Visita de Estado

Os “irritantes” desfeitos, o combate anunciado aos “marimbondos” e a “nova Angola”: João Lourenço em Portugal

João Lourenço, Presidente angolano, e Marcelo Rebelo de Sousa, na conferência de imprensa após o encontro entre os dois no Palácio de Belém<span class="creditofoto"> FOTO José Fernandes</span>

João Lourenço, Presidente angolano, e Marcelo Rebelo de Sousa, na conferência de imprensa após o encontro entre os dois no Palácio de Belém FOTO José Fernandes

A chuva cessou quando João Lourenço chegou a Portugal, quase como para garantir que nenhum ruído iria interferir com o anúncio do chefe de Estado sobre a construção de uma “nova Angola” que quer excluir os “marimbondos” e incluir Portugal

Texto Helena Bento Fotos Tiago Miranda e José Fernandes

“Irritantes” que já não existem e não deveriam ter existido ou nunca existiram de todo, sendo antes uma “invenção recente do léxico português”, a luta anunciada contra “os marimbondos”, ou corruptos, se quisermos, e a mão estendida a Portugal, convidado que foi para a dança da construção “da nova Angola”. Eis os assuntos por que foi saltitando o Presidente angolano, João Lourenço, na sua primeira visita de Estado a Portugal.

Mas vamos ao início. João Lourenço chegou às 11h à praça do Império e à sua chegada a chuva, que segundo vários relatos caía em abundância, cessou - poderá ter sido um sinal, ou não. Chegou acompanhado da primeira-dama, Ana Dias Lourenço, e de vários ministros angolanos (Relações Exteriores, Finanças, Interior, Obras Públicas e Cultura), assim como de outros membros do seu Governo, e à sua espera tinha Marcelo Rebelo de Sousa. Houve uma revista às tropas, salvas de canhão, atiradores especiais colocados em pontos estratégicos do Mosteiro dos Jerónimos e uma coroa de flores depositada por João Lourenço e a mulher no túmulo de Luís de Camões, no interior do mosteiro. A isto assistiram muitos curiosos, incluindo dezenas de turistas que certamente se terão virado para todos os lados em busca de rostos locais para perguntar o que estava a acontecer. Ambos os presidentes, português e angolano, haveriam de estar reunidos, daí a pouco tempo, numa das salas do Palácio de Belém, no encontro de que foram excluídos os jornalistas e outros cuja presença não foi considerada relevante.

<span class="creditofoto">Foto Tiago Miranda</span>

Foto Tiago Miranda

Não há “irritantes”. Nunca houve, aliás

À saída de Belém, as primeiras declarações: já não há “irritante” nas relações entre Portugal e Angola e, se houve, nunca deveria ter havido. Aliás, para o chefe de Estado angolano nunca houve um único, na verdade, como fez questão de deixar claro na conferência de imprensa que sucedeu ao encontro. “Nunca existiu um irritante”, afirmou, sublinhando, aliás, que pretende continuar a esforçar-se para pôr fim à expressão que não é mais do que uma “invenção recente do léxico português”. Descrevendo o caso como um “incumprimento” por parte de Portugal de um acordo do qual fazia parte e que “felizmente foi resolvido pela mesma instituição que não o fez inicialmente”, ou seja, “a Justiça”, João Lourenço reforçou que a presente visita de Estado serve para “falar de presente e de futuro”, e não do passado. “Os amigos querem-se juntos e devem visitar-se mutuamente”, afirmou.

O Presidente da República de Angola foi o segundo chefe de Estado desde 2016 a ser recebido e a discursar na Assembleia da República <span class="creditofoto">FOTO TIAGO MIRANDA</span>

O Presidente da República de Angola foi o segundo chefe de Estado desde 2016 a ser recebido e a discursar na Assembleia da República FOTO TIAGO MIRANDA

Durante a conferência de imprensa em que aproveitou para anunciar a visita de Marcelo Rebelo de Sousa a Angola no ano que vem, em “data a acertar pelas diplomacias”, o Presidente angolano afirmou saber de antemão que o programa de combate à corrupção que lançou há um ano tem riscos. A sua prioridade é, no entanto, clara e não há qualquer margem para a ajustar: “Temos de acabar com os marimbondos [espécie de vespa] todos”, que não são assim tantos - “somos 28 milhões de angolanos mas não há 28 milhões de corruptos” - mas incomodam.

