O homem
que quer
parar o

cancro

Polémico e insubmisso, Steven Narod ataca: “As pessoas que discordam de mim não me interessam.” Um dos maiores especialistas em cancro hereditário quer rastrear o mundo para evitar um mal sempre à frente da Medicina

texto Christiana Martins fotografias ana baião em Toronto

Para uns, a mão de Deus. Para outros, efeito do destino. Para ele, biologia associada à estatística. Steven Narod, médico canadiano, assumiu uma missão à dimensão da sua confiança: quer, com base na compreensão do mistério de sermos como somos, evitar que todos os anos milhões de pessoas desenvolvam vários tipos de cancro. É como se quisesse parar a mão de Deus ou desarmar os efeitos do destino, aplicando o raciocínio lógico e os instrumentos da ciência à amplitude da vida e da morte. No fundo, quer salvar presentes e garantir futuros.

Diretor da Unidade de Pesquisa de Cancro Familiar do Women’s College Hospital (WCH), em Toronto, Narod é um homem polémico. Entre os colaboradores é reverenciado e a evidente falta de filtros sociais é desculpada como absolutamente secundária. Entre os congéneres, inclusive em Portugal, há quem diga que “vai para lá do razoável científico”. Mas é aos números que o médico se agarra para sustentar as suas posições, afastando a contestação e garantindo que com um rastreio universal para identificar quem tem mutações genéticas que potenciam o surgimento de alguns cancros poderá ser reduzida para metade a taxa de mortalidade dos atuais 20 e 25%. “As pessoas que discordam de mim não me interessam”, assume ao Expresso, em Toronto, entre um copo de café e um bolo, ao início da manhã de um dia de trabalho.

Todos os anos são identificados cerca de 700 mil casos de cancro da mama em todo o mundo, segundo o Global Cancer Observatory. Destes, cerca de sete mil poderiam ser evitados. Em Portugal surgem anualmente 40 mil novos casos de cancro de vários tipos e morrem mais de 20 mil pessoas. Só da mama são identificados quase sete mil casos anuais. Destes, calcula-se que entre 5 a 10% tenham origem hereditária. Ser portador de um gene BRCA 1 ou 2 não garante o surgimento da doença, mas é uma importante indicação de que, em comparação com uma pessoa que não seja portadora da alteração genética, há um risco acrescido de vir a apresentar a doença. Ter uma mutação destas aumenta em até 80% o risco de desenvolver cancro da mama ao longo da vida e entre 15 (BRCA 1) e 40% (BRCA 2) de ver surgir cancro do ovário.

Todos os anos, são identificados 700 mil casos de cancro na mama em todo o mundo, destes, cerca de sete mil poderiam ser evitados

Por trás das estatísticas estão as letras e agarrado às letras está Narod. BRCA significa Breast Cancer Susceptibility. Os já referidos BRCA 1 ou 2 são genes supressores tumorais localizados no braço longo do cromossoma 17, o primeiro, ou no cromossoma 13, o segundo. A proteína codificada por estes genes tem um papel fundamental na manutenção da estabilidade genómica, atuando também como supressor tumoral, ou seja, coopera na reparação do ADN danificado e na destruição da célula em que o ADN não pode ser reparado. E quando a mutação está presente esta cooperação não se dá.

É esta falha que abre espaço à atuação de Steven Narod. Em 1994 fez parte da equipa que descobriu o gene BRCA 1 e um ano mais tarde, lá estava quando se identificou o BRCA 2. Na mesma altura em que chegou ao WCH para não mais sair. Em março de 2017 lançou aquela que é provavelmente a sua mais ambiciosa iniciativa, o Screen Project, em colaboração com um laboratório norte-americano. Desde então, qualquer canadiano/a com mais de 18 anos que o deseje, pode encomendar um kit pela internet, que receberá em casa numa semana. Uma pequena caixa de papel com uma imagem de uma família sorridente no topo e já com a devolução do correio paga. Basta abrir, ler as indicações, cuspir para dentro de um recipiente, preencher uma ficha de identificação e enviar para o laboratório. E, entre 15 dias a um mês, no máximo, terá a resposta sobre se é ou não portador de uma alteração genética BRCA. Tudo por cerca de 88 euros.

“Há seis anos tentámos lançar o projeto, procurámos vários laboratórios em Ontário, mas foi difícil vencer a burocracia. Entretanto, algumas empresas norte-americanas mostraram-se interessadas. Encontrámos um parceiro nos Estados Unidos e avançámos. Sei que a sustentabilidade a longo prazo depende de o teste ser rentável, mas, no início, queríamos apenas provar que era exequível e, principalmente, que havia interesse das pessoas em participar. Não há dinheiro do Estado nem do hospital, o financiamento é feito com base nos pagamentos efetuados pelos doentes”, explica Narod, que assegura estar pronto a exportar a ideia para qualquer país que se mostre interessado (ver texto no Primeiro Caderno). Uma ideia que parece revolucionária sobretudo porque ainda não passou uma década sobre o tempo em que os preços dos testes genéticos deste tipo oscilavam entre 875 e 3600 euros.

