E depois?
Já o sabemos, a crise que vivemos terá, nos próximos dias, semanas e meses, consequências dramáticas e profundas. Quaisquer que sejam as medidas de contenção ou de recurso, temos uma pandemia de um vírus novo, ainda desconhecido, mas que é letal, principalmente para os mais idosos e para os que sofrem de outras patologias.
Essa parte da população mundial, percentualmente mais importante no Ocidente, terá de viver doravante sob essa ameaça, sendo improvável que se encontre uma vacina ou um tratamento que resolva a sua fragilidade. E não é possível construir um novo Mundo em que não estejam expostos a esta ameaça, porque o isolamento seria, a prazo, uma condenação muito mais severa do que os riscos de infeção que resultam do contacto social.
Ultrapassado o pico da crise, algures nos próximos meses, precisaremos de restabelecer a normalidade possível. Como fizemos com a ameaça terrorista, com a qual nos habituámos agora a viver
Para os outros, para os menos vulneráveis, esta será mais uma das muitas doenças com que têm de viver. Em alguns casos, essas doenças deixam sequelas, sendo certo que surgirão, a prazo, fármacos que atenuarão o seu impacto, enquanto o sistema imunológico se adapta.
Poderá parecer fria esta análise, mas aqui declaro que faço parte do grupo de maior risco, pela minha idade e por ser imunossuprimido, por ter feito um transplante há já muitos anos.
Ultrapassado o pico da crise, algures nos próximos meses, precisaremos de restabelecer a normalidade possível. Como fizemos com a ameaça terrorista, com a qual nos habituámos agora a viver. Faremos os necessários ajustamentos aos nossos comportamentos mas continuaremos a viver em sociedade: ou seja em contacto continuado.
Muitos usos e costumes serão alterados: é provável que o aperto de mão e o beijinho deixem de ser coisa vulgar, e é quase inevitável que muitos de nós optem por utilizar máscaras no exterior e nos transportes públicos, o que aliás já era um comportamento vulgar no Extremo-Oriente
Algumas coisas que para todos nós eram normais até há dias, e que agora estão suspensas, voltarão a ser habituais. E certamente que as valorizaremos mais, depois desta abrupta interrupção, o que terá impacto positivo na nossa felicidade individual e no nosso sentimento de pertença e de comunidade.
Muitos usos e costumes serão alterados: é provável que o aperto de mão e o beijinho deixem de ser coisa vulgar, e é quase inevitável que muitos de nós optem por utilizar máscaras no exterior e nos transportes públicos, o que aliás já era um comportamento vulgar no Extremo-Oriente. Haverá alterações antropológicas que, hoje, dificilmente podemos adivinhar.
Ficará claro, e isso será entendido por todos e foco de tratados filosóficos e sociológicos, que a globalização não poderia permanecer ao nível das trocas comerciais e dos fluxos financeiros. Mais cedo ou mais tarde, atingiria toda a humanidade. Que não o compreendeu, quando acreditou que uma crise chinesa, era um problema deles, que poderia ficar contida nesse país ou nessa região do Mundo.
No futuro imediato, a redução na produção não conseguirá recuperar a tempo de compensar o ressurgimento da procura
O que hoje sabemos, por certo, é que esta crise, que aflige ricos e pobres, nações poderosas e outras bem mais fracas, teve um efeito devastador nos mercados. A economia que entrou em colapso irá piorar ainda mas irá, depois, ajustar-se. A oferta e a procura voltarão a aumentar. É assim a economia do pós-guerra, e esta guerra não é eterna. É muito provável que, com a escassez da produção, ocorra um disparo da inflação: aliás, ela já se está a sentir por causa do açambarcamento que, não sendo útil para o bem comum, e tendo uma fraca e efémera utilidade para quem a ele recorre, resulta de um impulso individual e instintivo que não podemos censurar excessivamente. No futuro imediato, a redução na produção não conseguirá recuperar a tempo de compensar o ressurgimento da procura.
O turismo regressará, mas provavelmente de forma diferente. A indústria dos cruzeiros, por exemplo, passará a ser uma coisa do passado, como aconteceu com os transatlânticos que atravessavam os oceanos, porque ninguém quererá ficar preso no mar, num paraíso transformado em inferno por um qualquer vírus.
A aviação demorará a recuperar, porque muitas empresas do sector irão desaparecer. Mas, havendo equipamento e recursos humanos, tudo será uma questão de tempo. O hardware disponível, desde o autocarro turístico ao hotel, passando pelo avião e por toda a parafernália de serviços, não estando tecnicamente obsolescente, atrairá novos investidores e novos conceitos.
A curva ascendente nunca será tão acentuada como foi a curva descendente dos mercados, nestes dias de crise. Surgirão, seguramente, novas oportunidades, novas modas e novos conceitos na distribuição
Ainda assim, e nos próximos anos, haverá um maior crescimento do turismo doméstico ou de proximidade e haverá uma maior procura de destinos onde os cuidados de saúde são eficientes. O fator medo, que, com a ameaça terrorista, tanto influenciou o turismo, determinará as escolhas em função das condições de segurança que cada destino oferece.
Se houver liquidez disponível - o que será o maior desafio - se houver confiança da população e do sector privado, se houver determinação dos nossos governantes e estes resistirem aos impulsos ideológicos, a recuperação será mais rápida. Em qualquer caso, a curva ascendente nunca será tão acentuada como foi a curva descendente dos mercados, nestes dias de crise. Surgirão, seguramente, novas oportunidades, novas modas e novos conceitos na distribuição.
