EMPREGO
Trabalho A Uber está a testar, nos Estados Unidos, um novo negócio que para muitos promove a precariedade. Em Portugal, dizem os especialistas, será difícil replicar a fórmula
E se a Uber Works chegar a Portugal?
Textos Cátia Mateus Ilustração Cristina Sampaio
O gigante do transporte individual de passageiros Uber está a testar o lançamento de um novo serviço: uma plataforma de recrutamento de trabalhadores temporários, a Uber Works. O projeto está envolto em mistério e poucos são os pormenores conhecidos. Sabe-se apenas que faz parte da estratégia de diversificação de atividade da Uber — depois da Uber Eats e da Uber Freight, que liga camionistas independentes a empresas e particulares — que prepara a entrada em bolsa no início do próximo ano, depois de ter sido avaliada em 120 mil milhões de dólares (103 mil milhões de euros). O objetivo da empresa, que foi uma das precursoras da designada platform economy (economia das plataformas), é passar a oferecer um serviço de recrutamento à hora. Mas em alguns países, como Portugal, onde a atividade de trabalho temporário está devidamente regulamentada, dependendo do modelo de negócio que venha a adotar, a entrada da Uber Works pode encontrar entraves legais.
O modelo está a ser desenvolvido em Chicago e foi testado, no início do ano, em Los Angeles. Tudo o que se sabe é que envolve nesta fase perfis profissionais menos qualificados, como empregados de mesa, serviços de limpeza e manutenção e de segurança privada. Fica no ar se na mira da Uber estarão também funções temporárias mais qualificadas e especializadas, na área das tecnologias de informação, design, marketing, saúde ou outras, que registam também grande procura no mercado. Apesar das várias tentativas realizadas pelo Expresso, a Uber recusou-se a comentar qualquer questão relacionada com o projeto Uber Works.
O economista Andrey Liscovich foi nomeado em julho diretor da nova unidade de negócio focada no recrutamento, reportando diretamente a Rachel Holt, vice-presidente da Uber com tutela para área de New Mobility (nova mobilidade), o que poderá indicar que a entrada da operação no mercado americano poderá estar para breve. De resto, a empresa tem vindo a acelerar os processos de recrutamento para a Uber Works. Online estão disponíveis vários anúncios para integrar a “equipa de projetos especiais em Chicago” que traçam claramente o perfil profissional que empresa ambiciona: “forte interesse pelo campo de trabalho on-demand” e “predisposição para trabalhar nos períodos mais movimentados para o produto (muitas vezes à noite, em finais de semana e feriados)”. O retrato de uma economia da flexibilidade que nos últimos anos tem vindo a ganhar escala no mundo inteiro.
Na mira da Uber
A realidade portuguesa em matéria de flexibilidade, trabalho temporário e adesão à economia das plataformas colocará certamente o país na rota da Uber Works, muito embora o Expresso saiba que a empresa não tem ainda uma data para internacionalizar a app de recrutamento. Portugal é o terceiro país da União Europeia (depois da Polónia e de Espanha) com maior percentagem de trabalho temporário. No final do ano passado, os dados da Eurostat apontavam para um total de 21,5% de empregos temporários no país. Mais 0,9 pontos percentuais do que os apurados pelo organismo europeu de estatística em 2002. O número de trabalhadores independentes registados a nível nacional também não é de desprezar: quase 800 mil, segundo o Instituto Nacional de Estatística. E o país é também o terceiro, entre 14 Estados europeus, onde o emprego gerado direta ou indiretamente pela economia das plataformas é mais expressivo, segundo um estudo divulgado pela Comissão Europeia (ver texto ao lado).
Mas a entrada da Uber Works em Portugal pode não ser simples. Tudo depende do modelo de negócio que a empresa venha a adotar. E à partida, um dos serviços que oferece — o de segurança privada — encontra já sérias limitações em território nacional, onde esta é uma atividade regulamentada e que exige licenças específicas, tal como o trabalho temporário (TT).
No ano passado, a União Europeia definiu que a Uber é uma empresa que presta serviços de transporte e que deveria ser regulada como tal, abrindo caminho à aplicação de regras similares às dos tradicionais serviços de táxi. E isto não é um pormenor. Se a empresa tivesse sido simplesmente enquadrada como uma plataforma digital, teria conseguido escapar a regulações sectoriais mais restritas. No que à Uber Works diz respeito, a questão que agora se impõe é apenas uma: pode uma empresa que está legalmente enquadrada como firma de transportes exercer atividade de trabalho temporário? “Não, não pode”, afirma o advogado Tiago Piló, especialista em Direito do Trabalho da sociedade Vieira de Almeida (VdA).
Novo negócio, o mesmo modelo
Com a ressalva de não ser conhecido em pormenor o modelo de negócio com que a Uber Works vai entrar no mercado, o especialista diz ter sérias dúvidas de que seja diferente do que atualmente enquadra a atividade da empresa. O esquema de parceiros-recrutadores (empresas que se associam à Uber e que estabelecem relações contratuais formais com os profissionais que depois integram a plataforma) transforma a Uber num gigante da economia quase sem funcionários próprios.
Este é para Tiago Piló o modelo mais provável para a entrada da empresa em Portugal. “O trabalho temporário é uma atividade muito regulamentada a nível nacional que pressupõe um vínculo contratual entre o prestador de serviços e a empresa de TT e tenho sérias dúvidas de que a Uber vá estabelecer estes vínculos”, explica acrescentando que para contornar as imposições legais, a Uber terá de agregar uma rede de parceiros que cumpram estes requisitos. O mesmo acontece para a segurança privada, “terão de ser empresas licenciadas a disponibilizar os profissionais, a plataforma é que pode ser a Uber”.
Tiago Piló admite que a economia das plataformas pode ser aplicada a quase todos os sectores, da advocacia à saúde. Mas acrescenta que como noutras atividades inovadoras e disruptivas face às práticas do mercado e, por isso, não estão regulamentadas “dependendo do sucesso do modelo, este pode vir a ser um dos casos em que a realidade do mercado força a regulação específica”. É o que esperam Afonso Carvalho, presidente da Associação Portuguesa das Empresas do Sector Privado de Emprego (APESPE) e administrador do grupo Egor, e José Miguel Leonardo, diretor-geral da empresa de trabalho temporário Randstad em Portugal, que defende que “o aparecimento de novos modelos de concorrência são expectáveis e desde que apresentem as mesmas garantias para o trabalhador serão sempre benéficos para o desenvolvimento do mercado”.
Mais reticente, Afonso Carvalho admite que “comparar a Uber Works a uma empresa de trabalho temporário poderá ser, por si só, um risco”. Para o presidente da APESPE, “tal como estamos a assistir na longa disputa entre táxis e Uber, o conceito é novo, não se pode enquadrar na legislação vigente e o pior que pode existir é um vazio legal (para a Uber Works, para os trabalhadores e para os clientes finais)”.