Permita-me Discordar

Permita-me Discordar

Bruno Vieira Amaral

Naquele tempo

Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras no Expresso Diário

Se bem se lembram, antigamente a emissão da RTP terminava com pompa e circunstância ao som do hino nacional e a imagem de uma bandeira a drapejar. Enquanto o recolher obrigatório das crianças era sinalizado pelo Vitinho, os adultos eram inoculados com patriotismo e iam para a cama de armas imaginárias em riste e prontos a marchar contra não menos imaginários bretões acoitados debaixo dos lençóis ou a preparar uma emboscada atrás de algum cortinado.

O mundo tinha horas certas, eletrodomésticos que duravam uma eternidade e pessoas sólidas, inabaláveis: o senhor Amílcar, funcionário municipal que tratava da relva, dos jardins e dos canteiros, o Zé do talho, homem pequeno e de grande inspiração comercial, a dona Esmeralda, do depósito do pão, o senhor Cândido dos autocarros, com o seu imponente bigode monárquico, a dona Pepa, com a sua corneta que anunciava gelados e línguas da sogra, o Carlos Comunista, varredor da Câmara, perfil aquilino e esplêndida cabeleira branca capaz de alumiar uma rua de candeeiros apagados.

Eles eram mais do que as suas profissões pois ninguém é apenas uma profissão. Mas a profissão dava-lhes uma aura de poder, uma autoridade incontestável. Para nós, crianças, se eles desaparecessem o mundo desapareceria com eles. E eles, inevitavelmente, desapareceram. E o mundo continuou, sim, mas coxo, amputado. Os gestores gostam daquela frase implacável de que os cemitérios estão cheios de pessoas insubstituíveis. É verdade. Melhor, é meia verdade. É certo que as ruas continuaram a ser varridas, os canteiros regados, o pão vendido, embora a velha corneta dos gelados tenha deixado de se ouvir. Mas o Carlos Comunista, estentórico e com um magnífico cabelo de Lorne Greene, já não existe e as ruas, por muito limpas que estejam, ficaram vazias sem a sua presença. Não, o mundo não continuou. Transformou-se.

Lembrei-me das contínuas dos meus tempos de escola e de como, na sua diversidade – havia as autoritárias e as sentimentais, as mais velhas e as mais novas, as infelizes e as extrovertidas, as neuróticas e as maternais –, nos ofereciam uma ideia de segurança e permanência. Esqueci-me de quase todos os nomes, mas se tivesse talento para o desenho seria capaz de lhes desenhar os rostos ao pormenor

Há dias, fui levar a minha filha à escola para o primeiro dia de aulas. A escola é antiga. Provavelmente alguns dos pais que lá estavam para acompanhar os filhos também a frequentaram. Talvez a coincidência os tenha comovido. A mim, que não frequentei aquela escola, o que me comoveu não foi a recordação, tão viva e tão presente, do meu primeiro dia de aulas, mas as contínuas, agora chamadas “auxiliares de ação educativa”. Lembrei-me das contínuas dos meus tempos de escola e de como, na sua diversidade – havia as autoritárias e as sentimentais, as mais velhas e as mais novas, as infelizes e as extrovertidas, as neuróticas e as maternais –, nos ofereciam uma ideia de segurança e permanência. Esqueci-me de quase todos os nomes, mas se tivesse talento para o desenho seria capaz de lhes desenhar os rostos ao pormenor. As contínuas, que, para mim, não existiam para além daquelas funções, eram, sei-o hoje, os discretos pilares do nosso quotidiano.

Quis dizer à minha filha “aproveita cada minuto porque este mundo não dura para sempre”, mas temi fazer aquele papel em que tantas vezes, por nostalgia e autocomiseração, caio, falando dos tempos em que só havia dois canais e em que a emissão televisiva terminava com o hino nacional, e calei-me. Ela não pode compreender o mundo que eu perdi. Terá de viver no mundo dela e construir a sua própria perda. Podemos ouvir juntos o hino nacional, mas ela nunca conhecerá a solidão agravada pela tristeza noturna daqueles acordes, como uma cortina que encerra o próprio dia.