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Detenção de Ghosn abala aliança Renault-Nissan
O gestor é acusado no Japão de fraude fiscal e desfalque. Arrisca uma pena até 10 anos. Governo francês quer salvar a parceria
Abílio Ferreira
Pior era impossível. Ninguém anteciparia uma semana tão terrível como esta para Carlos Ghosn, o rei-sol da gestão que em 15 anos construiu um império empresarial, e para a aliança Renault-Nissan-Mitsubishi que conduzia. Na segunda-feira foi detido em Tóquio, depois de aterrar num jato privado no aeroporto de Haneda e permanecerá, pelo menos, 10 dias na prisão. É acusado de fraude fiscal de €38,5 milhões, o equivalente a metade do rendimento que declarou entre 2010 e 2015, e suspeito de desfalque e uso pessoal de dinheiro da Nissan.
A imprensa de Tóquio revela que a subsidiária da Nissan na Holanda terá aplicado €16,5 milhões na aquisição de casas de luxo no Rio Janeiro, Beirute e Paris para utilização do gestor, nascido no Brasil, de ascendência libanesa e com nacionalidade francesa.
Uma denúncia interna tramou o super-herói da gestão que se tornou um ídolo no Japão e que uma banda desenhada celebrizou. É invulgar um gestor estrangeiro ocupar um cargo de topo no país. Ghosn arrisca uma pena até 10 anos, mas a figura de “confissão de culpa” permite atenuar a sanção. Na quinta-feira, o conselho de administração da Nissan aprovou a destituição de Ghosn como presidente não-executivo.
As ondas de choque do escândalo com epicentro em Tóquio depressa galgaram 10 mil quilómetros e atingiram Paris. O Governo francês quer salvar a todo o custo a aliança que se revela virtuosa, fabricando um em cada nove carros vendidos no mundo. O Estado francês detém 15% da Renault, tal como a Nissan. Por sua vez, a Renault é o principal acionista da Nissan, com 43%. Neste universo cabe ainda a Mitsubishi, detida pela Nissan (34%).
A Renault entregou, interinamente, a condução do grupo ao vice-presidente Thierry Bolloré, nomeado em fevereiro. Mas o ministro da Economia, Bruno Le Maire, já declarou que “Carlos Ghosn não está em condições de liderar” a empresa. A prioridade do Governo é “abordar com os parceiros japoneses” a presidência da aliança. Ghosn, é claro, não faz parte de uma solução futura. O seu desígnio para este mandato que terminava em 2022 era que a aliança Renault-Nissan evoluísse para uma empresa única com duas sedes e conseguir poupanças operacionais de €10 mil milhões.
Teoria da conspiração
A apimentar a narrativa, há uma teoria de conspiração a que a comunidade francesa adere e a imprensa difunde. Ghosn teria sido vítima de “uma traição interna” movida pela oposição japonesa a uma fusão integral com a Renault e incomodada “com o poder excessivo” do gestor. Percebe-se agora pelas declarações do presidente executivo da Nissan, Hiroto Saikawa, que Ghosn não era uma figura consensual. Saikawa manifestou-se “profundamente chocado” e referiu-se ao “lado sombrio” do gestor que o escolhera em 2007. O problema decorre “de ter sido dado um poder excessivo a uma só pessoa” e isso não se pode repetir no futuro, adverte Saikawa. Analistas apressaram-se a explicar a queda do “infalível Ghosn” pelo efeito conjugado do “poder absoluto, pomposidades e ganância”.
A bem-sucedida recuperação da Renault, com despedimentos e fecho de fábricas, marcou-lhe o currículo como “le cost killer” (o mata-custos). No Japão, a capacidade de trabalho valeu-lhe epítetos como o de seven-eleven (7-11). A carreira de Carlos Ghosn, 64 anos, sempre rolou na indústria automóvel. Esteve 18 anos na Michelin, com passagens por França e Alemanha, antes de assumir a operação nos Estados Unidos do fabricante de pneus. Em 1996 transferiu-se para a sede da Renault, como vice-presidente com a responsabilidade da produção industrial.
As ações das duas empresas não escaparam ilesas ao escândalo, mas a Renault foi a mais castigada. Na segunda-feira fechou a cair 8,4% (€1,4 mil milhões em valor) e não se recompôs. Em 2018, perdeu um terço do seu valor em bolsa.