Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

A Justiça não cabe numa manchete?

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Começo pelo que costuma estar no fim: adoro a adversativa “mas” e deixo de ouvir alguém quando, a qualquer momento, contesta a sua utilização. Sem “mas” tudo é estúpido, binário, simplista. Não há praticamente nenhuma afirmação que não possa e não deva ser sucedida por um “mas”. E a moda de julgar quem usa o inteligente “mas” como alguém que transige é um convite à fanatização dos debates. Dizer “mas” não é diminuir a importância do que se disse, é acrescentar outras coisas importantes ao importante que se disse. É explicar que as coisas raramente são tão simples como parecem.

A corrupção é um dos elementos mais corrosivos das democracias. É causa e consequência da desigualdade no acesso aos bens públicos e à lei. E mesmo quando ela diminui, graças a uma maior eficácia da Justiça, somos confrontados com o paradoxo da visibilidade: mais combatida e mais condenada ela torna-se mais evidente e, do ponto de vista político, ainda mais nociva para a democracia. Estou a insinuar que há hoje menos corrupção em Portugal do que havia nos anos 70, 80 e até 90? Não tenho a menor dúvida em afirmá-lo. A corrupção era capilar, endémica a toda a sociedade. Era, aliás, praticamente impossível ter qualquer relação com o Estado (e não só) sem ser confrontado com ela. Desde o pagamento de impostos a um pequeno licenciamento, desde um exame de condução a uma multa de trânsito. Hoje, isso existe de uma forma menos generalizada.

Dirão: está pior no topo. Não, não está. Nem seria possível que estivesse: para a corrupção ser generalizada na base tem de ser corriqueira no topo. Hoje, os políticos e organismos públicos são muitíssimo mais escrutinados do que no passado. Com muito mais meios. Coisas que hoje dão direito à demissão de um responsável político ou administrativo não davam, há 30 anos, direito a uma notícia. E ainda bem que isso mudou. Mas lá está o paradoxo da visibilidade: os cidadãos estão convencidos de que têm uma elite política mais corrupta do que no passado. E isso tem efeitos na democracia. Não vale a pena lamentá-lo, até porque resulta de uma coisa positiva. Temos de ter em conta esta nova realidade.

Feito este introito, fica claro, espero eu, a relevância que dou à corrupção e à perceção de que a sociedade tem dela. Dou tanta que, ao contrário de quem vive da indignação para ser lido ou ter votos, acho que o tema deve ser tratado com seriedade. Saber que as instituições de Justiça funcionam e a combatem é um elemento fundamental para tentar criar um clima de confiança dos cidadãos na democracia. Mas não sou excessivamente otimista nesse efeito: qualquer demagogo, aproveitando-se do tal paradoxo da visibilidade, tornará essa vitória numa derrota, prova de que vivemos num clima de degeneração moral.

A corrupção é um dos elementos mais corrosivos das democracias. Mas o combate ao crime de corrupção não pode ser o único critério de avaliação da Justiça. Sobretudo quando se baseia no efeito mediático de investigações e acusações e não nos seus reais resultados (condenações). É um convite a uma Justiça performativa

O que me preocupa, e é aqui que entra o meu “mas”, é quando o combate ao crime de corrupção começa a ser o único critério de avaliação da Justiça. Pior: quando ele é avaliado apenas nas suas intenções (investigações, acusações e efeito mediáticos que têm) e não nos seus reais resultados (condenações). Porque isso é um convite a uma Justiça performativa, concentrada nos crimes que dão notícia e apenas na notícia do combate a esses crimes. Assim, chegam investigações a crimes de corrupção de pessoas mediáticas para que o essencial do trabalho esteja feito. Como se para acalmar as pessoas bastasse dar-lhes manchetes.

Na entrevista do “Expresso” à antiga procuradora-geral da República, a que chego atrasado pela torrente de acontecimentos políticos que marcou este mês, dir-se-ia que a única função do Ministério Público é combater a corrupção e, nela, apenas a de políticos ou empresários famosos. Também é. Mas convenhamos que a esmagadora maioria do trabalho do sistema judicial está fora disso. Eu gostaria de saber que resultados teve o Ministério Público no combate à violência doméstica, um dos crimes violentos mais comuns em Portugal. E quanto à fraude e crime económico? Como estamos preparados para o combate a formas de crime que as novas tecnologias permitem? Ou que resultados temos no combate à corrupção mais comum?

Poderia continuar por aí adiante, mas se não meter um crime suculento ou um corrupto famoso ninguém quer saber. Compreendo, mas confesso que me custa avaliar o trabalho de uma procuradora-geral da República com base no compreensível interesse mediático por dois ou três processos. E acho preocupante que a própria ex-procuradora não tenha sentido necessidade de o dizer, permitindo que o balanço do seu mandato se resumisse à aplicação da Justiça a meia dúzia de pessoas, ignorando milhares de cidadãos que dependem diariamente do bom ou mau trabalho feito pelos procuradores que dela dependeram. Fica-se com a sensação que anda mesmo tudo a trabalhar na política da aparência.