Em movimento
O que é um comboio? Às vezes um fascínio tranquilo, outras uma aventura imaginativa, outras uma melancolia da separação e do inatingível
Já aqui escrevi, numas férias de Agosto, sobre as liteiras de Camilo, embora não fossem as desconfortáveis liteiras que interessassem o romancista, antes o país profundo, as viagens longas, o convívio e a conversa, a profusão de tipos e a infinidade de histórias, a liteira enquanto princípio romanesco. Agora, num regresso a Lisboa, vou de comboio e leio um livrinho de Agustina Bessa-Luís sobre comboios, texto breve onde a viagem de comboio é definida, justamente, como “um processo romanesco”, um primeiro capítulo de uma história que se desconhece.
Para Agustina, o comboio equivale à província, ou à sua memória da província: os caixeiros-viajantes, os padres, os estudantes em férias, os contrabandistas, caçadores com os cães, almas snobes, almas sensatas, almas festivas, pessoas que lêem as “Décadas” de João de Barros ou comem requeijão, gente no tejadilho até, como nas imagens da Índia que todos já vimos. E o delegado do Ministério Público que vê passar o Sud-Express e não sabe se há-de ir para Condeixa ou para o Cairo. Teoricamente, o livro de Agustina é sobre os painéis de azulejos das estações de caminho-de-ferro, essa “poesia pobre” mas significativa, mas a escritora, como é seu timbre, afasta-se do tema e investiga os comboios, mais do que os azulejos. O que é um comboio? Às vezes um fascínio tranquilo, outras uma aventura imaginativa, outras uma melancolia da separação e do inatingível. E vêm à ideia as imagens dos comboios que observava ao longe, comboios-correio, comboios de mercadorias, comboios da noite com as suas “luzes remotas e fugidias”. Mas um comboio, além de uma recordação, é também uma mitologia. Uma mitologia civilizacional e, lembra Agustina, libidinal.
Há um clima de melodrama nos comboios. Anna Karénina atira-se para debaixo de uma locomotiva, porque o comboio é não apenas um epílogo da sua desgraça mas a continuação da sua ventura, o comboio como “viagem, fuga, fadiga sob um ângulo de distração e esquecimento”. Aliás, o próprio Tolstói fez de um comboio o seu caixão, quando, velho e doente, fugiu numa carruagem, no meio dos russos humildes, numa viagem que era velório em vida, volta de honra, despedida. Depois, no meio de grande tumulto, morreu na estação de Astapovo. São imagens que não esquecemos, mas existem tantas, o “cavalo de ferro” do Oeste, os comboios dos emigrantes que se vão embora e dos exilados que regressam à pátria, o Transiberiano que avança em territórios que nos parecem miríficos, dignos de Júlio Verne, como Irkutsk. E no cinema, quantos comboios, Agustina não se refere a Hitchcock, mas Hitchcock não se furtou a uma despudorada metáfora em “North by Northwest”, quando Cary Grant e Eva Marie Saint sobem para um beliche, e a imagem seguinte é o comboio a entrar num túnel. Uma alegoria sexual, o comboio? Talvez, mas sobretudo cosa mentale. O princípio do prazer a que o comboio obedece é o do movimento, mas também o do sono, o sono colectivo de tanta gente, quase uma orgia, diz Agustina. Nunca tinha encontrado uma definição assim dos comboios: “Sonos em movimento.” Um sono que é descanso e sonho, amnésia e fantasia, a máquina mecânica e a máquina que é o corpo em movimento perpétuo, através de cidades e bosques e descampados, numa viagem onde o mais importante não é chegar ao destino.
[Agustina Bessa-Luís, “As Estações da Vida”, Relógio D’Água]
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia