigos próximos de Mendes. Dois anos depois Costinha será capitão no Mónaco e, com a braçadeira no braço, sagrar-se-á campeão de França e vencedor da Supertaça francesa, antes de regressar a Portugal para viver uma era de ouro no Porto.

A sua equipa, entretanto, vai sendo reforçada. Convence Sérgio Alves a largar o seu trabalho como jornalista no jornal “A Bola”, e em 1999 passa a contar com o seu sobrinho Luís Correia, filho do seu irmão João Manuel, que se licenciou em Economia e a quem incumbe de transformar a Gestifute numa empresa mais profissional e de o acompanhar em viagens ao estrangeiro, por dominar bem o inglês.

Outros nomes de jogadores surgem nesta época. Entre eles, Hugo Leal, uma estrela em ascensão que concretiza a primeira entrada de um jogador de Mendes no Atlético de Madrid, em 1999, quando o jogador tem 19 anos; e Deco, que passa a ser representado por si em 1998, quando está emprestado pelo Benfica ao Alverca mas na iminência de ficar livre. Deco é mais um caso de como o intermediário parece talhado para resolver assuntos embrulhados. Ao descobrir que os direitos desportivos daquele médio ofensivo estão na pose de um clube em Maceió, no Brasil, Mendes vai até lá de propósito para descalçar um acordo e levar o jogador para o Salgueiros, porque acredita que esse clube no Porto será uma melhor montra para o mercado de transferências do que o Alverca. O Alverca ainda avança com a compra do passe por um milhão de euros, sobrepondo esse contrato ao acordo estabelecido com o Salgueiros e o caso vai parar à FIFA. Mendes tem o futebolista do seu lado e vence a disputa. Meses depois, Deco é transferido para o Porto, onde goza seis épocas de fama e glória antes de dar o salto para o Barcelona.

Já não há como voltar atrás. O boca a boca espalha-se pelos balneários, onde o intermediário deixa de ser um desconhecido. Com a pressão de terem carreiras curtas, os futebolistas querem quem os ajude a fazer apostas certeiras. José Veiga, o líder do mercado português de transferências vem defendendo a sua posição como pode, mas o seu último grande contrato — a ida de Zinédine Zidane em 2001 da Juventus para o Real Madrid por 77,5 milhões de euros — está cada vez mais lá para trás e em 2004 troca de carreira e vai para o cargo de diretor-geral do Benfica para a área do futebol.

É NAS NOITES DE JET-SET DO CLUB ALFÂNDEGA, EM CAMINHA, QUE CONHECE O SEU PRIMEIRO CLIENTE IMPORTANTE, NUNO ESPÍRITO SANTO, ENTÃO UM JOVEM GUARDA-REDES

Veiga desiste de ser intermediário depois de passar pela humilhação de ver Mendes tirar-lhe Cristiano Ronaldo em 2002, quando o jovem madeirense tinha apenas 16 anos. Fez isso usando a sua melhor arma: sendo simples, preocupado apenas em criar empatia. Não apenas com o jogador, mas com os que lhes são próximos. Durante um jantar com a família Aveiro, conquistou primeiro a mãe do jogador, Dolores, e só depois se preocupou em convencer o filho.

O resto é uma sucessão de ondas, num alinhamento perfeito, que todos os fãs de futebol conhecem. Ronaldo impressiona o Manchester United num jogo amigável em Lisboa para a inauguração do novo estádio de Alvalade no verão de 2003 e logo em agosto é transferido para Old Trafford por 19 milhões de euros, ainda com 17 anos. Mais a norte, no final da época seguinte, a imparável sequência de vitórias alcançadas por José Mourinho com o Porto, culminando com a conquista da Liga dos Campeões, depois de uma Taça UEFA no ano anterior, abre uma espécie de dique, com o Chelsea a contratar o treinador português e, atrás dele, um trio de jogadores (Ricardo Carvalho, Paulo Ferreira e Tiago), todos representados pelo mesmo homem.

Com o maior adversário afastado da luta e uma súbita projeção internacional à custa de uma entrada de leão na Premier League, a viragem é enorme. Os números irão ser públicos anos mais tarde, quando olhando para trás se se fizerem as contas e se concluir que 68% de todas a vendas de jogadores feitas pelos três grandes clubes portugueses entre 2001 e 2010 têm como intermediário o dono da Gestitufe. À medida que a Gestifute cresce, o aumento do seu peso parece acentuar ainda mais a velocidade a que o negócio se expande.

Por outro lado, a própria aquisição do Chelsea por Roman Abramovich em 2003 dá início a uma era em que o futebol europeu irá mergulhar nos 15 anos seguintes, com muito dinheiro fresco a sair dos bolsos de oligarcas russos, xeques do Médio Oriente e tycoons asiáticos, contribuindo para uma inflação acentuada e permanente dos valores das transferências e dos salários dos jogadores. O cenário ideal para quem vive de comissões. A estratégia de Mendes em cultivar relações próximas com quem faz negócios irá engrossar assim a lista de novos amigos do intermediário dentro dessa nova ordem de donos do futebol introduzida no Velho Continente. Entre os futuros amigos de Mendes irão estar o investidor russo Dmitry Rybolovlev, que comprou o Mónaco em 2011, ou Peter Lim, um magnata de Singapura, dono do Valência a partir de 2014.

Se há um lugar onde o efeito dessa expansão rápida se manifesta é nas contas bancárias.

O dilema do dinheiro

Na base do que virá a ser o interesse das autoridades tributárias estão as decisões tomadas a partir do momento em que acontece a transferência de Ronaldo para o Manchester. Antecipando a expansão súbita dos negócios, Mendes contrata os serviços de um escritório de advocacia, a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados, depois de ter ficado bem impressionado com a forma como um advogado desta sociedade, Carlos Osório de Castro, resolveu um problema fiscal de Deco em Espanha.

