Miguel Monjardino

Escreva um diário

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Vivo entre a História, a Ciência Política e a Literatura no Instituto de Estudos Políticos, da Universidade Católica Portuguesa, e a coluna “Guerra e Paz” neste jornal. Acho que a História do presente é muito importante. Especialmente agora.

No sábado passado acordei cedo em Angra do Heroísmo. A manhã estava bonita. Li as edições digitais dos jornais internacionais. Os sinais do impacto da pandemia da Covid-19 nos mercados financeiros e na saúde pública eram claros.

No final de sexta-feira, Wall Street tinha encerrado em euforia. O Dow Jones subiu 9,36 por cento. No dia seguinte, Donald Trump celebrou no Twitter:

Porém, na quinta-feira, o índice bolsista preferido de Trump tinha caído 10 por cento. “Wall Street Suffers Worst Rout Since Black Monday,” escreveu o New York Times nesse dia.

Na edição digital de sábado do Financial Times, Tobias Buck e Davide Ghiglione assinavam um artigo sobre a enorme procura de ventiladores pelos governos europeus.

No gráfico que acompanhava o seu artigo, Portugal estava em último lugar na lista.

Os epidemiologistas, historiadores e cientistas políticos que se especializaram na área da segurança Internacional sabem que sempre houve epidemias e pandemias. Este tipo de doenças pode ser muitas coisas, mas não é um cisne negro. Algumas geraram o caos. Muitas tiveram enormes efeitos políticos. Em Angra do Heroísmo, reli Tucídides e Samuel Pepys.

A descrição do historiador ateniense da epidemia de peste em Atenas durante 430-429 AC e dos seus efeitos é assombrosa. Tal como acontece agora, os atenienses acreditaram que a doença tinha tido origem no estrangeiro: “e por isso foi dito por eles que os Peloponésios [Espartanos] tinham envenenado as cisternas.” Tucídides foi contagiado, mas conseguiu sobreviver. Todavia, Péricles, o principal líder de Atenas, morreu. A epidemia matou cerca de um quarto da população de Atenas e minou a sua estrutura social.

Acho que o episódio da epidemia de peste deve ser lido em conjunto com o da partida da expedição ateniense para a conquista da Sícilia em 415 AC. Apesar dos avisos de Nícias, um político prudente, sobre os perigos de uma operação de projeção de poder naval a longa distância, uma assembleia completamente eufórica votou “imediatamente que os generais tivessem poder absoluto quer sobre a dimensão do exército quer sobre toda expedição para fazer aquilo que lhes parecia ser melhor para os Atenienses.” Dois anos depois, a expedição ateniense foi aniquilada na Sícilia. Tucídides foi mostra-nos a propensão das sociedades humanas para o pânico e para a euforia.

Entre Julho e Setembro de 1665, Pepys, o primeiro grande diarista, escreveu sobre a epidemia de peste bubónica que devastou Londres. Na altura, a cidade tinha cerca de 450 mil pessoas. Milhares morreram durante aquelas semanas. Na entrada de 10 de Julho de 1665 Pepys nota que “everybody being fearful one of another; and all so sad, enquiring about the plague.” Chamou-me a atenção o facto de Pepys ter andado a pé e a cavalo de um lado para o outro na cidade e arredores durante esses meses.

Tucídides e Pepys têm várias coisas em comum: o gosto pela história e a reflexão política. Ambos foram homens de ação. Começaram a escrever praticamente com a mesma idade – a caminho dos 30 anos. Tiveram consciência da importância do momento histórico do seu tempo e quiseram deixar um registo para a posteridade. Por isso mesmo, continuam a ser lidos hoje com atenção.

Tal como eles, vivemos dias assim em Portugal, na Europa e no mundo. Não temos memória nem experiência de um tempo semelhante. Já sabemos bastante sobre o coronavírus SARS-CoV-2. Porém, como Cátia Caneiros, investigadora no Instituto de Saúde Ambiental da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, aqui escreveu, “Há dois aspetos fundamentais sobre os quais ainda subsistem várias questões, nomeadamente qual a capacidade de transmissão e taxa de letalidade.”

