A palavra
O título parece vir celebrar e subverter aquele velho ideal subjacente à linguagem: de que lidamos com um código transparente, comum, prático, funcional, sem grandes angus dialetais. Nessa medida, servirá para recordar que nestas andanças, como acerca da poesia disse um dia Charles Simic, ainda se tenta “fazer a ponte sobre o abismo que se estende entre o nome e a coisa”. Seja como for, parafraseando Aleksei Kruchenykh, por trás de uma palavra nova terá de haver um “transentido” qualquer. Agora, conforme adianta Kevin Whitehead, em notas de apresentação, o neologismo recorre às primeiras sílabas de três palavras que Andrew Cyrille desejou abreviar: Leland (no Mississípi), Brooklyn (em Nova Iorque) e Baltimore (em Maryland), respetivamente as cidades onde Smith, ele próprio e Frisell nasceram.
Portanto, nada tão inescrutavelmente novel quanto Sydmeladperbrisho (proposto para designar a futura sede do Governo australiano, atual Camberra, com base nas primeiras letras das capitais estaduais do país), nem tão banalmente encriptado quanto ‘Airegin’, de Sonny Rollins (Nigéria, escrito de trás para a frente). Miles Davis, por exemplo, foi outro desses que andaram para aí a ler termos ao espelho: Selim, no caso. E é dele — ou melhor, do seu segundo grande quinteto — um conceito que esta música traz à memória quando dá mostras de desviar a ênfase da harmonia para o ritmo; isto é, quando usa “time, no changes”. É um pouco como a descoberta da abstração — como o instante em que uma criança pega num caderno de colorir e toma consciência de que pode haver um mundo para lá das margens previamente estabelecidas. Ou seja, trata-se de uma prática que ignora aquilo que por norma se caracteriza como ‘padrão de fábrica’. Nada que, cada um à sua maneira, Cyrille, Smith e Frisell não ensaiem há anos, mas também algo que há muito não faziam com a capacidade de espanto tão intacta quanto aqui, tão cientes da importância de ser de um lugar e tão dispostos a criá-lo do zero, como quem inventa uma palavra. / João Santos