“Se estamos a brincar com o fogo, temos noção que essa brincadeira pode queimar mas vamos continuar a brincar com o fogo, controlando-o, para que não ganhe a dimensão dos incêndios da Califórnia”, afirmou assim João Lourenço, reforçando, para que dúvidas não restem, qual é o seu objetivo: “Temos de dar cabo dos marimbondos todos”. E será uma luta solitária, a de João Lourenço, ou Portugal irá ajudá-lo de alguma forma? A pergunta foi dirigida a Marcelo Rebelo de Sousa, que se limitou a afirmar que Portugal respeita a soberania de Angola e as “decisões soberanas” que possam vir a ser tomadas. Apesar de ter escolhido manter-se à margem neste assunto, o Presidente da República português assegurou que essas mesmas medidas não vão deixar de ser “acompanhadas de perto” por Portugal, na medida em que podem vir a ter consequências para “os dois Estados e para os dois povos”.

João Lourenço saudado por Ferro Rodrigues na Assembleia da República <span class="creditofoto">FOTO TIAGO MIRANDA</span>

João Lourenço saudado por Ferro Rodrigues na Assembleia da República FOTO TIAGO MIRANDA

Uma “nova Angola”. Mas que nova Angola será esta?

Foi já no discurso na Assembleia da República que João Lourenço tentou, e dizemos tentou porque a maioria da bancada do Bloco de Esquerda, por exemplo, nem sequer se levantou no final para aplaudir o discurso, com os seus pequenos braços conter um país inteiro, do qual espera ajuda para “construir uma nova Angola”. E que nova Angola é esta? A pergunta não tem uma resposta óbvia mas a explicação do Presidente angolano é clara o suficiente: chegou a hora de encarar novos desafios”, de “moralizar a sociedade angolana no geral, de combater a corrupção e também de fazer novos negócios “num clima cada vez mais amigo do investimento”.

Para isso será necessário reatar ou manter a “velha relação” entre Portugal e Angola e facilitar “a presença de mais empresários portugueses” no território angolano. Mas nem tudo é negócio: João Lourenço também conta com o “know how” dos portugueses em áreas decisivas para a revitalização do tecido social angolano. “Gostaríamos que o reforço das nossas relações não se reduzisse aos interesses económicos e empresariais”, afirmou o Presidente angolano, reforçando que Portugal representa “um parceiro importante” com quem Angola mantém uma “relação sólida e duradoura que precisa de ser sempre alimentada com atitudes de ambas as partes”.

Sentado ao lado Eduardo Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, e de Marcelo Rebelo de Sousa, João Lourenço anunciou um processo de consultas políticas para trocas de experiências nas áreas da educação, saúde, ciência, tecnologia e desporto. “Os nossos povos estão condenados a partilhar um futuro comum”, afirmou o chefe de Estado angolano, garantindo que a paz que o seu país vive há 16 anos não tem reversão possível. A seguir pôs na mesa outra cartas, porventura mais fortes, como a da criação de mais empregos e a da aposta no turismo e no investimento privado, e numa economia que vá além da “economia petrolífera”.

Foto Tiago Miranda

Corrupção é um “cancro que corrói os alicerces da sociedade”

Numa fase mais avançada do discurso, o Presidente angolano saudou “o ligeiro crescimento da economia angolana” graças a “corajosas medidas” e deixou algumas palavras sobre o contexto internacional, no qual Portugal e Angola estão também alinhados, pelo menos no que respeita à condenação dos nacionalismos, xenofobia e populismo e à defesa “clara dos direitos dos cidadãos”.

O tema da corrupção viria de novo à baila, com João Lourenço a apelar à “moralização da sociedade angolana” e a considerar o corrupção um “cancro que corrói os alicerces da sociedade”. A nova Angola será também, nesse sentido, um Angola mais transparente, acrescentou o chefe de Estado angolano.

Ferro Rodrigues saudou pessoalmente João Lourenço “pela sua coragem e determinação em afirmar em Angola um Estado democrático de direito”, ouviu-se o hino angolano e depois o português. Tudo isso enquanto a maioria bloquista, assim como o deputado do PAN, André Silva, se mantinha sentada na sua bancada.