Mas se o teste é tão simples e barato, porque é que ainda não é feito de forma generalizada em mais países? É nesta resposta que a personalidade de Steven Narod vem ao de cima: “Porque os outros médicos estão atrasados. O nosso hospital é onde fazemos tudo primeiro! É onde mudamos a forma de fazer medicina. Gastei 25 anos a investigar e desenvolver programas genéticos e projetos de rastreio sobre o cancro hereditário e, por isso, quem não concorda comigo não me interessa. Cerca de 90% das pessoas olham apenas para as linhas orientadoras que já estão fixadas. Nós não, nós desafiamos o que está previsto, desafiamos as normas.” O médico que não se inibe de fazer afirmações destas é o homem que não se levanta para se despedir dos visitantes, que se exaspera com a perda de tempo e prefere o basebol ao futebol porque no primeiro aplica modelos matemáticos e prevê o resultado e, no segundo, tem de torcer por algo que lhe escapa.

Os números são o chão que Steven Narod pisa. A sua origem é a Saúde Pública, exerce na área da Oncologia, mas o seu território é a Bioestatística. Entre os médicos portugueses que o conhecem, como Luís Costa, presidente da ASPIC (Associação Portuguesa de Investigação em Cancro), é referenciado como “um grande matemático, um homem muito inteligente”, de tal forma que foi escolhido como conselheiro do BRCA 2-P, um projeto nacional inovador para a identificação dos portadores portugueses da mutação fundadora e das suas características.

A estatística é o território do canadiano porque a análise de dados reforça as suas conclusões. Os elementos disponíveis apontam para que 55 a 65% das mulheres que herdaram BRCA 1 e 45% daquelas com BRCA 2 venham a desenvolver cancro da mama até aos 70 anos. Um tema que ganhou relevância mediática em 2013, quando da massa anónima de afetadas um nome planetário, a atriz Angelina Jolie, anunciou ao mundo, num artigo de opinião em “The New York Times”, que era portadora de uma alteração genética BRCA 1 e tinha feito uma mastectomia bilateral e retirado os ovários, a única forma verdadeiramente eficaz de evitar a doença.

Embora não assuma, deverão também ter sido os números que fizeram despertar em Steven Narod o interesse pelo cancro hereditário. “Só identificamos cerca de 5 a 10% dos portadores de mutações genéticas capazes de provocar o cancro hereditário. Miseravelmente, depois de 20 anos dedicado a esta área, percebi que só conhecíamos uma em cada 10 mulheres com a mutação. Eu perguntava-me ‘onde estão as outras?’ A resposta depende da criação de um sistema em que todas as pessoas que quisessem ser testadas pudessem sê-lo, para que encontrássemos aquelas que faltavam. Foi assim que surgiu o Screen Project.”

<span class="arranque">Humor</span> Quando questionado se conhecia Angelina Jolie, Narod respondeu com ironia: “Continuo à espera de um telefonema”

Humor Quando questionado se conhecia Angelina Jolie, Narod respondeu com ironia: “Continuo à espera de um telefonema”

Portugal tem um espaço especial neste universo, com direito a uma mutação específica, chamada mutação fundadora portuguesa e que explica pelo menos um terço de todo o cancro da mama hereditário existente em Portugal. Identificada no início dos anos 2000, primeiro por um investigador belga e quase em simultâneo por uma equipa do IPO de Lisboa, a mutação atraiu a atenção de Steven Narod. O médico alerta, por exemplo, que alguém que receba uma resposta negativa num teste genético que procure a alteração nacional poderá não ser portador desta mutação específica, mas poderá fazer parte dos dois terços restantes que podem ter uma outra alteração dos genes BRCA 1 e 2 e, desta forma, apresentar também predisposição para desenvolver uma neoplasia.

