Nossa Senhora dos Anjos
Histórias breves sobre acontecimentos irrelevantes, condições atmosféricas e pessoas interrompidas: ficções de Bruno Vieira Amaral, para ler todas as quintas-feiras no Expresso Diário
Ainda hoje, quando passo pela Igreja de Nossa Senhora dos Anjos, lembro-me de Daniela, dos seus olhos verdes, do modo como se sentava a ler à mesa de um café que ficava de esquina, da embirração com uma palavra num texto que lhe pedi para ler, da noite em que, anos mais tarde, a encontrei à entrada do metro das Picoas, ela com um olhar esgazeado e sem me reconhecer de imediato, e depois, quando me reconheceu, sem mostrar qualquer emoção particular, como se tivesse ficado desiludida por eu não ser outra pessoa qualquer, até que começou a falar do cabo-verdiano com quem vivia numa casa arrendada na Duque de Loulé e de como ele a humilhava e entrava de madrugada em casa acompanhado de outras mulheres e, de manhã, ficava com elas na cama enquanto ela saía para trabalhar, de como a abandonava a meio da noite nas discotecas africanas de Lisboa ou nas expedições noturnas para a Amadora ou para a Margem Sul, deixando-a a vaguear por ruas que desconhecia, a deambular perdida por ermos e baldios junto a antigas zonas industriais, e de como a recordação do desamparo dessas noites fazia com que o amasse mais.
Algo em Daniela me perturbava. Via-a na sala de fumo, onde os grupos se revezavam, sozinha e altiva, com um livrinho de Michaux nas mãos e, depois de ler umas linhas, a soprar uma baforada de desprezo pela ignorância ao seu redor
Então já não era a Daniela que vi pela primeira vez numa sala claustrofóbica com um cheiro a plástico queimado dos computadores sobreaquecidos onde tivemos formação em atendimento telefónico ministrado por uma rapariga pouco mais velha do que nós e de quem nos ríamos por seguir o guião à risca, das falas à posição conciliadora das mãos, e que terminava todas as frases com a pergunta: “fiz-me entender?”
Algo em Daniela me perturbava. Via-a na sala de fumo, onde os grupos se revezavam, sozinha e altiva, com um livrinho de Michaux nas mãos e, depois de ler umas linhas, a soprar uma baforada de desprezo pela ignorância ao seu redor, possuída por uma tensão subtil como se a qualquer momento fosse gritar um poema que ainda não inventara. Deixava o cigarro a queimar-se no cinzeiro e saía da sala à pressa, a fugir aos olhares porque afinal havia naquela altivez uma insegurança que haveria de ser suficientemente forte para a atirar ao chão, aos pés de um amante que não a merecia.
Tanto quanto é possível atribuir ao livre-arbítrio peso nestas matérias, direi que escolhi não me apaixonar por Daniela, escolha que, na altura, me pareceu sensata e que, à luz dos acontecimentos posteriores, me surge como providencial
Um dia, ao ver sobre a minha mesa um caderno aberto, perguntou-me se eu escrevia e foi aí que soube que estudava na Faculdade de Letras. Nesse dia, depois da formação, sentámo-nos num dos bancos perto da igreja, com pombos aos nossos pés e um homem a comer restos de frango com arroz de uma embalagem de sumo cortada ao meio e fantasmas que vinham de vez em quando pedir-nos moedas e, se lhes dizíamos que não tínhamos, ficavam imóveis uns segundos como se não lhes tivéssemos respondido ou como se esperassem que mudássemos de ideias ou como se ponderassem o recurso à violência.
Voltámos àquele lugar várias vezes e tive sempre a sensação de que as nossas conversas eram interrompidas, que aguardávamos pelo momento propício para dizer qualquer coisa e que esse momento passava sem que nada fosse dito ou porque o temíamos ou porque nada havia a dizer.
Tanto quanto é possível atribuir ao livre-arbítrio peso nestas matérias, direi que escolhi não me apaixonar por Daniela, escolha que, na altura, me pareceu sensata e que, à luz dos acontecimentos posteriores, me surge como providencial. Nunca teria sido uma paixão avassaladora, antes um daqueles sentimentos gerados pela intriga, pelo mistério que uma certa mulher representa para nós e que nos obriga a ir atrás desse mistério até o desvendarmos. Foi a perceção clarividente de que esse mistério me levaria para muito longe que me salvou.
Ela sorriu, jurou que me devolveria o dinheiro assim que pudesse. Nunca o fez
Na noite em que nos encontrámos no metro, quando Daniela terminou o relato, perguntou-me se eu lhe emprestava algum dinheiro. Dei-lhe quinhentos escudos, que era tudo o que tinha, e, ao guardar a nota na bolsa, perguntou-me, como se voltasse a ser a Daniela que conheci, se eu ainda escrevia e se já tinha deixado de usar palavras esdrúxulas que soavam a falso. Disse-lhe que ainda escrevia e que me esforçava por isso, por apagar todas as palavras que me soavam a falso, mas que era difícil pois nunca mais tinha encontrado ninguém que lesse os meus textos como ela lia. Ela sorriu, jurou que me devolveria o dinheiro assim que pudesse. Nunca o fez.
Uma vez, numa saída à noite com colegas da faculdade, encontrei-a no Jamaica. Ela não me viu. Passou a noite a dançar de olhos fechados, quer fosse o The Passenger, o Come on Eileen ou aquela canção dos Violent Femmes, não muito longe do balcão, recolhida nas sombras, varrida pelas luzes coloridas que, consoante o ângulo, sugeriam um sorriso ou um esgar de dor.
