Histórias de ressentimento e políticas de identidade
O que é que o desprezo suscitado pela ciência política, por parte de Vasco Pulido Valente e Fernando Rosas, tem que ver com o novo livro do politólogo norte-americano Francis Fukuyama?
texto diogo ramada curto
Pelo menos num ponto, Fernando Rosas e Vasco Pulido Valente estiveram, muito recentemente, de acordo. Para ambos, a ciência política, enquanto disciplina de análise dos processos sociais e políticos, é irrelevante. O consenso é tão inesperado quanto intrigante. Como é que dois dos mais conhecidos historiadores e intelectuais públicos portugueses — com posições políticas diferentes, expressas, respetivamente, numa conferência na Biblioteca Nacional (15-11-2018) e numa entrevista ao “Público” (21-10-2018) — convergiram no mesmo desprezo por uma disciplina, não sei ao certo explicar.
Inveja corporativa dos historiadores em relação aos politólogos? Denúncia de uma disciplina que impõe os seus métodos comparativos e arrisca análises em grande escala, em detrimento do estudo do facto único ou das particularidades históricas? Desconfiança, um tanto ou quanto provinciana, por parte de quem pouco circulou internacionalmente, desconhecendo os campus universitários norte-americanos, que se afiguram hegemónicos na produção da ciência política? Suspeição, mais ou menos conspirativa, em relação a uma ciência que parece não passar de uma forma de ideologia, ao serviço do Estado?
Todas estas questões respeitantes ao desprezo suscitado pela ciência política, por parte de dois historiadores e intelectuais públicos portugueses, vêm à baila no momento da publicação em português do novo livro do politólogo norte-americano Francis Fukuyama, da Universidade de Stanford, “Identidades: A exigência de dignidade e a política do ressentimento”, numa esmerada tradução de Miguel Freitas da Costa (D. Quixote).
Quem adotar o ponto de vista de Rosas e de Pulido Valente nem sequer se dará ao trabalho de ler este livro de ciência política. Ou seja, haverá com certeza muitas pessoas que se irão identificar com a bandeira da história política, quer à esquerda quer à direita, e não irão ter qualquer curiosidade por este livro. Mais: a força do ressentimento dessas mesmas identidades levará, muito provavelmente, mais quem é de esquerda a desprezar o livro de um autor conotado com a celebração do modelo liberal norte-americano, desde a publicação do seu best-seller, intitulado “O Fim da História e o Último Homem” (Gradiva, 1ª ed. 1992, no qual se retoma a argumentação exposta em artigo de 1989).
Tendências autoritárias e disparidades crescentes
Segundo Fukuyama, há no presente uma tendência, percetível a uma escala mundial, de difusão de nacionalismos populistas, associados à criação de regimes autoritários. O slogan de Trump acerca da “America first” representa bem o modo como os líderes populistas estabelecem ligações diretas com o “povo”, ultrapassando os limites impostos pelas instituições dos Estados democráticos: tribunais, parlamentos, meios de comunicação independentes e burocratas independentes. Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, Kaczynski na Polónia e Duterte nas Filipinas correspondem bem à categoria de líderes populistas.
Desde o início de 2000, a terceira vaga de democratização, segundo Huntington, entrou em recessão e o número de países autoritários começou a crescer. Concretamente, existiam apenas 35 democracias eleitorais em 1970. Nas três décadas seguintes — com particular intensidade entre 1989 e 1991, quando se assistiu ao fim do comunismo na Europa de Leste e ao fim da antiga URSS — atingiu-se o número de 110.
As nossas próprias bandeiras identitárias — à esquerda ou à direita — poderão ser postas em causa pela visão equilibrada, centrista, assumida por Fukuyama
Como explicar essa recessão democrática, a que correspondem novas tendências autoritárias e nacionalismos populistas? O que equivale a perguntar: o que correu mal nas democracias liberais e no mundo que possa explicar o seu abandono. Fukuyama argumenta que as democracias modernas não conseguiram resolver nem satisfazer o desejo que existe de reconhecimento da nossa dignidade. O mesmo se passa à escala das relações entre Estados. Existem países que, por não se sentirem respeitados, exacerbaram uma espécie de nacionalismo agressivo. Seguiram um padrão de comportamento paralelo ao dos crentes religiosos que, ao sentirem a sua fé ameaçada, procuraram afirmá-la de um modo que pode revestir formas de violência.
