Shakespeare em versão Silly
Mais um Shakespeare? O coletivo SillySeason foi de residência artística para a Irlanda com a ideia de fazer um espetáculo de teatro contemporâneo a partir da questão ‘o que significa lidar com um legado que se recebe’. Ali, no mesmo espaço, cruzaram-se com artistas do teatro convencional, do teatro pós-dramático, da música erudita, da música pop e viram olhos a revirar quando disseram que iam trabalhar sobre “Rei Lear”. Um dos mentores que os acompanhou foi a cantora Peaches. “Encontrámos aversão a Shakespeare, mas gostamos precisamente da ideia de ser um autor muito feito, vamos pensar com ele”, conta Ivo Silva. Este é um “Testamento em Três Atos” que celebra e recusa o que celebra em três dimensões: família, teatro e Estado. “O Shakespeare representa o legado teatral, também queríamos trabalhar com os nossos pais. Daí a escolha de ‘Rei Lear’, peça que põe em relação gerações diferentes, sendo o rei ao mesmo tempo pai e Estado.” Os pais de Cátia Tomé, Ivo Silva e Ricardo Teixeira surgem no espetáculo em vídeo.
Deixaram-se filmar como um ato de confiança, sem saber nada da peça. “Queremos testar até que ponto podemos manipular os nossos pais como eles o fizeram na educação. Ao mesmo tempo que celebramos, interrogamos. Afinal, os pais são figuras de poder... Todas estas dimensões vão-se desdobrando e gerando diferentes interpretações. Tal como este legado da academia teatral nos condicionou e manipulou, também ao nível humanista e das ideias. Do mesmo modo este Estado nos manipula, porque nos dá uma liberdade condicionada, de que já falávamos na peça anterior, ‘Sugar’.” O vídeo tem uma presença determinante, assim como a música, novamente assinada por Ricardo Remédio. No início, tudo está em ordem. “Começamos certinhos, a cumprir o legado, a tentar dar-lhe voz, reproduzimos cenas do teatro clássico, que tratam da relação entre pais e filhos, como ‘A Gaivota’, ‘Hamlet’, ‘Frei Luís de Sousa’.” Mas esse é apenas o início. Depois da inação dos corpos — incapazes de agir por si próprios, “cansados, quase violentados por tudo o que deram” —, surge a revolta. “Aí instala-se o binómio tradição/revolução” e a recusa de tudo o que, até esse ponto do espetáculo estava a ser imposto. Este é um testamento para herdeiros que, diz Ivo, são também o público. “Entretanto, este testamento perde-se, porque ao mesmo tempo estamos a celebrar e a recusar. Quando recusas a tua raiz ou vais contra a tua tradição, o que é que fica?” Os SillySeason recusam-se a dar respostas. / Claudia Galhós