O dia prometido
Parecia a celebração de uma vitória civilizacional, uma antecipação mais elegante daquela rave, em Zion, com que o “Matrix Reloaded” viria a terminar: Caron Wheeler, com uma espantosa trena no cabelo, e restante trupe Soul II Soul, a cantar e dançar frente a um cenário composto por baixos-relevos egípcios. “Keep on moving/ Don’t stop like the hands of time/ Click clock, find your own way to stay/ The time will come one day”, dizia a canção, e, de facto, Wheeler, em 1989, estava há uma boa década à espera. Se não de uma emancipação qualquer às mãos de uma figura messiânica, quanto mais não seja, de respeito — pelo menos desde que com Pauline Catlin e Carol Simms, no trio Brown Sugar, deu expressão no início da era Thatcher a algo tão problemático quanto “Black is the colour of my skin/ Black is the life that I live/ And I’m so proud to be the colour that God made me/ And I just got to say/ Black is my colour”, altura, convém não esquecer, em que neonazis marchavam orgulhosamente pelas ruas de Londres.
E é nesse contexto que se compreende que elas cantassem coisas como ‘Dreaming of Zion’. Aliás, no período, as forças políticas mais radicalmente reacionárias estrangulavam de tal forma a sociedade britânica que Dennis Bovell lançou um single chamado ‘Don’t Call Us Immigrants’. Não admira que produzindo temas das Brown Sugar tivesse gerado um tipo de lovers rock de intervenção — um que, antes de mais, pudesse intervir na própria música do seu tempo. Dito e feito: “You must treat your lover girl right/ If you wanna make lover’s rock”, ouviu-se no “London Calling”, dos Clash. Isto, porque atualizando uma mensagem feminista que, como na época das Crystals, Shirelles e Ronettes, não dispensava inocentes “shoo-bop/ shoo-bap”, Wheeler, Catlin e Simms não hesitavam igualmente em mostrar-se convictamente independentes: “You never seem to understand me/ Well, not the way I want you to/ And if you’ve thought of leaving me/ I suppose that’s the best thing you could do.” Não foram ‘Typical Girls’ (Slits), mas quase ninguém deu por isso. Afinal, talvez seja hoje o tal dia prometido. / João Santos