Eu já tinha bebido umas cinco cervejas quando resolvi estragar a noite com um whisky. Ao regressar à pista, já não a vi. Fiquei demasiado bêbedo para pensar muito nisso. Acabei a noite enregelado num daqueles bancos em frente ao rio no Cais do Sodré, acompanhado pelas primeiras gaivotas do dia e à espera do primeiro barco para o outro lado.
No intervalo procurei-a no pátio. Fumava encostada a uma árvore, desafiante, como se estivesse à minha espera
Meses depois, cruzei-me com ela num curso de astrologia num palacete no Príncipe Real. Espicaçado por um livro que tinha encontrado na biblioteca, andava a ler a poesia de Fernando Pessoa à luz do seu interesse em astrologia e, durante uns meses, só pensei em signos, mapas astrais, ascendentes, porque me confortava a ideia de ler o universo e os seus mistérios como quem decifra um poema.
Lembro-me de ter comprado o jornal naquele dia – um domingo –, lembro-me de uma reportagem sobre licores de rosa produzidos na Bulgária, lembro-me de uma notícia sobre o fotógrafo Alexander Korda. Ela chegou depois da hora, cabelo curto e a acabar um cigarro, a ostentar o seu orgulho ambíguo tão impositivo que até uma mulher como a professora, com uma calma esotérica, quase se viu obrigada a pedir-lhe desculpa por ter começado a sessão sem ela. No intervalo procurei-a no pátio. Fumava encostada a uma árvore, desafiante, como se estivesse à minha espera.
A meio da sessão, ela saiu e eu, atrapalhado, fui atrás dela, num correria pela rua de São Paulo até à estação do Cais do Sodré
“É um tamarindeiro.” E arrancou uma folha e explicou-me certas coisas sobre a natureza e o destino e a cinza do cigarro caiu-lhe sobre o pé nu. Dali via-se a cidade a descer até ao rio, mais longe a ponte, ainda mais longe o mar, a noite. “Um dia a terra há de abrir-se outra vez e Lisboa desaparece”, foram as últimas palavras. A meio da sessão, ela saiu e eu, atrapalhado, fui atrás dela, num correria pela rua de São Paulo até à estação do Cais do Sodré. Alcancei-a quando ela já entrava para o comboio:
“Vim só acompanhar-te” disse-me da janela, atirou-me um beijo e desapareceu na carruagem.
Só voltei a vê-la há dois anos. Aproximou-se de mim na Feira do Livro, depois de um debate sobre religião em que eu tinha participado, e trazia um olhar de uma luminosidade baça própria dos convertidos e dos convalescentes, de quem foi atingido por uma tempestade, um tumulto, e agora é um território repleto de detritos e cicatrizes da destruição.
Eles saltavam, saltavam, assim que punham um pé no chão tornavam a subir, até que me agachei, escondi-me, e fiquei à espera, assim que um deles pousou o pé no chão, zás!, agarrei-o
Sem dar a entender que me reconhecia, segurou-me nas mãos e falou sem parar:
“Sabes, estou aqui, mas vivo noutro mundo, tenho muitos sonhos, muitos sonhos, todas as noites sonho com alguma coisa e depois, quando acordo, escrevo sobre esses sonhos, há dias sonhei outra vez com um terramoto, outra vez, já sonhei muitas vezes com um terramoto e no meu sonho é sempre de nove ponto oito, é horrível, vi que o sismo em Itália, há três ou quatro anos, foi muito forte e era de sete ou oito, vê lá, não fica pedra sobre pedra, o sonho que tive no outro dia até me dá vontade de rir, foi com o padre Cruz, do que a minha cabeça se foi lembrar, a minha avó é que me falava do padre Cruz, e no sonho ele dizia-me: “Filha, tu és muito infantil, mas eu estou aqui para te ajudar”, sonho com estas coisas de religião, nunca fui de igrejas nem nada e nos últimos tempos é só com isto que sonho, até já sonhei que estava noutro tempo, noutra vida, noutra encarnação, a Bíblia não fala de encarnações, acho eu, éramos três mulheres do mesmo homem, eu estava à mesa e peguei em três medalhinhas: uma de Nossa Senhora, outra de São José e outra do Menino Jesus, já naquela altura eu acreditava, foi o que eu pensei, mas o sonho mais estranho de todos foi com anjos, eram pequeninos, pareciam crianças de três ou cinco anos, eu estava à porta de uma igreja, da igreja de Nossa Senhora dos Anjos, e eles estavam lá no cimo, eu queria apanhá-los, mas eles saltavam, saltavam, assim que punham um pé no chão tornavam a subir, até que me agachei, escondi-me, e fiquei à espera, assim que um deles pousou o pé no chão, zás!, agarrei-o, só que ele não me deixava ver-lhe a cara, o que eu queria era ver-lhe a cara, mas ele punha a asa à frente e eu não conseguia ver: “Deixa-me ver os teus olhos”, e ele, nada, sempre com a asa a tapar-lhe a cara, até que lá tirou a asa e vi que no lugar dos olhos tinha dois buracos, dois buracos, isso mesmo.”
Exausta, suspirou, largou-me as mãos e, sem olhar para trás, subiu pelo parque. Enquanto Daniela se misturava nas correntes contrárias da multidão, fiquei a pensar que sob aquela linguagem críptica de sonhos e visões, de anjos e terramotos, palpitava uma verdade mais viva e importante do que qualquer coisa que ela me tivesse dito e à qual eu jamais poderia aceder a não ser que, como ela, também eu me diluísse na multidão e, como ela, também eu enlouquecesse.