COVID-19
As pandemias do isolamento e da violência doméstica. E como os livros podem ajudar
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Ao confinar as pessoas em casa, o novo coronavírus poderá desencadear outras pandemias. Para combater a solidão, importa “manter uma comunicação regular”, sem descurar o “autocuidado”. Para evitar a tensão doméstica, urge “adiar ou abdicar de temas crónicos de discussão”, sem esquecer “a responsabilidade social de intervir e denunciar situações de violência emocional ou física”. São recomendações de uma psicóloga e de um psiquiatra
Texto HÉLDER GOMES
A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a doença provocada pelo coronavírus Covid-19 como uma pandemia. “Podemos esperar que o número de casos, mortes e países afetados aumente”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, na semana passada, justificando a declaração de pandemia com “os níveis alarmantes de propagação e inação”. Uma pandemia ocorre quando uma doença se espalha por um grande número de regiões no globo. No entanto, com as pessoas confinadas em casa, há outras pandemias a considerar. A psicóloga e psicoterapeuta Ana Moniz aponta duas: “a pandemia da solidão e a pandemia da tensão e da violência doméstica”.
“A solidão tem efeitos negativos, sobretudo para quem não tiver outra forma de manter os contactos que lhe fazem bem. Se calhar não tanto já, nestes primeiros dias, porque estamos em modo de sobrevivência e aceitamos melhor a frustração e a privação por estarmos mobilizados pelo medo e pela proteção”, refere ao Expresso. Mas a situação pode agravar-se “caso deixe de ser totalmente possível sair de casa”, adverte. Para pessoas que vivem sozinhas mas têm namorado ou companheira à distância, para pais divorciados e filhos que não estão juntos em quarentena, “a sugestão é manter uma comunicação regular, de modo a que o dia a dia possa ser partilhado”. Para casais separados que não tenham uma relação fácil com o outro progenitor, é importante “facilitar o contacto, privilegiando o interesse da criança”.
Importa igualmente não negligenciar o “autocuidado”, devendo “cada pessoa estar atenta ao que lhe torna o dia mais fácil ou difícil e ir tomando conta de si”, recomenda a psicóloga. Outro conselho é a manutenção de uma rotina, com horas para as refeições e para o descanso, “o que é muito importante por vários fatores: higiene do sono, tomas de medicação, exposição à luz solar”, entre outros. Apesar da importância que atribui a esta recomendação, Ana Moniz sublinha que “cada pessoa pode decidir qual o seu horário ótimo”. “Cada um de nós precisa de encontrar um espaço de liberdade dentro dos constrangimentos”, reforça. Sem descurar os hábitos de higiene, que, “quando as pessoas estão deprimidas, costumam ser dos primeiros a falhar”.
“UMA VIDA PARA LÁ DO VÍRUS”
Fechadas em casa, mesmo em regime de teletrabalho, haverá uma maior propensão para as pessoas estarem sempre com a televisão e outros meios de comunicação ligados. “Estar permanentemente a ouvir falar e a pensar na ameaça vai manter o nosso sistema de alerta ativo e desgastar-nos a um ponto que causará mais sofrimento do que segurança”, diz a psicóloga, sugerindo que se “crie uma vida para lá do vírus”. Um cuidado que “tem de ser redobrado para pessoas com crianças em casa”. Para combater os efeitos do isolamento e as fragilidades dos outros, torna-se igualmente importante “ligar ou enviar mensagens a quem possa estar mais sozinho ou resolver questões práticas a pessoas mais frágeis”. Isto “reforça os laços na comunidade e cria uma sensação de maior bem-estar e confiança”.
