BRASIL | REPORTAGEM COM INDECISOS

O que me vai levar a decidir eu confesso que não sei

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Falta cada vez menos para a votação decisiva no Brasil e agora é o momento de cada um dos rivais - Haddad e Bolsonaro - focarem esforços em manter quem já conquistaram na primeira volta mas ainda em conquistar a fé dos indecisos. Um desses, dos que não sabem em que votar, fala assim: “A minha indecisão baseia-se em eu achar que de um lado está o governo que eu quero mas na mão de um idiota e do outro um plano de governo que eu acho que vai acabar por afundar o Brasil mas na mão de um candidato que não é tão ruim assim”. Por outro lado, há uma tendência a emancipar-se: a dos que vão votar nulo: “Eu só acredito no meu próprio trabalho”

Texto Sofia Perpétua, no Rio de Janeiro

Luiza Leite pediu um pão na chapa e um sumo de laranja na Padaria Santo Amaro, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro. Alguns dias depois da primeira volta, a atendente da padaria afirma que vai votar nulo na segunda volta e não adianta ninguém tentar convencê-la do contrário. Enquanto paga, Luiza questiona se um Brasil onde todos andam armados será o melhor, pergunta se ela sabe que os jornais estrangeiros dizem que Bolsonaro será um desastre. A professora carioca consegue a atenção da menina da caixa. Sorri, deseja um bom dia, amanhã trará as manchetes dos jornais estrangeiros impressas em papel.

“Parece ridículo, esforço vão, tentar garantir um voto, mas é o que tenho”, diz Luiza. “É um trabalho paciente de formiguinha, é nele que eu vou apostar.”

Depois de uma primeira volta em que Jair Bolsonaro (PSL) se destacou com 46% dos votos e em que Fernando Haddad (PT) conseguiu 29% assegurando a passagem à segunda volta, as campanhas ganharam um novo fôlego para a votação final de 28 de outubro. Haddad procura o apoio de quem não votou no PT, dos apoiantes dos outros candidatos que ficaram para trás, dos eleitores de Bolsonaro com dúvidas, da abstenção, dos nulos e dos indecisos. Na primeira volta abstiveram-se 20,33%, anularam o voto 6,14% e votaram em branco 2,65%.

“O que me vai levar a decidir eu confesso que não sei, eu nunca deixei de votar, eu nunca voto em branco nem nunca voto nulo, eu vou votar em alguém mas ainda tenho alguns dias para decidir, vou pensar até ao último dia.” Elias Júnior é um advogado carioca que está indeciso depois de na primeira volta ter votado em Geraldo Alckmin (PSDB), no que ele chama “um voto de consciência”.

“A minha indecisão baseia-se em eu achar que de um lado está o governo que eu quero, que será bom para o Brasil, mas na mão de um idiota, um candidato que não tem a menor condição de nada. E do outro lado está um plano de governo que eu acho que vai acabar por afundar o Brasil, mas na mão de um candidato que não é tão ruim assim. Sinceramente eu não sei o que fazer. O programa de governo com o qual eu mais me alinho está na mão do Bolsonaro e é um programa que envolve privatização de empresas do Estado, fim de privilégios, diminuição do défice fiscal, uma política mais voltada para a competitividade, que investe no empreendedorismo, num forte mercado livre. Do outro lado está o atraso, a crise em que estamos hoje é o resultado da implementação de uma política de esquerda. É o meu dilema ter de um lado o Bolsonaro, que não tem capacidade de nada e para nada. Isso de ele ser misógino, racista, homofóbico, acho um disparate, ele não é, eu só o acho um incapaz, vazio, sem ideias, alinhado com a ditadura e a truculência, isso de homenagear torturadores é terrível, esse é o lado mau dele.”

O voto de Elias pode ser conquistado tanto por Haddad como por Bolsonaro. Ambas as campanhas afinam a estratégia para captar e manter votos.

