Bloco de Notas

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João Vieira Pereira

Até ao infinito e mais além

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O último Orçamento de Mário Centeno sabe a muito pouco. Feito para ganhar eleições, perde a oportunidade histórica de termos pela primeira vez em democracia um superavit das contas públicas

Oúltimo Orçamento do Estado (OE) de Mário Centeno é totalmente diferente do primeiro Orçamento do Estado do professor Mário Centeno. Se em 2016 foi obrigado por Bruxelas a recuar em toda a linha, para 2019 o exercício é só dele.

Mas recuemos a janeiro de 2016. A geringonça ainda usava chucha e Bruxelas fez questão de mostrar todo o seu poder. O OE da altura não teve uma, nem duas, teve três versões, depois de repetidamente chumbado.E poucos dias depois ainda teve direito a uma errata e a notas explicativas.

Centeno queria um défice de 2,8%, trabalhou para 2,6% e teve de acatar os 2,2% depois da Europa ter dito não. Na altura entrevistei Mário Centeno, que foi muito claro, aquele era o exercício possível e para o cumprir era preciso muita sorte (para que não haja mal-entendidos, reproduzo no fim do texto a pergunta e respetiva resposta — Nota 1).

Naquele ano podíamos resumir o OE no seguinte parágrafo: “O funcionário público, com vínculo permanente ao Estado, é o maior vencedor deste Orçamento (e talvez o único). Ganha mais, trabalha menos horas e paga menos impostos. E se for um funcionário público com um salário baixo, (infelizmente a grande maioria), não tiver carro, nem pensar em comprar um, não usar os transportes públicos, não usar um cartão de débito ou de crédito, não beber vinho nos restaurantes, então pode efetivamente dizer que este é um excelente Orçamento”.

Na altura, e pelas contas feitas pelo Expresso, Centeno tinha inclusive inventado uma austeridade de esquerda, pois o conjunto de medidas de alívio da pressão orçamental (como a reposição salarial no Estado, a eliminação da sobretaxa ou o IVA a 13% na restauração) representavam €1391 milhões. Mas, em contrapartida, as medidas de reforço da austeridade (como o agravamento do ISP ou do imposto selo) valiam €1577 milhões. O saldo era de €186 milhões de euros de nova austeridade.

Mas a sorte esteve mesmo do lado de Mário Centeno (e de nós todos). Desde então, tudo o que poderia correr bem... correu ainda melhor. Os juros sempre a descer, a economia a beneficiar do boom económico dos nossos parceiros e os dividendos do Banco de Portugal para ajudar.

Quase quatro anos depois, é Mário Centeno que dá lições a Bruxelas ao apresentar como cartão de visita o melhor défice de Portugal em democracia. Défice que só não é superavit porque o Governo não quer. O que acaba por ser grande falha deste Orçamento. O de ir até ao infinito e mais além na despesa, perdendo uma oportunidade de ouro para uma maior redução da dívida pública.

Sejamos claros. O défice de 0,2% do PIB previsto para o próximo ano só não é zero, ou mesmo um superavit, porque politicamente a geringonça não iria aceitar tal audácia. Como se governar com défice fosse uma premissa da esquerda, ou ter superavit uma ideia de direita. E depois há aquele pequeno pormenor de haver eleições para o ano que o Partido Socialista quer ganhar, de preferência com maioria absoluta. Para conseguir esse objetivo, o Governo acha que não chega tudo o que já prometeu em orçamentos anteriores (e que só no próximo ano terá impacto nas contas públicas) e abriu de novo a carteira.