Há quase quatro anos, Portugal entrou na geografia de Steven Narod pela mão de uma alemã. Tamara Milagre, presidente da Evita (Associação de Apoio a Portadores de Alterações nos Genes Relacionados com Cancro Hereditário) lembra-se bem da ocasião em que cruzaram caminhos e objetivos. “Estava em Filadélfia, numa conferência, olhei à minha volta e vi centenas de jovens mulheres carecas, cansadas, mutiladas e assustadas e pensei: ‘Como é possível? Estas mulheres temem pela vida, receiam não ver crescer os filhos ou nem ser mães e tudo isso poderia ter sido evitado’. Foi então que avistei Steven Narod. Fui ter com ele e apresentei-me, sorrindo. ‘Olá, sou a Tamara, a representante dos portadores do belo Portugal.’ Primeiro, pareceu assustado com o meu ‘assalto’, mas quando ouviu a palavra ‘Portugal’ iluminou-se-lhe logo a cara. ‘Portugal, curioso... estou interessado em trabalhar com os colegas europeus’. Não pensei duas vezes, convidei-o a vir a Lisboa e comprometi-me a organizar uma reunião com os melhores investigadores portugueses. Na mesma noite, já com a sua secretária incluída, comecei a trocar mensagens para encontrar uma data para a sua vinda. E assim nasceu, à velocidade da luz, o BRCA European Congress 2015, de que resultou o projeto BRCA 2-P e também a nossa amizade.” Uma primeira viagem que já se multiplicou em várias e na descoberta por Narod da gastronomia e do vinho portugueses.

Também ela portadora de uma alteração genética, Tamara Milagre fez uma mastectomia bilateral e retirou os ovários, depois de uma pesadíssima história de cancros na família. Defensora da realização de um rastreio universal, incluindo as pessoas que não cumprem os critérios protocolados para aceder a testes genéticos, diz que esta opção “faz todo o sentido, só pelo facto de 50% dos portadores não apresentarem história familiar evidente, passando a mutação pelo lado paterno ou tendo uma família pequena, sem irmãos ou primos”. E não esquece o ensinamento de Mary-Claire King, geneticista que participou na identificação do gene BRCA 1: “Cada pessoa identificada como portadora de mutação depois de ter cancro representa uma falha na prevenção da doença!” Acredita que o modelo canadiano é perfeitamente adaptável a Portugal.

Para Narod, a alemã sintetiza o que de melhor há em Portugal. “Já contactei várias vezes alguns médicos portugueses. Não pareceram nada entusiasmados, mas trabalhar com Tamara é ter acesso a um interessante sentido de otimismo.” De tal forma a relação é positiva que a associação Evita está a preparar-se para colaborar com aquela que é considerada a maior base de dados mundial sobre cancro da mama hereditário, criada e desenvolvida pela equipa do WCH. São informações de mais de 10 mil mulheres de dez países, atualizadas a cada dois anos, e que passarão a contar com os resultados das mulheres portuguesas. Um elemento determinante para o trabalho do especialista que classifica Portugal como o país europeu mais afetado pela mutação do gene BRCA 2. “Esta é uma mutação com um elevado impacto na vida das mulheres, e em Portugal especificamente como em nenhum outro país europeu, talvez apenas com a exceção da Islândia.”

Metade das portadoras de alterações genéticas fazem mastectomias e 80% retiram os ovários. As outras podem atrapalhar as estatísticas de sucesso do especialista canadiano

O tempo de procurar novas mutações genéticas acabou, vaticina Narod, focado agora no mapeamento dos portadores dos genes BRCA 1 e 2. “Basta um único teste; não interessa a origem étnica da pessoas, se é judia, portuguesa, grega, ou o que for, não me interessa se há casos familiares ou não. Nem mesmo interessa se a pessoa já teve cancro ou não. Quando o teste custava mais de mil dólares, este tipo de questões poderia ser relevante; com um teste a custar cem dólares, já não interessa. Não estou focado nas diferenças, mas nas semelhanças”, resume.

Ancorado em certezas, avança com uma segurança que chega a surpreender. “Estamos dez anos à frente dos demais. As pessoas vão perceber o erro que estão a cometer ao insistirem no que dizem ser a medicina personalizada.” Confrontado com a falta de modéstia em fazer afirmações como esta, Narod cala-se por longuíssimos 12 segundos. Insiste-se com nova pergunta: “Está à procura do Nobel?” O médico reage e quebra a tensão, dizendo que não se premeiam atitudes como a dele e que quer apenas “maximizar o impacto das investigações e das descobertas na vida das pessoas de todos os países”.

Apesar do tempo dedicado à investigação, Narod continua a encontrar-se com as doentes com cancro. Todas as mulheres que foram identificadas com uma mutação no âmbito do Screen Project têm oportunidade de se reunir pessoalmente com ele. Diz que quando contacta com estas mulheres percebe que já estão preparadas para discutir as consequências do diagnóstico, ou seja, prontas para avançar com as cirurgias preventivas. Cerca de metade das portadoras das alterações genéticas avança com mastectomias e 80% retiram os ovários. As outras, as que não optam pela prevenção cirúrgica, são aquelas que podem atrapalhar as estatísticas de sucesso do especialista canadiano.