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Foto Reuters

Nos últimos dias, Haddad recuperou para si as cores verde e amarela da bandeira brasileira numa mudança visual estratégica, distanciou-se de Lula da Silva, reconheceu os erros do PT e reconheceu que faltaram mecanismos de controle estatais para evitar a corrupção nos governos petistas, atacou as contradições da campanha de Bolsonaro e exigiu a presença do seu adversário nos debates marcados. Por seu lado, Bolsonaro disse que o número de mortos na ditadura militar é igual ao do Carnaval, defendeu grupos de extermínio, declarou que ia acabar com todos os tipos de ativismo no Brasil, recusou-se a assinar um documento contra fake news proposto por Haddad, declarou que já teria ganho se as urnas eletrónicas estivessem a funcionar bem, recomendou aos membros do seu partido não falar à imprensa e recusou o debate com Haddad invocando razões médicas decorrentes do atentado que sofreu, apesar de continuar a dar entrevistas e a fazer lives no Facebook. Sucedem-se as trocas de recados entre as duas campanhas. Na última semana houve o registo de muitos crimes de violência, sendo pelo menos 50 documentados pela Agência Pública e pela Open Knowledge Brasil. No domingo, a igreja de São Pedro da Serra, em Nova Friburgo no estado do Rio de Janeiro, amanheceu grafitada de suásticas, o símbolo utilizado pelo regime fascista de Adolf Hitler na Alemanha nazi.

“Eu me preocupo muito com as declarações xenófobas, racistas, homofóbicas, misóginas e violentas do Bolsonaro e também com a influência que elas têm sobre seus eleitores que praticam atos de violência. Em contrapartida, também me preocupo muito com até que ponto Haddad está envolvido ou não com os escândalos do PT. Me preocupa também porque indivíduos e grupos marginais do PT também praticam violência, mesmo sem incitação. E não temos como, de facto, medir até onde vai isso, tanto de um lado quanto de outro”, desabafa André Demenech, estudante universitário do estado do Espírito Santo que ainda não sabe se votará num dos dois candidatos ou se nulo.

Desde a redemocratização do Brasil, geralmente o vencedor da primeira volta vence também a eleição: em 1989, com Collor de Mello, 2002 e 2006 com Lula da Silva e 2010 e 2014 com Dilma Rousseff, quem ganhou o turno inicial ganhou também o segundo. Segundo o cientista político Antonio Lacerda, a segunda volta vai ser uma disputa de rejeição - todos os candidatos que ganharam a segunda volta no Brasil são aqueles que conseguiram ter uma menor rejeição. Os últimos dados sobre rejeição divulgados pelo Ibope, esta segunda-feira, indicam que Haddad tem 47% de rejeição e Bolsonaro 35%.

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A advogada carioca Rafaella Pareto está indecisa entre votar nulo ou Bolsonaro - o seu voto reflete a rejeição do Partido dos Trabalhadores. “Não voto de forma alguma no PT, nunca votei no PT e não seria agora, essa possibilidade não existe. Eu sempre votei nulo. Nesta eleição a minha dúvida é entre votar nulo e votar no Bolsonaro. O Haddad e o PT não podem fazer nada para ganhar meu voto, não há a menor possibilidade. Se eu votar no Bolsonaro será um voto contra o PT, eu irei votar Bolsonaro se eu vir que o PT tem hipóteses de ganhar. Para a prefeitura do Rio de Janeiro, eu votei no Marcelo Crivella porque não queria que o Marcelo Freixo entrasse e agora vejo que o Crivella está fazendo um governo horroroso e eu me arrependo de ter votado nele. A minha dúvida entre votar e anular é a dúvida de sentir esse peso de culpa, só isso. Na realidade, eu estou torcendo para que o Bolsonaro ganhe, eu só não queria votar nele mas se eu vir que o PT pode ganhar eu vou votar.”

