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Bach: Variações Goldberg

Angela Hewitt

Gulbenkian, Lisboa, dia 13

Para presenciar a interpretação das “Variações Goldberg” BWV 988 de Angela Hewitt (Otava, 1958), uma revoada de ‘goldbergófilos’ compareceu no auditório esgotado desde há meses. À entrada do recinto reinava uma atmosfera de excitação, falando-se animadamente de escolha de instrumentos modernos e versões favoritas, umas míticas como as séries do seu compatriota Gould, outras muito antigas (Yudina), outras disponíveis (Serkin, Nikolaeva, Tureck, Kempff, Perahia, Schiff, Hewitt) e uma recente de Beatrice Rana. O público sabe da existência de uma multitude de possíveis na interpretação das “Goldberg”, uma peça paradigmática que Bach publicou em 1741, uma obra a exigir que nos desenvencilhemos de todas as escórias do dogmatismo quanto a interpretações, aceitando-se o princípio de Heraclito segundo o qual as águas do rio e o próprio banhista estão em perpétua mudança, de tal forma que ninguém se banha duas vezes no mesmo rio de maneira idêntica. A pianista canadiana pisou o palco lisboeta com um passo vigoroso, nuns delicados sapatinhos de seda dourada e envergando um vestido com corpete de lantejoulas que faiscaram ao longo dos 90 minutos da sua exibição. Mas o que cintilou sobremaneira foi a qualidade poética da sua interpretação, nos antípodas das gravações de Gould. Com o sentido das frases longas perfeitamente dominado nas fugas, na leitura fortemente contrastada de tempos lentos em variações como a 9, 13 ou a 15 e de tempos vertiginosos das variações 4 e 17, ou ainda expondo uma dimensão de tempo suspenso na nº 25, a longa meditação da ‘pérola negra’ das “Variações Goldberg”, Hewitt cometeu a proeza de fazer sobressair todo o requinte da rede que se entretece entre a escuta e a estruturação das “Goldberg”, pela forma como modelou a arquitetónica do conjunto. A sua clareza contrapontística, o sentido de animação e de dança, a variedade dos fraseados, a forma como equilibrou as várias ‘vozes’ das variações, em exploração incessante das inesgotáveis facetas de uma obra que Hewitt transformou num dos seus morceaux de bravoure, fez com que a assistência se levantasse impetuosamente para a aplaudir no final do recital, entregando-se sem reservas ao sortilégio, inteligência e musicalidade da sua leitura. / Ana Rocha

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Vai e Vem

Márcia

Warner

Quando, hoje, pensamos em escritores de canções, Márcia destaca-se facilmente na fila da frente dos melhores que Portugal viu nascer na última década. E este novíssimo “Vai e Vem” chegou para comprovar isso mesmo. Não desmerecendo, de todo, o caminho que trilhou até ao momento (“Dá” deu-nos umas preciosas ‘Cabra-Cega’ e ‘A Pele que Há em Mim (Quando o Dia Entardeceu)’; “Casulo” aprofundou uma particular sensibilidade para a melodia; “Quarto Crescente” foi um evidente salto em frente), nesta nova coleção de canções assistimos a um pico de prodígio. Com uma voz que agarra as palavras e só as larga quando delas consegue sugar toda a doçura que têm para dar, mesmo quando o fel é mais do que o mel, Márcia empurra-nos para o meio de tempestades e envolve-nos entre desabafos de amor e histórias de despeito e perda, tentando encontrar uma nova luz do outro lado. Fá-lo recorrendo a paisagens familiares (em ‘Tempestade’ e ‘Pega em Mim’, dueto com Salvador Sobral, reconhecemo-la facilmente) mas arrisca-se também em território pouco explorado, auxiliada pela nova relação que criou com a guitarra elétrica e pela coprodução cuidada de Filipe C. Monteiro e Kid Gomez. O dramatismo com embalo tropical de ‘Vai e Vem’, cantada em duelo suave com António Zambujo, a frontalidade acirrada de ‘Corredor’, a belíssima mensagem de amor de ‘Agora’ e uma sapiência pop bem explorada em momentos como ‘Manilha’ ou ‘Tempo de Aventura’ revelam uma artista que não tem medo de se provocar e sair de pé. Mas é, particularmente, no sussurro ferido e enigmático de ‘Emudeci’ (com Samuel Úria a multiplicar-lhe a voz como só ele poderia) e no arrepiante hino de empoderamento ‘Mil Anos’ (escrito e produzido totalmente por ela) que “Vai e Vem” floresce como o disco da maturação de uma artista completa, que vai buscar certezas ao constante questionamento e autoanálise. “A tua história vais ter de a escrever”, desafia-nos no final de ‘Mil Anos’. A dela, com todas as suas superações e recomeços, está cada vez mais bonita. / Mário Rui Vieira