Utilidade Marginal

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João Silvestre

O ataque dos ‘repos’ assassinos

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Numa semana carregada de debates das legislativas e de arranque da Liga dos Campeões, terá passado mais ou menos despercebido por cá um sinal altamente preocupante vindo dos EUA. Mais concretamente do coração do sistema financeiro americano: o mercado de acordos de recompra (conhecidos na gíria como repos) onde bancos e instituições financeiras emprestam dinheiro entre si e onde, quando a crise bate à porta, surgem frequentemente os primeiros sintomas. Este mercado serve para financiamento interbancário e é lá que se formam as taxas de juro de curto prazo, as mesmas que a Reserva Federal (Fed) visa quando define um intervalo para a fed funds rate. Esta semana, cortou as taxas em 0,25 pontos para o intervalo 1,75%-2%.

Terça-feira, depois de a taxa de juro overnight (para o dia seguinte) disparar para perto de 10%, quatro vezes o nível da véspera, a Fed foi obrigada a fazer uma injeção de liquidez de emergência de 75 mil milhões de dólares e dar nova dose, de montante equivalente, nos dois dias seguintes (quarta e já esta quinta-feira). A vertiginosa subida dos juros foi a consequência da falta de fundos no mercado: também aqui se aplicam as regras de oferta e procura. Sempre que há falta de oferta, o preço – a taxa de juro, neste caso – sobe.

É um valor astronómico injetado no sistema mas pode justificar-se tendo em conta a magnitude do salto: antes, a taxa de juro andava pouco acima dos 2%, próxima do limite máximo do intervalo de 2,25% definido pela Fed até esta semana. Ao contrário do que acontece na zona euro com o Banco Central Europeu (BCE), onde a taxa diretora é a taxa de juro cobrada aos bancos nas operações de cedência de liquidez (que agora está em 0%), nos EUA a Fed fixa um intervalo como objetivo e depois coloca ou retira fundos no mercado para assegurar que a taxa permanece dentro daquelas balizas. Mas isso é feito com operações ‘normais’.

É melhor ser prudente em excesso do que demasiado confiante na sorte quando estamos a lidar com o sector financeiro

Agora foi uma intervenção de emergência como não acontecia desde a crise financeira. Todos falam e recordam com detalhe o estouro do Lehman Brothers, a 15 de setembro de 2008, mas antes disso houve vários sinais graves de alerta. Um deles foi precisamente a forma como, mais de um ano antes, em agosto de 2007, os mercados interbancários ‘secaram’ na Europa e nos EUA, o que obrigou a Fed e o BCE a lançar quantidades industriais de liquidez nos mercados. Os tempos eram outros, a crise que se seguiu é a que conhecemos, mas convém não desvalorizar as campainhas que vão soando. É melhor ser prudente em excesso do que demasiado confiante na sorte quando estamos a lidar com o sector financeiro.

Nesse verão de 2007, a falta de oferta de fundos no mercado – ou seja, falta de vontade dos bancos em emprestar uns aos outros – tinha a ver com desconfiança. O subprime pairava como uma ameaça, os bancos não sabiam em que podiam confiar e, na dúvida, não emprestavam. Agora, parece existirem outras razões. Há pelo menos duas que têm sido apontadas. A primeira é estrutural: a Reserva Federal está a reduzir a carteira de ativos que adquiriu com os programas de quantitative easing (QE) e isso retira liquidez do mercado porque implica que os bancos comprem a divida que é vendida. O que se traduz em menos reservas da banca junto do banco central e a uma maior necessidade de ir ao mercado de repos obter financiamento de curto prazo. A razão segunda razão é conjuntural e tem a ver com obrigações fiscais: 18 de setembro foi dia de pagar impostos para muitas empresas americanas que, para o fazerem, recorreram a dinheiro que tinham guardado em aplicações de curto prazo.

Devemos ficar satisfeitos com as explicações? Sim e não. Sim, porque existem motivos por detrás deste sobressalto no mercado e não foi algo que tenha acontecido do nada ou que tenha sido provocado por simples pânico financeiro. Além disso, a Fed atuou em devida hora para normalizar a situação. Não, porque não é habitual que este tipo de coisas aconteçam em tempos de normalidade. Podem ser o alerta de que algo grave está para chegar. Nem que seja uma invasão de repos assassinos.