Para 2019, as novas medidas têm um cariz social e impacto direto em milhões de pessoas, como por exemplo a redução dos passes sociais, manuais escolares gratuitos até ao 12º ano, menos propinas no Ensino Superior, conta da luz mais barata, menos IVA para os espetáculos, menos cortes nas reformas antecipadas, aumentos na função pública e em quase todas as pensões. É difícil não concordar com algumas destas medidas e muito fácil discordar de outras (como o IVA dos espetáculos ou a redução das propinas). Mas seria mais fácil aceitar se houvesse um plano que não fosse o de pagar isto tudo com o pelo do cão, ou seja, com a folga que o crescimento económico dá às contas públicas (para quem não gosta de economês, no fim do texto está explicado porque é que o Governo para o ano não vai reduzir o défice — Nota 2).

Só que algumas destas medidas são estruturais e dificilmente poderão ser retiradas no dia em que o dinheiro não chegar para tudo.

“É quando a maré baixa que se vê quem está a nadar sem calções.” A frase é de Warren Buffet mas encaixa perfeitamente nas contas públicas portuguesas. Vivemos à custa dos ventos de uma recuperação económica, que até foi muito mais forte nos nossos concorrentes diretos. Se convergimos com os mais ricos foi porque estes cresceram muito pouco, mas divergimos com os países com quem nos comparamos. Todos os anos fomos ultrapassados por um dos novos países do alargamento. E por este andar só a Grécia nos impedirá de chegar ao fundo da tabela.

Perante isto, o Governo insiste na estratégia: aumentar a despesa estrutural e pagá-la com receitas conjunturais. E nem uma palavra consistente sobre produtividade, competitividade ou investimento. É claro que no Orçamento do Estado os números brilham e o Governo faz o seu papel de vendedor de projetos de investimento que nunca concretiza. No léxico de Centeno, os números do investimento não são para cumprir, nunca foram.

Depois de um ano onde a ferrovia e o transporte ferroviário rebentaram por falta de investimento crónico, e onde até o dinheiro para pagar o combustível dos comboios estava cativado, o OE para 2019 promete milhões. Até 2023, à boleia dos fundos comunitários, serão 2,2 mil milhões de euros. Mas para o próximo ano são apenas 300 milhões, dos quais 120 milhões vêm da Europa. E ainda há mais promessas de milhões mas sempre a distribuir por vários anos, incluindo os destinados à compra de novos comboios, que mesmo que sejam encomendados agora só devem chegar daqui a cinco anos. E estes são os maiores valores de investimentos referidos - quando passamos para a Saúde, Educação, Ambiente, Defesa, Administração Interna e Justiça, é sempre a descer.

Mas o povo anda contente. E assim deve continuar até outubro de 2019. Ou pelo menos até que a maré continue suficientemente alta para esconder que o país vai nu.

NOTA 1

Excerto da entrevista a Mário Centeno publicada no Expresso a 6 de Fevereiro de 2016

“P: Nós precisamos de sorte neste Orçamento? R: A sorte é quando a preparação se junta à oportunidade. Nós precisamos de muita preparação e de aproveitar as oportunidades que temos. Portanto, sim, precisamos de muita preparação e de estar atentos às oportunidades.”

NOTA 2

Porque devia ser este um OE de superavit, explicado em economês

O défice de 2018 deve ficar nos 0,7% do PIB, valor que inclui medidas extraordinárias (como por exemplo a recapitalização do Novo Banco) e que valem 0,4% do PIB. Ou seja, o défice na realidade deverá situar-se nos 0,3% do PIB.

Como a economia vai crescer 2,2% no próximo ano, segundo as contas do Governo, isso terá um impacto positivo nas contas públicas de quase €1.800 milhões. Se a despesa não aumentasse, o Estado chegaria ao fim de 2019 com um superavit de 0,6% do PIB. Só que há medidas tomadas nos anos anteriores que irão ter impacto na crescimento da despesa e diminuição da receita em 2019 e que podem atingir os mil milhões. Mesmo assim, as contas públicas chegariam ao verde no final do próximo ano com uma folga de 200 milhões (0,1% do PIB). Mas o Governo escolheu gastar esse dinheiro e ainda mais algum e assim fechar o exercício com um défice de 0,2% do PIB. Um total de 600 milhões de euros para engrossar um orçamento em ano de eleições.