Edição Especial Israel

Atrás de uma utopia

Texto José Cardoso

O Expresso Diário desta segunda-feira é uma edição especial sobre os 70 anos de um Estado cujos pais fundadores perseguiam uma utopia. Um Estado fundado há 70 anos, que aproveitou um pretexto surgido há um século, se baseou numa ideia lançada há 123 anos e se escora em documentos com mais de dois milénios. Eis as balizas, de jure, da construção do Estado de Israel, um dos países mais amados e odiados desde que foi autoproclamado, no dia 5 do mês de lyar de 5708 do calendário judaico.

Os documentos com mais de dois milénios são textos da Bíblia, mais em concreto o Antigo Testamento, que os judeus mais extremistas brandem como título de propriedade; a ideia lançada há 123 anos estava contida no livro “O Estado judeu”, publicado em 1895 pelo pai do sionismo moderno, o austro-húngaro Theodor Herzl; o pretexto surgido há um século foi a célebre declaração Balfour, a carta que o então ministro britânico dos Negócios Estrangeiros Lord Arthur Balfour enviou a 2 de novembro de 1917 ao barão Lionel Rothschild, líder da comunidade judaica do Reino Unido, na qual referia a intenção do Governo britânico de facilitar o estabelecimento de um Lar Nacional judeu na Palestina; o Estado nasceu no dia 14 de maio de 1948 do calendário ocidental.

Após séculos de perseguições, após as exações do fim do século XIX, à medida que se aproximava o ocaso do Império Otomano, após os pogrom antes e depois do nascimento do império soviético, após o Holocausto e as limpezas étnicas nazis e não só, os judeus tinham finalmente uma casa.

“Um povo sem terra para uma terra sem povo”, expressão que foi usada para justificar a criação do Estado. Mas não só a terra tinha povo, como o novo Estado foi erguido, também, na ponta da espingarda e à bomba.

Os seus pais fundadores sonhavam com um Estado sionista e socialista. Não socialista à moda soviética, não socialista versão maoista, mas sim socialista-idealista, quase a fazer lembrar “Utopia”, de Thomas More. Um socialismo idealista de que são exemplo os famosos kibutz, as quintas coletivas criadas pelos pioneiros (numa das quais vivia aliás o “pai” do Estado, David Ben-Gurion), ou o próprio sistema eleitoral, em que 1% dos votos permitia eleger 1 deputado, para que todos as comunidades judaicas tivessem representação política.

No entanto…

Desde o primeiro segundo que Israel é um Estado “impossível”. Impossível no sentido em que todos os prognósticos, todas as probabilidades, foram nesse sentido. Desde a sua criação, entrou em guerra pelo menos uma vez em cada década (1948, a chamada guerra de libertação; 1956, contra o Egito; 1967, contra todos os vizinhos árabes; 1973, contra o Egito e a Síria; 1982, invasão do Líbano; de 1988 até agora as várias “intifadas”).

Localizado no meio de um mar árabe e muçulmano, sobrepõem-se em Israel três conflitos: um conflito local, opondo os nacionalismos palestiniano e judeu; um conflito regional, opondo Israel aos países árabes (que bastas vezes se alimentaram do primeiro); e um conflito geoestratégico, seja a disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética dos tempos da Guerra fria seja a atual entre EUA e Rússia — e respetivos aliados na região.

Neste estado de guerra quase permanente houve, porém, um ponto de viragem: a Guerra dos Seis Dias. É sob o espetro dela que Israel ainda hoje vive. Ao conquistar os territórios palestinianos da Cisjordânia, de Gaza e a parte leste de Jerusalém e os Montes Golã à Síria (a península do Sinai foi depois devolvida ao Egito), criou um dilema, que meio século depois não só persiste como está mais vivo do que nunca: o que fazer com mais de cinco milhões de palestinianos e respetivo território, que a ONU e quase todo o mundo defendem que deve ser um estado independente?

Israel opõe-se terminante e ferozmente, invocando razões de segurança (mas há também uma questão de “espaço vital”, para não falar em equações como as reservas aquíferas, um bem que na região é mais precioso do que o petróleo). E não podem anexá-los, porque deixaria de ser um estado judaico para passar a ter maioria muçulmana.

Israel vive, portanto, um paradoxo. É um país que é, politicamente, a única democracia digna deste nome numa vasta região que vai muito além do Médio Oriente. E é, ao mesmo tempo, um país que administra na prática um espaço físico com o dobro do seu tamanho onde promove todos os dias o apartheid e a repressão.

De que houve novos exemplos no próprio dia do 70º aniversário do país, dia em que a repressão de protestos palestinianos contra a mudança da embaixada dos Estados de Telavive para Jerusalém já tinha feito até meio do dia mais de quatro dezenas de mortos e centenas de feridos.

“Estou certo de que o mundo julgará o Estado judaico por aquilo que ele fizer com os árabes”, dizia em 1949 o primeiro Presidente de Israel, Chaim Herzog. Em 2018 isso é mais verdade do que nunca — e o mundo julga-o, hoje, quase exclusivamente por isso.

A utopia dos pais fundadores ficou há muito para trás.