É muito possível que, com o medo e depois do medo, e tal como acontece depois de qualquer guerra, surja uma relativa primavera demográfica
Por outro lado, a crise será, está já a ser, um grande teste ao teletrabalho. Se este resultar, se se demonstrar a sua exequibilidade, é muito possível que mais e mais pessoas passem a trabalhar a partir de casa, e isso terá um gigantesco impacto no mercado imobiliário, na mobilidade, e em muitas questões de índole social. Modelos inovadores como o co-housing irão desenvolver-se, porque a quarentena terá sido um teste duro à solidão.
É muito possível que, com o medo e depois do medo, e tal como acontece depois de qualquer guerra, surja uma relativa primavera demográfica.
O papel do Estado estará debaixo de um forte escrutínio. Porque ele foi incapaz de nos valer. Porque se percebeu, e não foi apenas em Portugal, que o Estado social estava preso por pinças. Porque o Estado-Providência faliu. Do Estado futuro exigiremos que ele seja o conformador da vida económica e social.
Com a muito provável falência do sistema bancário privado, os cidadãos – e até os pequenos e médios empresários – irão exigir que o Estado, direta ou indiretamente, passe a atuar como agente de crédito. Porque ninguém será capaz de explicar um novo resgate
É razoável prever que, salvaguardando o papel da livre iniciativa e do empreendedorismo do sector privado, os cidadãos exijam que o Estado volte a ter um papel determinante na produção de bens de primeira necessidade, no fornecimento de serviços públicos. E, com a muito provável falência do sistema bancário privado, os cidadãos – e até os pequenos e médios empresários – irão exigir que o Estado, direta ou indiretamente, passe a atuar como agente de crédito. Porque ninguém será capaz de explicar um novo resgate. Porque não se pode exigir que famílias e pequenas empresas sejam condenadas à falência, que os depositantes percam as suas poupanças, e que o intermediário sobreviva, entretanto, à custa do erário público. O sobrecusto da arbitragem financeira não será, doravante, tolerado.
Ao nível geoestratégico, os equilíbrios que resultaram do fim da II Guerra Mundial, e que resistiram à Guerra Fria, colapsaram.
A China, apesar de ter estado na génese da pandemia, terá conseguido reafirmar a sua resiliência pela forma como encarou a crise, e não se sabendo o que sucederá na América do Norte, que depende das eleições americanas, é inevitável concluir que a Europa será a grande derrotada. Ainda assim, mais dependente e próxima da China do que dos Estados Unidos, que olham a Europa com desprezo e que apenas lhe cobiçam o Reino Unido, agora exilado e proscrito.
Os nacionalismos e os populismos continuarão a fazer o seu caminho. Mas também isso é uma crise que mais cedo ou mais tarde passará. É uma fase, uma moda, um palco de gente excitada
Independentemente dos números, o grande problema é que as fragilidades da União Europeia, que já pressentíamos, ficaram expostas e “ao léu”.
Por quebras de solidariedade, por falta de coordenação, pelo “salve-se quem puder”. Porque não há políticas comuns credíveis, também não existe um patriotismo europeu que vença os velhos nacionalismos.
Nesta crise, ninguém foi verdadeiramente europeu.
É uma lástima. Porque este vírus é um inimigo que merecia e justificava que o desafiássemos juntos, e isso não sucedeu.
Os nacionalismos e os populismos continuarão a fazer o seu caminho. Mas também isso é uma crise que mais cedo ou mais tarde passará. É uma fase, uma moda, um palco de gente excitada.
No dia em que voltarmos a poder sair à rua, já ninguém quererá perder o seu tempo a olhar as goelas infetadas no Facebook
O trotskismo e o niilismo da esquerda caviar e andrógina, o fascismo marialva da direita nacionalista e securitária e alarve acabarão por se anular. Até porque, no dia em que voltarmos a poder sair à rua, já ninguém quererá perder o seu tempo a olhar as goelas infetadas no Facebook.
Nesta guerra, as extremas não souberam o que dizer ou o que fazer. E, em muitos casos, tiveram de engolir as suas bravatas. Porque disseram o que não deviam, tiveram medo de recuar e a cobardia de não avançar.
O meio ambiente agradece esta crise, e isso deveria servir para um virar de página. Nas escolhas que faremos doravante, enquanto cidadãos na forma como passaremos a consumir, poderemos usar esta provação para evitar uma outra, para a qual caminhávamos a passos largos. Cada um de nós irá rever os seus padrões de consumo, de uso e abuso dos recursos escassos. A financeirização da economia poderá ter morrido com a débacle dos mercados financeiros, mas é inevitável que o comércio mundial se altere profundamente. Doravante, o custo das matérias-primas deixará de ser indexado ao custo de extração. Terá de ser ajustado aos recursos remanescentes e ao impacto no meio-ambiente, porque será essa a exigência dos mais novos, dos que, sobrevivendo à pandemia e os seus custos, quererão ter uma palavra a fizer sobre o seu futuro.
Em resumo, esta é uma enorme provação para a civilização humana. Um virar de página. Mas não é seguramente o fim do Mundo. De pouco nos valerá apontar o dedo a este ou àquele. De nada nos serve assumir uma atitude depressiva. Teremos algumas semanas, alguns meses, para refletirmos. Para programarmos e prepararmos a retoma.
É isto o que penso hoje. E que com vós partilho. Este é um tempo bíblico, de enormes provações. Podemos ficar em casa a chorar aquilo que há dias era o nosso quotidiano, e que hoje é uma memória e uma saudade. Ou podemos, “hélas”, pensar que também nós, como os nossos bisavós, resistiremos à “pneumónica” e usaremos esta provação para construir um futuro para as gerações vindouras.