A partir do início de 2000, não foi só a tendência para nacionalismos populistas e regimes autoritários que cresceu, existem outros indicadores que importa ter em conta, pois ambos correspondem a desigualdades e disparidades crescentes. Por um lado, entre 2000 e 2016, metade dos norte-americanos viu os seus rendimentos estagnarem e, entre 1974 e 2018, a percentagem que vai para 1% da população passou de 9% do PIB para 24%. Por outro lado, a globalização está a produzir, cada vez mais, disparidades, representadas por populações que são deixadas para trás pelo crescimento geral. Neste mundo de pobres e ricos, a classe média tende também a esvaziar-se. Nos Estados Unidos, segundo o FMI, as pessoas com salários 50 a 150 por cento o salário mediano caíram de 58 para 47% da população, no período compreendido entre 2000 e 2014.
A busca da dignidade e a expressão do ressentimento
Não são só os regimes autoritários que crescem, ao lado de nacionalismos populistas, e as disparidades que aumentam, há igualmente mudanças de orientação nas lutas políticas. Estas têm vindo a acentuar-se, segundo Fukuyama, desde o início da segunda década do século XXI. Mais precisamente ao longo do século XX a esquerda lutou pela igualdade, na defesa dos trabalhadores, dos seus direitos sindicais e em modos de regulação que permitissem uma melhor redistribuição da riqueza, isto é, uma sociedade mais igualitária. Enquanto a direita procurou reduzir o intervencionismo do Estado, ao mesmo tempo que promoveu a iniciativa privada.
Porém, com a entrada no século XXI, uma nova tendência se impôs. A esquerda abandonou a luta pela igualdade económica, concentrando-se na defesa das minorias ou dos grupos considerados marginais: “negros, imigrantes, mulheres, hispânicos, a comunidade LGBT, refugiados e outros parecidos” (pp. 24-25). Enquanto a direita reorienta, agora, as suas lutas para a proteção da identidade nacional tradicional, que surge muitas vezes associada à raça, etnicidade e religião. Em ambos os casos, que definem uma oposição no interior de um largo espectro político, são as políticas de identidade que importam.
Porém, esta luta pelo reconhecimento de uma identidade própria não pode ser reduzida ao que se passa nos campus universitários nem à defesa do nacionalismo branco, enquanto símbolos do que a esquerda ou a direita respetivamente defendem. É que as políticas identitárias são extensivas a fenómenos mais amplos que estão a conduzir ao renascer de novos nacionalismos e a um Islão politizado. Sendo ainda de acrescentar que as lutas pelo reconhecimento da identidade de grupos ressentidos, porque marginalizados, pode derrapar numa exigência pelo reconhecimento da superioridade do grupo. É o que se constata, sobretudo, na história da identidade nacional e das formas de extremismo religioso.
Terrorismo e classe operária empobrecida
Os motivos que sustentam o terrorismo jiadista estão relacionados com questões psicológicas de identidade e não tanto com questões religiosas. Se fosse a religião a determinar os comportamentos ditos terroristas, como seria possível explicar o não-envolvimento no terror de mil milhões de muçulmanos? Nem as questões religiosas nem as da pobreza, pois muitos terroristas são oriundos da classe média, podem explicar os comportamentos dos jovens jiadistas. Apanhados, geralmente, entre duas culturas — a dos pais que rejeitam e a do país de adoção em que se veem alienados —, é no Islão radical que encontram “uma comunidade, aceitação e dignidade” (p. 92).
Por sua vez, a classe operária norte-americana, desde a década de 1970, não tem tido uma vida fácil. Os seus rendimentos têm diminuído. Conforme se constata nos grupos de afro-americanos que, após a II Guerra Mundial, migraram para cidades tais como Chicago, Nova Iorque ou Detroit, para trabalhar nas indústrias da carne, do aço ou do automóvel. A desindustrialização dessas áreas criou enormes bolsas de pobreza (as taxas de criminalidade e o consumo de drogas subiram e a vida familiar desestruturou-se, com um aumento significativo de crianças a crescer em famílias monoparentais).