Se a matemática é uma referência incontornável no percurso do médico, Narod não será indiferente ao fator humano, mas é preciso determinação para encontrar esta relação. O seu gabinete no WCH é surpreendentemente pequeno. Uma secretária repleta de papéis, aparentemente desorganizados. Um pedestal com um livro de arte, aberto no que à distância parece ser uma pintura de Chagall. Parece, porque ele não convida a entrar, o que se vê é o que se consegue detetar a partir da porta. Na estante enfileiram-se títulos apetitosos para quem quer desvendar a personalidade que o médico se recusa a partilhar. Biografias de Estaline e Vladimir Putin, obras sobre a ascensão do Islão ou o colapso das civilizações, títulos óbvios, como “The Cancer Wars: How Politics Shapes What We Know and Don’t Know About Cancer” ou o sucesso de vendas “Being Mortal”, que discute a influência da Medicina. “Thinking, Fast and Slow”, um best-seller da autoria de um Prémio Nobel em Economia, Daniel Kahneman, que estuda os processos de decisão, e “Is God a Mathematician?”, em que outro Nobel, Eugene Wigner, discute até onde a ciência é capaz de explicar o mundo natural.

Um dia inteiro no WCH e as conversas com a equipa mais próxima não abrem as portas ao lado pessoal de Narod. Numa antiga entrevista a um jornal canadiano descobre-se que não gosta de revelar a idade e que tem três filhos. A informação disponível na internet é pouco mais do que curricular. Dá aulas na Universidade de Toronto, é membro da Real Sociedade do Canadá, da Sociedade Americana para a Investigação Clínica, da Academia Canadiana de Ciências da Saúde. Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade Médica da Pomerânia, um galardão do Jubileu de Diamante da rainha Isabel II e, em 2016, dois prestigiados prémios médicos: o Killam Research Fellowship e o Basser Global Prize. Foi mesmo o primeiro canadiano a receber o Basser, prémio concedido pela Universidade da Pensilvânia aos projetos mais inovadores na medicina.

Tamara Milagre conta com a simpatia do especialista e por isso conhece o seu lado mais favorável, embora diga que “Steven Narod não se destaca pela simpatia. É desconfiado, não tem paciência para pessoas burras e assume ter mau feitio, mas é extremamente inteligente, tem uma formação académica alucinante. Quando conhece alguém, tem imensa piada e, além disso, salva cada vez mais vidas e isso é de louvar, tornando-o mais simpático. E é só um dos melhores investigadores do mundo em cancro da mama e do ovário hereditários!”

O trabalho na área do cancro hereditário não vai parar, pelo contrário, vai aprofundar-se nos próximos anos. Consolida-se a ligação entre o BRCA 2 e o aparecimento de cancro pancreático e há muito trabalho a ser feito na área da prevenção de uma neoplasia que ainda está associada a uma quase sentença de morte. Fundado em 1883, o Women’s College Hospital quer continuar a desempenhar um papel pioneiro neste campo. Criado para abrir um espaço às mulheres médicas, num tempo em que tal não era habitual ou desejável, respondeu à recusa das faculdades de Medicina em recebê-las, até que a sufragista Emily Stowe, uma das primeiras licenciadas em Medicina no Canadá, tomou o desafio em mãos e fundou o hospital. Desde o início, a instituição comprometeu-se com a inovação científica para resolver os problemas femininos e das famílias. Em 1961 tornou-se um hospital universitário, ano em que começaram a ser aceites médicos do sexo masculino. Até hoje, a maioria do pessoal clínico é composto por mulheres e, na direção, elas estão em maioria. Mas no sexto andar do edifício do WCH na zona central de Toronto, é um homem, Steven Narod, quem coordena o núcleo duro formado apenas por ele e mais três investigadores: um iraniano, Mohammad Akbari, a grega Joanne Kotsopoulos e a canadiana Kelly Metcalfe. Todos focados nas potencialidades do rastreio universal e na possibilidade de evitar que milhões de pessoas desenvolvam cancros que podem ser evitados.

Narod despede-se rapidamente das visitas, sem dar pistas de si mesmo. Mas na estante do gabinete um livro continua por referir, “O Paraíso Perdido”, de John Milton, poema épico do século XVII. De volta a Portugal, à procura de mais sinais sobre o homem que continua por desvendar, um verso ressoa, conhecido Steven Narod tão de perto quanto o próprio permitiu: “Da primeira desobediência do homem, e a fruta/ Daquela árvore proibida, cujo gosto mortal/ Trouxe a morte para o mundo e toda a nossa desgraça/ Com a perda do Éden, até um homem maior/ Restaure-nos e recupere o assento feliz”. Será que Narod crê poder ser ele o restaurador de um tempo sem cancro hereditário, num futuro mais matemático e previsível e menos exposto à doença?

Nota: Este trabalho foi concretizado com o apoio de uma das cinco bolsas criadas pelo Sindicato de Jornalistas e pela farmacêutica Roche para incentivar a elaboração de trabalhos jornalísticos na área da saúde, atribuída em 2018 a Christiana Martins