Em maio de 2004 deixa de haver apenas a Gestifute S.A., com sede no Porto, e é aberta uma outra empresa quase com o mesmo nome, a Gestifute International, na Irlanda, com o objetivo formal de o intermediário “poder aceder” a mercados, a parcerias e a plataformas de investimentos globais mais facilmente. Um ano depois, em abril de 2005, é fundada na mesma morada em Dublin a Polaris Sports, dedicada em exclusivo à exploração de direitos de imagens. Nos meses seguintes é a vez de ser criada uma empresa de investimentos imobiliários, a T23, que servirá para deter algumas das suas casas.

Nos últimos dez anos, o desdobramento do universo de Jorge Mendes em várias entidades vai dando saltos importantes. Em 2008, aquelas quatro empresas são colocadas debaixo de uma outra estrutura, a Start SGPS, no Porto, de que se tornam administradores o sobrinho Luís Correia, a mulher, Sandra Mendes, e o advogado Carlos Osório de Castro. Em 2012, a Start SGPS começa a ser detida não diretamente pelo empresário mas por uma outra empresa, criada na Holanda, uma holding pessoal de que Mendes é o único acionista e que tem como administrador também Osório de Castro. E no final de 2015 juntam-se os novos sócios chineses da Fosun, donos da Fidelidade e acionistas do BCP em Portugal, que compram 15% do universo de agências do intermediário, enquanto lhe abrem novas perspetivas de expansão — na própria China e em Inglaterra, com vendas de jogadores para o Wolverhampton Wanderers, clube comprado pela Fosun e acabado de subir à Premier League.

Vários artigos publicados pelo Expresso e por outros parceiros do consórcio EIC ao longo das últimas semanas, com base em documentos dos Football Leaks obtidos pela “Der Spiegel”, dão conta de como, em parte, esta estrutura multinacional, com extensões em vários países, criou condições para Jorge Mendes acumular uma fortuna de quase 100 milhões de euros nas suas contas bancárias pessoais entre 2008 e 2016, contornando o pagamento de impostos sobre dividendos ao mesmo tempo que foi reportando o que faturava aos serviços de Finanças. “Sou e sempre fui residente fiscal em Portugal, onde declaro todos os meus rendimentos, incluindo os obtidos no exterior, e pago os impostos respetivos”, fez questão de assegurar nas respostas que enviou ao Expresso relacionadas com esses artigos.

De volta à sala de audiências em Madrid. Três semanas antes do interrogatório a Mendes, a 1 de junho de 2017, Radamel Falcao esteve sentado no mesmo lugar, a contar a sua versão. Disse que confiou nos seus advogados portugueses: “Eles representavam jogadores de nível mundial, e o meu agente, Jorge Mendes, disse-me que eram de extrema confiança.” Durante o interrogatório, o colombiano acrescentou ainda que para a estrutura societária de exploração dos seus direitos de imagem foi Luís Correia, o sobrinho, que lhe explicou tudo, “uma vez que esteve aqui em Madrid”.

NO FINAL DE 2015, OS CHINESES DA FOSUN, DONOS DA FIDELIDADE E ACIONISTAS DO BCP EM PORTUGAL, COMPRAM 15% DO UNIVERSO DE AGÊNCIAS DO INTERMEDIÁRIO

É por isso, pelo que Falcao disse, que a 27 de junho, frente a Jorge Mendes, um inspetor tributário espanhol insiste, depois da vez da procuradora. Volta de novo às perguntas básicas, pondo agora o foco em Andy Quinn, o dono da Multisports & Image Management, a empresa irlandesa de direitos de imagem que ajudou jogadores de Mendes, como o colombiano, a fugir aos impostos.

— Conhece Liam Grainger e Andy Quinn?

— Conheço Andy Quinn.

— De onde o conhece?

— Da Gestifute International.

— Andy Quinn é seu sócio na Gestifute?

— É uma pessoa que presta serviços à Gestifute e a outras variadíssimas empresas.

— E Liam Grainger?

— Esse eu não conheço.

— E prestando Andy Quinn serviços à Gestifute, ele nunca lhe contou que em 2013 tinha 100% da MIM?

— Eu não o sabia.

— Que tipo de serviços presta Andy Quinn? Qual é o seu trabalho?

— Quando faço contratos com a Gestifute Internacional, há documentos que são assinados por Andy Quinn.

— É uma pessoa da sua confiança, portanto?

— Não, porque não é um pessoa com quem eu fale. Mas faz parte da estrutura.

— Há outras pessoas que trabalhem na Gestifute International além de Andy Quinn?

— Não, só ele. É o único.

— E o único proprietário da Gestifute International é o senhor?

— Sou eu.

— E então ele não é uma pessoa da sua confiança?

O interrogatório termina com o inspetor um pouco incrédulo. Porque, na verdade, os registos comerciais mostram que Andy Quinn foi nomeado para a administração da Gestifute International logo no ano em que foi criada, em 2004. E além dele só havia mais dois administradores: Luís Correia e Liam Grainger, a pessoa que Mendes diz desconhecer, apesar de Grainger ter ocupado esse cargo durante 13 anos, até abril de 2017. Como é possível não o saber?

Semanas depois, Radamel Falcao chega a um acordo com a agência tributária espanhola, assumindo por inteiro a culpa, aceitando pagar um total de 8,2 milhões de euros em multas e impostos em atraso e ilibando totalmente o intermediário português e todos os seus colaboradores de quaisquer responsabilidades. Talvez seja apenas mais uma prova de que, na vida de Jorge Mendes, a humildade é sempre capaz de abrir espaço para uma boa surpresa.