Este mesmo padrão passou também a caracterizar a classe operária branca, pelo menos desde a última década. O ressentimento desta última fez-se sentir em relação aos mais pobres, a começar pelos imigrantes, e às elites. Os primeiros foram acusados de não merecerem nada e estarem a ser favorecidos, por isso a imigração é, hoje, uma ameaça à identidade cultural e uma questão central não só nos Estados Unidos, mas no mundo inteiro; enquanto as elites políticas passaram a ser vistas, pelos ressentidos, como incapazes nos seus jogos corruptos e, sobretudo, inábeis para reconhecer e respeitar os grupos empobrecidos. Mais concretamente, a gente de província, que é a base dos movimentos populistas nos Estados Unidos e não só (Reino Unido, Hungria, Polónia, etc.) sente que as elites citadinas e cosmopolitas ameaçam os seus valores (p. 144).
Segundo Fukuyama, o problema não está só na capacidade do nacionalismo populista dar visibilidade, reconhecer ou reconstituir a dignidade dos grupos oriundos das áreas desindustrializadas ou das grandes bolsas de pobreza. Uma das grandes questões reside nas responsabilidades que devem ser atribuídas à esquerda, por ter abandonado a defesa da solidariedade da classe operária ou dos explorados, para se focar “em grupos cada vez mais pequenos que são marginalizados de maneiras específicas” (p. 114). Tal como se a esquerda tivesse renegado as suas próprias tradições universalistas, em benefício do reconhecimento de nichos ou grupos particulares.
O Que fazer?
Uma vez que é difícil negociar entre esta ou aquela identidade, sobretudo quando estas surgem associadas a aspetos biológicos, de raça, etnicidade ou género, Fukuyama recomenda que não se pode abandonar a ideia de identidade. “O remédio é definir identidades nacionais mais amplas e mais integradoras que tomem em conta a real diversidade das sociedades democráticas existentes” (p. 147). O projeto político do autor consiste, então, em reforçar uma identidade nacional democrática, integradora, contra todas as formas de etnonacionalismo que, ao longo do século XX, deram má fama ao nacionalismo. Tanto mais quanto a identidade nacional pode ser importante para definir a qualidade do governo. Pois as políticas orientadas para a satisfação do interesse público podem suscitar desenvolvimento e ajudar a resolver questões na África Subsariana, no Médio Oriente e na América Latina.
Podemos discordar de Fukuyama em muitos pontos, mas não lhe podemos negar uma enorme clareza argumentativa. Tão-pouco se lhe pode deixar de atribuir capacidade para interpretar, a uma escala tão geral, as principais tendências da sociedade em que vivemos. Ou seja, pode apontar-se que, a respeito do modelo terapêutico construtor de identidades individuais, se sente a falta de uma reflexão mais profunda que parta dos escritos de Michel Foucault. E que a propósito dos diversos tipos de nacionalismo, Ernest Gellner seja citado, mas Benedict Anderson esteja ausente, sendo preferível tomá-lo como guia das lacunas teóricas do nacionalismo, em comparação com Pierre Manent. Também se podem levantar dúvidas sobre o tratamento em bloco dos movimentos sociais da década de 1960. Pois não será a luta de Luther King uma tentativa para fazer valer direitos a uma grande escala, bem distinta da questão dos nichos identitários fragmentados?
Por último, as nossas próprias bandeiras identitárias — à esquerda ou à direita — poderão ser postas em causa pela visão equilibrada, centrista, assumida por Fukuyama. Mas da mesma forma que, ao longo da leitura do livro, constatámos o modo como o autor recorre a contrastes e antinomias para depois os ultrapassar, numa espécie de processo dialético, também será possível aprender que vale a pena pôr de lado as nossas certezas identitárias, para procurar conhecer um ponto de vista sobre a sociedade em que vivemos, mesmo que não o tomemos como cartilha única de análise do social.