Se, por um lado, para alguns o voto em Haddad é impensável por um sentimento de antipetismo e revolta contra os escândalos de corrupção durante os governos do partido, por outro há os que se distanciam da extrema-direita de Jair Bolsonaro e da defesa da ditadura militar, da tortura, sexismo, xenofobia, racismo e homofobia. Há quem associe a continuação de uma democracia ao candidato Haddad e o regresso da ditadura a Bolsonaro.

Há também aqueles a quem o governo não chega, a ausência do Estado é uma constante que não permite saber o que diferencia uma ditadura de uma democracia, sobrevivem nas margens e nas periferias do Brasil.

Nilo é um idoso negro que ao vender os tradicionais biscoitos Globo percorre todos os dias quilómetros da areia escaldante da praia do Flamengo. Ainda não sabe em quem vai votar, diz que tem de se informar, ver televisão, explica que não sabe quem são os candidatos. Afasta o olhar quando fala, muda de assunto, o negócio está fraco e ele diz que prefere vender os biscoitos mais barato do que deixar estragar.

Roberto vende chá mate. Fresquinho, fresquinho, repete. “Estou muito desacreditado com a política, votei nulo no primeiro turno e vou votar nulo de novo. Hoje liguei a televisão e me deu nojo ao ver a cara daquele Bolsonaro, não aguento olhar para a cara dele, desliguei logo. Mas não vou votar no outro porque não quero ser responsável por quatro anos de outro mentiroso. Eu só acredito no meu próprio trabalho. Eles falam muito e se nós votamos neles depois temos de aguentá-los durante quatro anos, eu não quero dar o meu voto a um candidato e ser responsável por isso. Políticos, para mim, quando vão para a cadeia deviam levar uma coça ao almoço, jantar e na hora do cafezinho. Roubou mais do que uma vez? Leva mais do que uma coça. Assim eles iam pensar duas vezes antes de voltar a roubar.”

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Na sexta-feira passada, feriado de Nossa Senhora da Aparecida, Ana Carolina Luna e a Luís Del Guerra estavam na rua com cartazes de “vamos conversar?” e “dúvidas sobre a segunda volta?”. Eles contam que estão ali por “desespero”, um ato espontâneo. Quando chegaram ao Largo do Machado encontraram outros dois grupos que tiveram a mesma ideia ao mesmo tempo. Um dos grupos distribuiu panfletos à saída da igreja com as propostas de ambos os candidatos na disputa pela presidência.

“Mais do que impor uma visão, queremos entender quais os motivos que levam as pessoas a votar, porque é que alguém quer votar em Bolsonaro”, apontaAna Carolina. “Queremos tentar desconstruir ideias sobre esse candidato que representa o fascismo e a escalada de manifestações fascistas. Muitos não querem conversar, outros votaram em Bolsonaro sem convicção, nós queremos que as pessoas se questionem”, completa Luís.

“Se você vai votar branco, vamos conversar?” é o cartaz do grupo de Maria Eduarda Mattar.

“Há muita coisa ruim e muito ódio de parte a parte. Se a pessoa vai votar Bolsonaro nós queremos conversar, eu acho que existem ilusões. Se as pessoas vão votar branco ou nulo podem também ser mais fáceis de convencer.”

Maria Eduarda e a amiga Daniela Muzi acreditam que estar nas ruas a tentar esclarecer as pessoas é jornalismo de cidadania. “Estamos a abrir um espaço de debate, a política faz parte de tudo, nós só queremos um debate saudável, tentar criar empatia. Uma campanha baseada em fake news é perigosa para a democracia. As pessoas têm o direito de votar em quem quiserem mas quero que votem com conhecimento do que é real”, refere Daniela.

Maria Eduarda confessa que estar na rua é também um exercício de não se deixar contaminar pelo ódio. “Eu sinto um princípio de raiva pelo que está a acontecer mas não posso fazer as mesmas coisas que estou criticando.” Daniela completa: “Eu já saio de casa com medo de me expressar, temos amigos que não podem mais expressar as suas escolhas de vida e isso já é uma derrota para todos”.

