PARLAMENTO
“Sim, sim, é geringonça mas funciona”
Desta vez, as perguntas de Catarina Martins não incomodaram António Costa. Até trocaram amenidades. Jerónimo deu as deixas para o PM brilhar. Passos saiu a meio do debate. Cristas fez perguntas direcionadas. Não houve “papões” que atormentassem o passeio do primeiro-ministro no debate quinzenal
TEXTO FILIPE SANTOS COSTA FOTOS JOSÉ CARLOS CARVALHO
Que muita coisa mudou com a chegada de António Costa ao poder apoiado nos acordos com o PCP e o BE, já se sabe. Menos notado é que uma das alterações mais curiosas foi a mudança de eixo nos debates quinzenais. Diz a tradição que estes debates costumam aquecer no diálogo entre o primeiro-ministro e a oposição; o(s) partido(s) do Governo limita-se a fazer figura de corpo presente, seja fazendo eco do que diz o governo ou dando as deixas para uma qualquer mensagem que o Governo quer passar (o líder parlamentar do PS, Carlos César, já nem se dá ao trabalho de disfarçar e nem faz perguntas – limita-se a fazer intervenções).
Mas isso era dantes. Isso era no tempo em que qualquer pessoa percebia quem era governo e quem era oposição. Ó tempos simples!
A “geringonça” governativa também virou “geringonça” debatente, e o eixo de interesse das idas quinzenais do PM ao Parlamento passou da oposição (que, neste caso, são é fácil de identificar: PSD e CDS) para os partidos que formam essa espécie-de-maioria-que-também-é-espécie-de-oposição. A questão não se coloca tanto o PCP, que dá a Jerónimo de Sousa sempre o mesmo papel (literalmente) de ler textos escritos em tom ameno, muitas vezes sem se conseguir perceber qual é a pergunta – “gostaríamos de chamar a atenção e ouvir a opinião do senhor primeiro-ministro”, disse o secretário-geral comunista no debate de hoje, lançando temas como a reforma fiscal, a “valorização dos produtos portugueses” ou o “rumo do empobrecimento dos últimos 4 anos”. Não foram perguntas, foram deixas para a renovação de votos.
A questão é sobretudo o BE, que pela voz de Catarina Martins tem protagonizado alguns dos momentos mais acalorados dos debates quinzenais de António Costa. No originalíssimo papel de quem apoia o Governo mas não se assume como Governo, a coordenadora do BE tem protagonizado alguns dos despiques mais quentes com Costa, tal como aconteceu no anterior debate quinzenal, com as suas perguntas sobre os custos para o contribuinte do futuro banco mau, que o Governo quer criar para limpar os ativos tóxicos do sistema bancário. E são muitas vezes as perguntas de Catarina Martins e as respostas que António Costa lhe dão a fazer os títulos sobre o debate.
Foi o caso, mais uma vez, no quinzenal desta quinta-feira. “Sim, sim, é geringonça mas funciona” foi um aparte de António Costa em resposta a outro aparte, de um deputado da direita – mas aconteceu durante as respostas do PM a Catarina Martins, e teve tudo a ver com o bailado que decorria entre a bancada do Governo e a do Bloco.
Desta vez, não se deu o caso de Catarina Martins ter sido incómoda. Foi precisamente o contrário: depois de, há duas semanas, a líder bloquista ter puxado a corda mais do que nunca, agora baixou para zero o nível de agressividade em relação ao chefe do Governo. Quando é assim, assiste-se a uma coreografia: o BE puxa pelas suas bandeiras, o PM refugia-se nas suas respostas, ou remetendo para o futuro ou garantindo que tudo fará para garantir que…
Foi assim com as preocupações de Catarina Martins sobre a fuga de capitais para offshores, desafiando o PS para apoiar as novas propostas que o BE apresentou para dar combate aos paraísos fiscais. Costa, que há duas semanas, tinha arrumado o caso dizendo que o Governo já fazer o necessário nessa matéria, garantiu hoje que “neste combate o BE não está sozinho, pode contar com o Governo de Portugal”. Catarina “registou” – mas também terá registado que o PM não prometeu viabilizar as iniciativas bloquistas.
Repetiu-se a dança com a questão do Novo Banco: o BE quer que fique na mão do Estado, mas Catarina Martins fez um downgrade na reivindicação, pedindo “garantias” de que o antigo BES não será vendido se isso trouxer prejuízos a pagar pelos contribuintes, porque não se pode repetir o que se passou com o BPN e o Banif. Costa, mais uma vez, mostrou a sua habilidade: concordou que “ninguém deseja novos Banif nem suportaria novas situações do género”, mas não garantiu aquilo que o BE queria ouvir. Apenas assegurou que “neste momento não fecho porta nenhuma”. “Não podemos precipitar nenhuma solução sem que se demonstre que é a melhor para os contribuintes”, reiterou, deixando em cima da mesa todos os cenários: manutenção do controlo público, nacionalização, venda “ou qualquer outra”.
Sonhos sem papões
Estava o debate nisto e Catarina Martins, antes de levantar outra questão – o combate à precariedade – assumiu o elogio à governação de Costa. “A vida ao país não corre assim tão má, a PSD e CDS é que tem corrido mal, [mas isso] não é problema nosso”. Costa pagou-lhe a doçura na mesma moeda: “É verdade, temos conseguido resolver muitos problemas que à partida eram difíceis”.
Foi então que um aparte sobre a “geringonça”, vindo da direita (e impercetível na bancada de imprensa), permitiu a António Costa o soundbite do debate: “Sim sim, é geringonça mas funciona, é uma grande vantagem. E posso acrescentar mais: a nós não nos incomoda nada ser geringonça, mas a vocês incomoda muito que funcione.”
Ficou o debate resumido numa frase.
Houve mais, claro. O PSD voltou a ir a jogo com Luís Montenegro e Passos Coelho até saiu quando o debate ainda decorria. Montenegro quis saber de eventuais aumentos de impostos ou alterações nos cabazes do IVA, que Costa desmentiu, e insistiu sobretudo na existência de um “anexo secreto” ao Plano de Estabilidade, que seria o plano de contingência para o caso das contas do Estado derraparem. “O que andam a esconder do Parlamento e dos portugueses?”, questionou o líder parlamentar social-democrata. Nada, garantiu o PM, que distribuiu um documento de trabalho que seria o tal anexo, mas que não esclareceu as dúvidas do PSD.
Assunção Cristas, que ao contrário de Pedro Passos Coelho, assume as despesas do confronto com o primeiro-ministro, levou muitas perguntas direcionadas – sobre alterações no IVA e no IMI, sobre a anulação de contratos de associação com escolas privadas e sobre o défice de 2015, que António Costa confirmou ter ficado em 3,03% - informação a que a líder do CDS reagiu pondo sobre o Governo a responsabilidade de garantir que o país fica fora do procedimento por défice excessivo: “0,03% são 60 milhões de euros. Se não ficarmos fora do procedimento de défice excessivo por isso, é muita incompetência do seu Governo!”
O primeiro-ministro respondeu sempre às perguntas, hipóteses e cenários do PSD e do CDS com bonomia, desejando-lhes que até ao próximo debate quinzenal não tenham “sonhos tão atormentados por papões que a realidade insiste em desmentir”. Sem oposição de esquerda, não houve papão que atormentasse Costa.