Teatro & Dança
O puro e os impuros
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“Mártir” é uma história exemplar sobre maneiras erradas de ler livros e de viver em sociedade
Texto João Carneiro
No início é um diálogo entre mãe e filho, ele chama-se Benjamim, está no ensino secundário e falta às aulas de natação. Porquê? Sinusite, drogas, problemas com os colegas ou com o próprio corpo, medo de se afogar, a mãe percorre o catálogo dos motivos possíveis, até ele dar a verdadeira razão: “motivos religiosos”. A mãe diz-lhe para ele não ser ridículo; ele diz que ela não o compreende. Na aula seguinte ele salta para a piscina todo vestido.
A escola começa a agitar-se, o diretor, a diretora de turma, a mãe, será que houve algum traumatismo? A mãe culpa a escola, a escola diz que não faz milagres, e Benjamim declara “guerra à imoralidade”; a Bíblia é o seu guia, e tudo aquilo, na piscina, o enoja, “os ombros nus” de uma, “as coxas” de outra, “a carne branca” e o biquíni de mais uma; Benjamim sente-se forte, o Senhor manda “que as mulheres usem trajes decentes, adornem-se com pudor e modéstia”, e não de biquíni. O diretor julga que o biquíni não é decente para as aulas na piscina, manda que daí em diante seja usado “vestuário de natação adequado”. O diálogo com o corpo docente presente na reunião, sobre as normas e os termos utilizados pelo diretor, é um modelo de inépcia argumentativa e de cobardia intelectual, dependendo dos intervenientes.
Benjamim continua a sua cruzada por aquilo que julga ser a palavra certa de uma religião, de uma ideologia, e de uma fé igualmente certa. Numa aula de biologia, perante as cenouras e os preservativos distribuídos aos alunos no contexto de uma explicação sobre contraceção e doenças sexualmente transmissíveis, pergunta se “as cenouras fazem engravidar”, se “as cenouras transmitem doenças venéreas”, e numa acusação que prenuncia muito do que se segue até ao final da história, conclui que “a professora fica com ideias sujas em frente do balcão de legumes do supermercado”. E de maneira análoga e inversa ao que fez na piscina, despe-se agora para testar os exemplos sexuais em causa. A professora é acusada pela direção de usar na aula “brinquedos sexuais”.
Depois de previsíveis incidentes a propósito da Teoria da Evolução e de Darwin, ou da relação entre os fenómenos de industrialização e alguns preceitos bíblicos sobre humildade, pobreza e despojamento, Benjamin abre-se em oração ao criador: “preciso de força agora porque tenho de fazer mal às pessoas para cumprir tua vontade”. É uma vontade que compreende pregar um grande susto à professora de biologia, a verdadeira inimiga, uma vez que, Benjamim descobre e afirma, ela é judia. E não é difícil encontrar passagens bíblicas contra os judeus. Mais tarde, quando a professora o tenta impedir de pregar uma cruz na sala de aula, e procura fazê-lo descer da mesa para onde subiu, Benjamim grita “Não me toque! Tocou em mim. Vai arder no Inferno. Ela tocou em mim. Ela tocou em mim.”
O desfecho não é simpático, ou como se costuma dizer, não é nada bonito de se ver. A escola ‘sacode a água do capote’ para cima da professora, que se calhar tem culpa daquilo que — exageradamente, segundo o diretor — ela chama “ataques antissemitas”. E o golpe não se faz esperar, na reunião final com a direção, professores, mãe e aluno: “Ela tocou-me na sala dos professores, estávamos sozinhos… tocou-me aqui, e aqui, e aqui, eu gritei, que não gritasse, disse-me ela…” À incompreensão inicial e subsequente incredulidade da professora, contrapõe-se a iluminação da mãe, da direção e dos colegas — como é que não tinham visto que afinal era daquilo que se tratava? Que ela estava obcecada pelo rapaz?
O mal, afinal, está mesmo à nossa frente; basta querer, e saber, vê-lo.
“Mártir”, que estreou em 2012 na Schaubühne, em Berlim, tem encenação de Rodrigo Francisco e interpretação de Ana Cris, Vicente Wallenstein, André Albuquerque, Inês de Castro, Ivo Marçal, João Cabral, Pedro Walter e Tânia Guerreiro.
“Mártir” é uma história exemplar sobre maneiras erradas de ler livros e de viver em sociedade