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Liseane Morosini não contou à família que ia estar na rua para tentar falar com as pessoas, diz estar “desesperada e agoniada”, uma amiga sua de Recife foi espancada na rua por ter um autocolante de um dos candidatos da primeira volta, Ciro Gomes. Liseane lembra-se do que a família dela sofreu com a ditadura militar no Brasil. “O Brasil não trabalhou essa memória, estou a ver acontecer nas ruas o que eu li nos livros de história. O regime ditatorial vai ocupando espaço pouco a pouco, temos de ocupar espaço também, não podemos ficar quietos e com medo. Eu não me lembro de ver em democracia um clima de tanta animosidade como vi esta semana. As pessoas dizem que vão votar em Bolsonaro mas quando perguntamos quais são as propostas dele ninguém sabe. As pessoas estão confusas. O pacote Bolsonaro envolve entre outras coisas - homofobia e diminuição da mulher, o país desconhece o risco que corre, há muita cegueira. O Bolsonaro não é o novo, ele está na política há quase 30 anos e não fez nada, recebia auxílio de moradia tendo casa própria e a família dele enriqueceu de forma monstruosa e ninguém explica isso. O Brasil é um país que está a votar para regressar à ditadura. É a democracia que está em risco e você tem que dar passos de conciliação.”

Apesar do entusiasmo dos grupos que se propõe a dialogar, são poucos os que param porque têm dúvidas sobre como votar na segunda volta.

Para o arquiteto Luis Henrique Nunes, o voto nulo é um voto consciente. “Não estou indeciso. Estou decidido a votar nulo porque não concordo com o projeto de nenhum dos dois partidos. Os partidos que se apresentam não são democráticos. Eu vou sair de casa e votar nulo porque no Brasil o voto é obrigatório. A votação é do lado de minha casa e o trabalho de não votar é maior, pois eu tenho de ir depois a uma repartição do governo, pagar uma multa simbólica e preencher alguma burocracia e eu não tenho tempo para isso. O que eu temia já aconteceu, não interessa quem ganhe: a democracia está abalada pelo espírito da guerra, do diálogo truncado, do extremismo. Não há vencedores nesta guerra supostamente ideológica. O PT continuará fazendo a sua oposição política intransigente, condenando aquele que não concorda com ele como inimigo. Se o PSL ganhar, haverá uma nova direita igualmente intransigente que poderá fazer o Brasil mais uma vez ficar à deriva. A diferença é que o PT é muito mais sofisticado nos meios porque captura os movimentos sociais e a maior parte dos intelectuais está comprometida com o projeto de poder deles. Não é a toa que as universidades são um bunker ideológico aparelhado.”

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Evandro é negro e vota em Bolsonaro porque ele é “justo e honesto”. Quando questionado sobre as declarações racistas do candidato, desconhece, pede para ver o vídeo. Assiste ao vídeo, pára um pouco, pergunta o que disse Bolsonaro quando confrontado com as declarações racistas que fez. Bolsonaro afirmou que estava a brincar quando disse que um negro era pesado em arrobas, que eles não fazem nada e que não servem nem para procriar. O jovem negro parece ficar mais descansado quando ouve que Bolsonaro disse que estava a brincar, Evandro diz que vai analisar melhor a informação mas que uma brincadeira é só uma brincadeira. “Perfeito só Deus. Qual é o nome do outro candidato mesmo?”

A escritora Juliana Cunha distribuía panfletos da campanha de Haddad no sábado, na Avenida Paulista, no centro de São Paulo. “Depois de algumas panfletagens, acho necessário repensar o conceito ou no mínimo a extensão da chamada ‘nossa bolha’. Hoje, com poucos panfleto, eu ficava a tentar calcular para quem entregar. Olhava um gay, um negro, uma mulher e pensava: para esse eu nem entrego, esse é Haddad. Um casal gay e uma negra de trancinha rasgaram o panfleto na minha cara, um senhor cuspiu em mim, por exemplo. Somos minoria. Somos mais minoria do que estamos supondo. E o ódio da vida real é mais impactante do que na Internet.”