Quanto ao aumento da tensão familiar e da violência doméstica, importa não sobrevalorizar a imagem da “família feliz em casa, protegida e em união”. “O medo leva a maiores explosões emocionais. As crianças têm uma energia e um ritmo diferentes dos adultos e agora vão estar 24 sobre 24 horas juntos. A ausência de contacto com pessoas do exterior pode fragilizar quem está em risco de ser vítima de violência emocional ou física”, alerta Ana Moniz. Neste ponto, recomenda-se evitar “estar em constante comunicação, adiar ou abdicar de temas crónicos de discussão que provocam maior tensão e respeitar ainda mais as portas fechadas e os silêncios”. E não esquecer “a nossa responsabilidade social como vizinhos e amigos de intervir e denunciar se tivermos indícios que apontam para situações de violência emocional ou física sobre adultos ou crianças”. “A violência funciona em escalada até que alguém a pare. Atuar no início, intervindo ou denunciando, permite evitar esta escalada”, esclarece.
“UM DIÁRIO DE BORDO DA PANDEMIA”
O psiquiatra António Bento recorda que Freud disse que a saúde mental se mede pela nossa capacidade de trabalhar e amar. “Agora, mais de 100 anos depois, a maioria de nós está sem trabalhar. Mas podemos e devemos amar”, refere ao Expresso. “Falar das coisas más que poderão decorrer do isolamento social é um pouco chover no molhado: angústia, tristeza, desespero – quiçá, rutura emocional”, acrescenta, optando por falar de “algumas coisas boas para o nosso tempo de quarentena”. E destaca os livros, “sobretudo os psicolivros”, ou seja, “os clássicos daqueles bons autores que todos conhecemos e que, através do mundo ficcional, nos dão a conhecer a profundidade das relações humanas”. “A Peste”, de Albert Camus, é “justamente o mais falado” porque “à atualidade do tema junta-se a alegoria do ser humano”, descreve. A escrita é “sempre uma boa ideia” e “muita gente está a aproveitar para começar um diário de bordo da pandemia”.
“A solidariedade e o altruísmo, ao desenvolverem o que de melhor há em nós, criam um ‘sentido de vida’, uma bonita expressão de Victor Frankl”, adianta o psiquiatra. Frankl foi um neurologista austríaco e um sobrevivente do Holocausto, não sendo o único autor que António Bento destaca. O filósofo francês Emmanuel Levinas “ensinou-nos que nascemos sozinhos, morremos sozinhos e estamos condenados a viver sozinhos” e que “só o amor nos pode aproximar uns dos outros”, lembra. “’O outro é o meu mestre’ foi a sua frase principal e trago-a sempre comigo quando trato migrantes e refugiados”, indica o psiquiatra, que naturalmente não descura a importância da “ajuda especializada”.
O MEDO E A “VISÃO PARCIAL DA REALIDADE”
Ana Moniz esclarece que “este modo de agir guiado pelo medo é sobretudo adaptativo”. “Mas é importante estar atento a como o medo nos dá apenas uma visão parcial da realidade, ampliando uma ameaça. Deixamos de nos preocupar com outras ameaças que não deixaram de existir”, enfatiza a psicóloga. E sugere “uma gestão eficaz do medo nesta fase”: “aquela que nos permite não ignorar a ameaça, fazer o que está ao nosso alcance para nos protegermos, mas manter uma visão crítica sobre o exagero a que o nosso medo nos pode levar”.
A especialista sinaliza ainda que daqui a algum tempo, quando a ameaça passar, “podemos assistir a um exacerbar de perturbações de ansiedade ou obsessivo-compulsivas” e “o nosso radar do perigo pode precisar de algum tempo e intervenção para deixarmos de estar constantemente em alerta”. O psiquiatra António Bento reconhece “os riscos catastróficos que a perda da pessoa amada nos pode trazer”, mas insiste que “valerá a pena arriscar porque nada existe de melhor à face da terra”. E, por isso, em tempos de quarentena e isolamento, sugere: “amem mais e melhor”.
Ao confinar as pessoas em casa, o novo coronavírus poderá desencadear outras pandemias. Para combater a solidão, importa “manter uma comunicação regular”, sem descurar o “autocuidado”. Para evitar a tensão doméstica, urge “adiar ou abdicar de temas crónicos de discussão”, sem esquecer “a responsabilidade social de intervir e denunciar situações de violência emocional ou física”. São recomendações de uma psicóloga e de um psiquiatra