Aos 70 anos
Aos 70 anos já não se é uma criança. Nem um adulto. É-se, na contagem do tempo humano, uma pessoa de uma certa e respeitável idade. Uma pessoa com experiência e saber que não comete os erros da juventude e não os deseja cometer. Olha-se para trás e vê-se a inconsciência dos verdes anos, o desalinho dos entusiasmos, o idealismo dos desejos generosos, o domínio das emoções. Num país poderia ser o mesmo, mas quando contamos os anos de um país, 70 anos são pouco, são nada, podem facilmente desaparecer na poeira da História. Um país com 70 anos pode deixar de ser um país de um dia para o outro. O presente extingue-se e com ele o passado e um judeu nunca esquece o passado. Esquecer o passado significaria, na história dos judeus, exterminar o futuro.
Este medo, este terror, ainda é um sentimento comum nos israelitas. E é um sentimento explorado largamente por políticos cheios de ambição como Benjamin Netanyahu, Bibi, um homem cujo nome está há tantos anos no meio do nome de Israel e da política de Israel que se tornou indissociável do estado, no sentido de estado de coisas, de Israel. Bibi quer que pensem que entre Israel e a destruição de Israel pelos inimigos está apenas e sempre um homem solitário, ele. Entre Israel e um segundo Holocausto resta apenas um salvador da pátria, ele. O homem que nunca acreditou na solução dos dois Estados. E muito menos a desejou. E que tem agora, na América de Trump, a cumplicidade necessária. O irmão do herói de Entebbe, acossado pelos tribunais, ergueu uma estátua a ele mesmo.
A solução dos dois Estados há muito se tornou impossível, não apenas por razões geopolíticas mas por razões logísticas e geográficas. E até biológicas
A solução dos dois Estados tornou-se uma das infinitas piedades que se escrevem e conversam todos os anos e todos os dias sobre o conflito israelo-palestiniano, o mapa da paz, a faixa de Gaza, a Cisjordânia, os colonatos, blá blá blá. A solução dos dois Estados há muito se tornou impossível, não apenas por razões geopolíticas mas por razões logísticas e geográficas. E até biológicas. As linhas geradas na Guerra dos Seis Dias, que os árabes desencadearam e perderam, determinaram a vitória no terreno da hegemonia militar israelita a que se convencionou chamar Ocupação.
O país dos claros princípios é hoje, aos 70 anos, um país vibrante, justo e democrático do lado de cá, e um país temível, cruel e implacável do lado de lá
O que era válido no jovem país dos anos 60 e 70, quando Israel era a realização do sonho sionista de uma pátria para os sem pátria, de uma pátria de guerreiros em vez de vítimas do matadouro das quais só fumo negro restaria no ar malcheiroso dos campos de extermínio, não é válido hoje e agora. Israel mudou, os israelitas mudaram, o lugar onde lhes foi dada uma pátria mudou. E, sobretudo, a Ocupação mudou tudo e todos. Correu mal para tudo e para todos. Estragou tudo e todos. O país dos claros princípios é hoje, aos 70 anos, um país vibrante, justo e democrático do lado de cá, e um país temível, cruel e implacável do lado de lá.
Quando as pessoas me dizem que vão a Israel pela primeira vez, pergunto sempre se ficam do lado de cá ou se vão visitar o lado de lá. Se vão visitar o lado de lá, podem preparar-se para ver dois países antagónicos com muitos habitantes que se odeiam de morte e gostariam de abolir o outro lado. Sair de Jerusalém para Ramallah e de Ramallah para o resto da Cisjordânia, atravessados os checkpoints e observado de longe e de perto o colosso a que chamam Muro, é como sair de um planeta para outro. Dois mundos com regras diferentes. E atravessar o túnel para Gaza é entrar no território da escuridão e da desumanidade, da indiferença na brutalidade.
Todos os que piedosamente tentaram intervir na regulação do conflito velho como o Médio Oriente, mais não fizeram do que pegar na pá a ajudar a cavar o fosso. A América deu dinheiro e armas e tentou a moderação que nunca exerceu realmente, nem poderia exercer, porque a América dos judeus não é a dos palestinianos. A Europa, para não sair do conforto da declaração vácua de princípios e solidariedades, atirou dinheiro para cima do problema
Israel não é o único responsável, o único culpado, se quisermos usar a terminologia religiosa, deste estado de coisas, desta separação fatal. Todos os que piedosamente tentaram intervir na regulação do conflito velho como o Médio Oriente, mais não fizeram do que pegar na pá a ajudar a cavar o fosso. A América deu dinheiro e armas e tentou a moderação que nunca exerceu realmente, nem poderia exercer, porque a América dos judeus não é a dos palestinianos. A Europa, para não sair do conforto da declaração vácua de princípios e solidariedades, atirou dinheiro para cima do problema, da Alemanha vencida pela sua culpa histórica à Grã-Bretanha vencida pelo seu pragmatismo virado do avesso. Com os anos, para uns e para outros, o petróleo e as guerras do petróleo tornar-se-iam mais importantes do que resolver a guerra entre judeus e árabes por uma terra estreita demais para nela caberem todos. A tal do leite e do mel.
As Nações Unidas criaram uma organização, mais uma, a UNRWA, que parecia a salvação e apenas contribuiu para tornar os palestinianos, várias gerações falhadas de palestinianos, uma tribo de pedintes chefiados por uma tribo de corruptos. E os estados árabes ricos, os do petróleo do Golfo Pérsico, ajudaram à missa contribuindo para reconstruir o que Israel destruiria na guerra seguinte, ou contribuindo para colocar no trono chefes que nunca quiseram a paz e que vivem da guerra de atrito, a guerra parcial e fracional que lhes permite ir colecionando empréstimos e doações. O Hamas é o exemplo disto. E continua a sacrificar os súbditos enviando-os para um lugar, uma linha visível de demarcação, onde possam ser alvejados, num arremesso de Intifada. Os obedientes são carne para canhão e nada disto serve para nada exceto para reclamar a notícia do martírio como uma vitória moral.
Se as potências tivessem deixado este conflito em paz, ele teria sido resolvido pelos dois lados. A interferência constante das potências, espelho refletor dos vícios hegemónicos coloniais, e a interferência constante das legiões de moralistas e de benfeitores da humanidade, deram cabo de tudo
De fora, ficaram os palestinianos pelos quais ninguém verdadeiramente se interessou, os que ainda rastejam nos “campos de refugiados” e vegetam nos terrenos ocupados. Os que nasceram, cresceram e morreram em cativeiro.
Se as potências tivessem deixado este conflito em paz, ele teria sido resolvido pelos dois lados. A interferência constante das potências, espelho refletor dos vícios hegemónicos coloniais, e a interferência constante das legiões de moralistas e de benfeitores da humanidade, deram cabo de tudo. Israel, habitado por um povo que aprendeu a sobreviver como nenhum outro e que jurou que nunca mais seria apanhado em falso pelos inimigos, limitou-se a ir manipulando uns e outros a seu favor, correndo os riscos inerentes. Teria sido simples dizer duas coisas: os refugiados da naqba nunca mais poderão regressar, não cabem todos nesta terra porque um novo país nasceu neste lugar, e só o reconhecimento da existência e o direito à existência desse país poderá originar a existência e o direito à existência do outro país vizinho, simetricamente vigilante e simetricamente inteligente. Ninguém ousou dizer estas verdades e laborou-se, piedosamente, fabulosamente, no reino da quimera. Israel estabeleceu relações funcionais e mesmo cordiais com o Egito, a Turquia, a Jordânia (com uma população maioritariamente palestiniana) e com a Arábia Saudita. E nunca conseguiu fazê-lo com a gente insubmissa dos territórios ocupados. Nem com os ayatollahs iranianos e o pupilo Hezbollah, que não se importariam de pulverizar Israel.
No centro de tudo, da guerra infinita entre sunitas e xiitas, o problema palestiniano deixou de existir. É menos que uma vírgula neste parágrafo da História. Israel venceu
É tarde demais. Nem o mundo já se interessa pelo conflito como se interessou no século XX. Os palestinianos inventaram o terrorismo moderno, o que hoje nos assombra, e uns e outros, israelitas e palestinianos, estão exaustos. Muitos entretanto morreram, e ali morre-se de desgosto, e uma elite intelectual e diplomática de um e de outro lado foi sendo substituída por máfias e grupos que fizeram da guerra eterna um negócio. Israel está diferente, está mais velho, mais misturado, mais penetrado de gente que nem a História de Israel sabe. Está permeado de ortodoxias e fundamentalismos que fazem dos partidos democráticos reféns. Nesta selva, Bibi reina. E do outro lado, a disputa entre Hamas e Autoridade Palestiniana mais não é do que a disputa dos despojos e das doações. Do dinheiro e do poder. Numa região atormentada pelas guerras da Síria e do Iraque, da América com a Rússia e o Irão, da Arábia Saudita e dos Emiratos com o Iraque e o Irão, e, no centro de tudo, da guerra infinita entre sunitas e xiitas, o problema palestiniano deixou de existir. É menos que uma vírgula neste parágrafo da História. Israel venceu.
Resta a verdade que ninguém ousa dizer. A Ocupação tornou-se infinita e irreversível. Tornou-se, para uns e outros, uma eternidade. E não importa o que digamos sobre isto. Alguém dirá sempre que não temos razão. Que tomámos partido
É uma vitória amarga mas não deixa de ser uma imensa vitória. E os vencedores são os que escrevem o relato. A capital em Jerusalém, agora reconhecida pelos Estados Unidos, é apenas um símbolo dessa vitória. Há muito que Israel era o senhor de Jerusalém. Israel venceu. Apenas resta saber o que fará com os vencidos. Anexar sem direitos? Demasiado perigoso, Israel tornar-se-ia um Estado de apartheid. Reconhecer direitos iguais aos palestinianos e dar-lhes num passaporte? Demasiado perigoso, os árabes são a maioria e ganhariam as eleições por uma cabeça e um voto. E sobrariam sempre os subversivos, os traidores, os assassinos. Os extremistas de um lado e do outro da fronteira traçada na cabeça e no coração.
Resta a verdade que ninguém ousa dizer. A Ocupação tornou-se infinita e irreversível. Tornou-se, para uns e outros, uma eternidade.
E não importa o que digamos sobre isto. Alguém dirá sempre que não temos razão. Que tomámos partido. Que somos a favor do terrorismo ou do antissemitismo. Que escolhemos o lado moralmente errado.