RICARDO COSTA

A Libra e a maré de Zuckerberg

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É natural que os sobressaltos de um projeto que ainda não existe não concentrem grande atenção pública. Mas o desmoronar dos apoiantes da Libra – a moeda digital que o Facebook quer lançar em 2020 – é um sinal inequívoco de que os governos e a autoridades centrais não vão deixar que as Big Techs estejam sempre “à frente da lei”, sobretudo em temas que lhes digam muito respeito ou ponham em causa o seu poder.

Com poucas exceções, os governos ou entidades reguladoras não se preocuparam com o crescimento dos gigantes digitais, mesmo quando atuam em quase duopólios, impedem fortemente a concorrência ou compram qualquer empresa emergente. E quando o fizeram foi quase sempre de forma retroativa, através de multas facilmente assimiláveis por faturações estratosféricas. Os investidores de empresas como a Google ou Facebook já “descontam” com extrema facilidade as futuras multas, tanto que a cotação quase não mexe quando uma sanção é anunciada.

Nenhum governo vai conseguir impedir que sejam lançadas moedas virtuais ou meios de pagamento assentes em blockchain. Mas entre isso e a criação de uma moeda global por parte de uma empresa com tanto poder e tantos clientes como o Facebook vai uma distância

Com a Libra as coisas mudaram de feição, tal como tinham mudado um pouco na eleição de Trump e no escândalo da Cambridge Analytica. Assim como era evidente que os políticos não iam gostar de perceber que as “suas” eleições podiam ser manipuláveis por terceiros, também era previsível que não iam aceitar que alguém com um poder mundial pudesse lançar uma moeda teoricamente global e dominante.

Vendo o que estava a acontecer, a PayPal saltou do barco. Esta segunda-feira, foi a vez da Visa, da Mastercard e do Ebay, entre outros. A fila de empresas prontas a desistir – ou a esperar para ver – engrossa todos os dias. E as razões são simples: perceberam que os governos, os bancos centrais e os reguladores estatatais vão fazer tudo para impedir que possa haver uma moeda virtual lançada por uma empresa tão poderosa.

Nenhum governo vai conseguir impedir que sejam lançadas moedas virtuais ou meios de pagamento assentes em blockchain. Mas entre isso e a criação de uma moeda global por parte de uma empresa com tanto poder e tantos clientes como o Facebook vai uma distância.

Mark Zuckerberg disse há algum tempo, numa reunião interna que foi gravada sem a sua autorização, que Elisabeth Warren representava uma ameaça existencial ao Facebook. Ora, o sentimento que a candidata democrata às presidenciais americanas provoca em Zuckerberg é exatamente o mesmo que a Libra coloca aos governos e aos bancos centrais. A Libra é uma ameaça existencial a quem imprime moeda e decide políticas monetárias.

O Facebook, tal como o Google, são empresas fabulosas que mudaram as nossas vidas. Para o fazer, conjugaram um extraordinário espírito inventivo com um abuso claro dos vazios legais e fiscais. Pouca gente se importou com isso até que começaram a mexer em eleições. Ora para os políticos só há uma coisa ainda mais importante que eleições: dinheiro e impostos. A maré está a mudar e 2020 vai ser um ano determinante para as tecnológicas. E é bem provável que a Libra não veja a luz do dia no ano que vem.