Mesmo assim, as circunstâncias políticas e as necessidades de saúde pública estão a obrigar os decisores a anunciar medidas verdadeiramente excecionais. No espaço de apenas algumas semanas, a avaliação do risco em Portugal mudou de forma radical. Mais tarde, teremos certamente oportunidade de refletir sobre este assunto.

Estes dias serão importantes na História de Portugal. Podemos estar perante um corte muito abrupto na trajetória do país e da Europa. Não sabemos. A incerteza é muito grande. Ninguém sabe bem como vai evoluir a pandemia. Também não sabemos quais serão os resultados das escolhas de saúde pública que têm vindo a ser feitas. O melhor que os decisores políticos e os especialistas de saúde pública podem fazer nesta situação é tentar quantificar os resultados e as probabilidades das suas opções com os dados que têm. Tudo isto terá importantes consequências sociais, económicas e políticas. É importante começar a escrever a nossa história destes dias.

Um diário escrito em papel agora tem várias vantagens. A primeira é deixar um registo para os historiadores, cientistas políticos e autores que escreverão sobre o nosso tempo daqui a umas décadas. Nessa altura, haverá certamente imensos dados disponíveis. Todavia, aqueles que se interessarem pelos nossos dias continuarão a ter necessidade de fontes escritas. Aqui, os diários serão importantes. Do ponto de vista de um historiador, de um cientista social ou de um escritor, não há nada como ler numa folha de papel o que as pessoas realmente sentiram pouco depois de os acontecimentos terem tido lugar. Os bons diários são uma coisa visceral. Um sinal do que é viver. É isto que vemos em Pepys quando o seguimos a acordar, a pensar, a ter dúvidas, a agir, a conversar e a beber com os seus amigos, a tocar música, a ser infiel à sua mulher, a gerir a sua carreira na modernização da marinha inglesa e a relatar o que se passou no seu dia.

A segunda vantagem é psicológica. Para um português que vive na Europa, esta é a primeira pandemia numa época digital. A maior parte das pessoas está agora permanentemente ligada ao ciberespaço. Um dos títulos na edição electrónica do Financial Times hoje é “EU warns of broadband strain as millions work from home.”

Para os mais novos, a distinção entre o mundo físico e o digital deixou de existir. O mais natural nas próximas semanas é que a necessidade de diminuir o ritmo da difusão da pandemia para a tentar suprimir leve ao colapso da vida social. Olhe à sua volta. O estado de emergência foi declarado ontem. A vida urbana tem novas regras. As cidades estão quase desertas. Escrever um diário em papel dá-nos a oportunidade de nos separarmos do mundo digital e de refletir sobre as nossas vidas e prioridades. Dá-nos também um ritual diário. Nas atuais circunstâncias, isto é crucial.

O que mais me chamou a atenção no sábado passado, foi a rapidez dos acontecimentos. Isto poderá levar-nos a ter um sentimento de choque em relação ao presente e ao futuro. Como Tucídides e Pepys mostraram, as epidemias são sempre acompanhadas por um sensação de perda do controlo. Passámos das certezas ou das expectativas razoáveis para o campo das hipóteses. Vivemos dias de incerteza radical.

Não somos um país de diaristas. O embaixador Marcello Duarte Mathias é uma exceção. Não teremos também a capacidade de análise política e filosófica de Tucídides ou a sensibilidade histórica e literária de Pepys. É verdade. Todavia, o diário tem uma grande vantagem: não possuir uma fórmula definida. O diário é aquilo que o seu autor ou a sua autora quiser que seja. Qualquer pessoa pode escrever um. Portugal e a Europa estão a transformar-se num enorme laboratório social, económico e político. Nunca mais teremos uma oportunidade igual para sermos historiadores do presente de Portugal.

Comece um diário hoje. Escreva num caderno sobre o que sente, o que faz, como a sua vida mudou, o que vê nas ruas e nas televisões, o que lhe dizem, o que lê nos jornais e nas redes sociais, o que ouve na rádio e os livros que lê. Comece hoje. Escreva um diário.

* Colunista de política internacional do Expresso e professor de Geopolítica e Geoestratégia no Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa