Patriotismo

“Israel é o meu país mas está em guerra com o meu povo”: uma noção de ‘casa’

Antes de ser uma pátria, Israel era uma nação — que convivia bem com o exílio e as diferentes nacionalidades assumidas pelos judeus dispersos pelo mundo. A perseguição na Europa fez nascer o sionismo e a migração à terra dos antepassados e fez desejar um Estado. Com ele, porém, surgiram também gritantes contradições. Hoje Israel é um país. Um país que oprime outro

Texto Luciana Leiderfarb enviada a Israel, Ilustração Ana Simões

Sabra significa, literalmente, cato. E sabras são os judeus nascidos em Israel. Ofer, um taxista de Telavive, aponta três razões para ser este o termo acertado: o cato sobrevive em condições difíceis, está revestido de espinhos para se defender e uma vez aberto revela um interior mole e frágil. “Assim somos”, diz de olhos fixos no espelho retrovisor, antecipando a surpresa no semblante do passageiro. Claro que a encontra, embora não pelos motivos que supôs. Partindo da base de que todas as identidades são complexas — e de que nenhum povo resiste à aproximação da lupa —, não admira que Ofer tenha de recorrer a uma explicação tríplice. O que chama a atenção são as palavras utilizadas. Palavras como ‘sobrevivência’, ‘espinhos’ e ‘fragilidade’, que trazem consigo o desenho contraditório, labiríntico, da identidade israelita.

Desde já porque, antes de ser uma pátria, Israel foi uma nação. É algo que vem de longe, que está inscrito nos ensinamentos bíblicos, no Talmud e na Torá, os livros sagrados judeus. Como religião de carácter nacional, os judeus sentem-se um povo único mesmo que estejam espalhados pelo mundo, mesmo que não pratiquem os preceitos da religião — e mesmo que não acreditem em Deus. Por isso, havendo judeus e judeus — observantes, tradicionalistas, laicos, de esquerda, de direita, ortodoxos e ultraortodoxos —, existe um só núcleo nacional. “Esta dupla condição de nacionalidade e religião permitiu-lhes viver dispersos e ainda assim preservarem a identidade”, diz ao Expresso A. B. Yehoshua, um dos grandes escritores israelitas.

16 de maio de 1948, dois dias após a fundação do Estado de Israel. Foi há 70 anos FOTO GETTY

16 de maio de 1948, dois dias após a fundação do Estado de Israel. Foi há 70 anos FOTO GETTY

No início, essa preservação passou pelo verbo, pelos textos, pelas tradições. Por aquilo que os judeus mantinham como seu enquanto absorviam outras identidades nacionais. Na Europa, o século XIX mostrou-lhes a sua ambiguidade quando, a par de uma integração social e económica, surgiu a rejeição. “Eles eram alemães, austríacos, franceses, cidadãos europeus. Tinham aderido a um ideal de integração que não se cumpriu. Estavam num limbo identitário”, diz Avraham Milgram, historiador do Instituto Internacional de Estudos sobre o Holocausto do Yad Vashem. Na Europa do leste, um antissemitismo nacionalista e secular tornava-se cada vez mais violento, “em especial após a Grande Guerra, quando o desmembramento dos grandes impérios deu lugar aos Estados-nação, em que se cria uma combinação de território, Estado, língua e religião, e dos quais os judeus ficam de fora, alheios ao projeto nacional”.

Assim, os judeus, cuja ideia de nação era sobretudo a expressão nostálgica, cultural, de um exílio que não colocavam verdadeiramente em causa, começaram a mudar de direção. O que daí surgiu chamou-se ‘sionismo’, um movimento nascido em finais do século XIX e impulsionado pelo austríaco Theodor Herzl, que defendia a normalização da situação anormal dos judeus da Europa e a sua fixação num território onde pudessem construir um país. Localizar esse território na Palestina do mandado britânico advinha não só do facto de já aí existirem comunidades judias: a lógica da exclusão de partes fazia com que, descartada a Europa, fizesse sentido que a terra de retorno fosse aquela com a qual mantinham ligações históricas. Porém, esta mudança fez-se muito gradualmente — “demasiado tarde”, frisa A. B. Yehoshua, recordando que grande parte das comunidades judaicas europeias não aderiu ao sionismo. No livro “Uma História de Amor e Trevas”, o escritor Amos Oz conta como o avô lituano, que passou a vida adulta em Odessa, deparava-se na rua com cartazes com a frase “judeus, vão para a Palestina”. A mãe, natural de uma aldeia ucraniana conquistada pelos polacos, frequentara um liceu sionista Tarbut, já em língua hebraica — e Oz relata como estas instituições eram encorajadas pelas autoridades locais, por contribuírem para “resolver” o problema judeu.

14 de maio de 1948: David Ben-Gurion, que se tornou o primeiro chefe de Governo israelita, lê a declaração de independência FOTO Getty

14 de maio de 1948: David Ben-Gurion, que se tornou o primeiro chefe de Governo israelita, lê a declaração de independência FOTO Getty

A rejeição da Europa fez transitar a identidade judaica para um campo mais concreto, o do anseio pela terra. Fez acentuar a noção de que só tendo uma pátria os judeus deixariam de ser discriminados. O pai da advogada Orit Kammir pertenceu à onda imigratória dos anos 20: apesar de falar predominantemente ídiche, quis que os filhos, já nascidos na terra de Israel, se exprimissem apenas em hebraico. “Ele veio a fugir dos pogroms e imbuído do sentimento idealista de que poderia aqui ter uma pátria. Não tinha o sentido de estar a colonizar — isso só as gerações seguintes, sabras, o compreenderam. Não pensaram que estavam a tirar a terra a alguém, até porque na Europa, apesar de haver liceus e escolas sionistas, pouco se sabia do que era a Palestina”, explica Orit Kammir, criada em Jerusalém. O sionismo, continua, enquanto gerador da ideia de “pátria real” — palpável, não perdida —, pretendia “algo que era na altura muito justo: libertar os judeus, torná-los parte do progresso universal, afastar-se de uma história de perseguição”.

Várias migrações se seguiram: judeus dos Magrebe, da Líbia, do Egito, do Irão, do Iraque; sobreviventes do Holocausto, polacos nas purgas de 1956 e 1968, judeus oriundos da ex-União Soviética em finais dos anos 80, judeus da Etiópia. Os números decaíram na última década, mas mesmo assim continua a haver “Aliyah” — o retorno a Israel que permite aos judeus de todo o mundo tornarem-se cidadãos. Segundo o Ministério de Relações Exteriores israelita, 27 mil pessoas chegaram ao país em 2017 ao abrigo desta lei, em especial vindas da Europa. Hoje, Israel tem 8,8 milhões de habitantes, dos quais 6,5 milhões são judeus e 1,8 milhões são palestinianos israelitas - há também 400 mil cidadãos de outras origens. E de fora, ainda e cada vez mais, estão os palestinianos da Cisjordânia, de passaporte maioritariamente jordano e sob ocupação militar; os de Jerusalém Oriental, a quem Israel, apesar de considerar a Cidade Santa “reunificada” desde 1967, atribui apenas um cartão de residência; e os da Faixa de Gaza, de onde Israel retirou, mas que mantém cercada militarmente e ameaçada.

Gaza FOTO GETTY

Gaza FOTO GETTY

O que Israel não inclui distorceu o patriotismo israelita inicial. Dividiu o país, sendo que essa divisão pende para a direita musculada e nacionalista — racista, diz A. B. Yehoshua — que exacerba o discurso da defesa, da segurança e do “Estado judeu”. A maioria (60%) dos cidadãos de Israel mostrou-se assim orientada nas últimas eleições e não é por mero acaso. “É preciso perceber que acima de tudo existe uma divisão entre judeus, em particular entre asquenazes e judeus vindos dos países árabes, que hoje são 50% da população. Estes sentem-se inferiorizados pelos primeiros e ao mesmo tempo alimentam um forte sentimento antiárabe. E votam contra os árabes dando o poder à direita asquenaze”, explica Orit Kamir, advogada de Jerusalém e militante no partido Meretz, da esquerda trabalhista.

E o que Israel não inclui está a defini-lo, cada vez mais, aos olhos do mundo, ao ponto de já não poder ser pensado à margem do conflito israelo-palestiniano. E também aos olhos de 40% dos israelitas, para quem falar de patriotismo hoje é, acima de tudo, falar sobre a situação dos árabes no país. Sobre o “veneno diário” — a expressão pertence a Orit — da ocupação e da demonstração de força que Israel não perde ocasião de reafirmar. Um palestiniano israelita como Amin Khalaf, fundador da Hand in Hand, a única escola israelo-árabe e bilingue do país, dirá: “Israel é o meu país mas está em guerra com o meu povo”. Um palestiniano de Jerusalém Oriental, Ziad Al-Hammouri, que dirige o Jerusalem Center for Social and Economic Rights, apontará por sua vez: “Israel considera que viemos de fora, que não estamos cá há vários séculos”. E o que diz um judeu israelita e religioso, como o linguista Gabi Birnbaum, filho de judeus sobreviventes do Holocausto? “Israel é a minha casa mas estou muito pessimista. Se não houver paz, se não se restituírem os direitos aos palestinianos, não vai haver futuro.” E eis como, em Israel, a noção de casa, de pátria, pode conter em si mesma os espinhos do seu oposto.