Hebraico
“Agora já temos todas as palavras”
Para língua morta, o hebraico estava bem vivo. Quem o diz é Gabriel Birnbaum, linguista da Academia da Língua Hebraica. Faltava despi-lo da erudição, trazê-lo para a vida diária. Isso foi possível graças à teimosia de um só homem: Eliezer Ben-Yehuda
Texto Luciana Leiderfarb enviada a Israel, Ilustração Ana Simões
Para qualquer estrangeiro que tivesse nessa manhã saído para a rua em Jerusalém, o dia prometia um calor insuportável. Para um israelita, porém, o dia era de ‘hamsim’. Para um linguista como Gabriel Birnbaum, ‘hamsim’ é tudo menos uma palavra simples. E o facto de ser um termo árabe incorporado ao hebraico moderno dá-lhe ainda contornos particulares: “Em árabe significava ‘50’, isto é, os 50 dias que medeiam a Páscoa e o Pentecostes. E embora o hebraico tenha o termo ‘sharav’, no quotidiano usamos ‘hamsim’ para designar este vento de leste, quente e seco, próprio da primavera”. É cedo e já Gabi Birnbaum se dedica à decifração da língua que estuda desde sempre e da qual conhece todas as derivações. Aos 67 anos, é um dos linguistas de topo da Academia da Língua Hebraica e o responsável por um projeto monumental, um mamute que dá pelo nome “Dicionário Histórico do Hebraico” e que — nada é simples por aqui — começou a escrever-se pelo Tav, a última letra do alfabeto.
A língua hebraica não tem, como Israel, 70 anos. Mas recomeçou a ser falada poucas décadas antes da criação do Estado, depois de um lapso de 1.700 anos durante o qual só manteve a sua vigência através da leitura e da escrita. “Neste sentido”, diz Gabi, “é único porque podia ter desaparecido”. “Após a destruição do 2º Templo, no ano 70 a.C., a língua que prevaleceu na região foi o aramaico, também falado pelos poucos judeus que aqui permaneceram.”
Se a nação quiser ter um Estado independente, não o irá conseguir sem uma língua
Aquando a diáspora judaica, o hebraico deixou de ser usado para comunicar, mas mesmo assim não estava completamente morto. “Era até um cadáver muito vivo”, ri-se o linguista, notando que a língua, absorvida na literatura sagrada (Torá, Talmud), passou a ser escrita em meados do século XVIII, quando surgem as primeiras obras de literatura secular. A este “iluminismo”, como o chama Birnbaum, seguiu-se o crescente interesse das comunidades judaicas pelo hebraico, que coincide com o cada vez mais acentuado antissemitismo europeu. Porém, enquanto língua de um hipotético país, o hebraico é a obra da vida de um só homem obstinado: Eliezer Ben-Yehuda.
Neste ponto, Gabi Birnbaum oferece um café. Vai agora contar a história do hebraico moderno, aquele que já se falava quando chegou a Israel com a família, em 1957, aos seis anos, vindo da Hungria. Os pais tinham ambos sobrevivido ao Holocausto — o pai estivera em Auschwitz — e teriam vindo antes, mas os russos não os deixaram sair. Ben-Yehuda hoje seria bielorrusso, estudou hebraico bíblico e pensou tornar-se rabino. Mas acabou por emigrar com a mulher para a Palestina em 1881. “Decidiram só falar em hebraico entre eles e com os filhos”, diz Gabi, acrescentando, divertido, que até os fechava em casa para que não falassem outra língua — o que, na Jerusalém de então, iria certamente acontecer. “Ben-Yehuda era um autodidata, nunca aprendeu linguística e sabia muitas línguas. Falar o hebraico respondia a um pressuposto ideológico e daí a sua teimosia: se a nação quiser ter um Estado independente, não o irá conseguir sem uma língua.”
Como se cria uma palavra? “Como todas as línguas semitas, o hebraico está construído sobre raízes e as raízes são padrões formados por consoantes”
Não é sem alguma ironia que Birnbaum prossegue mostrando o reverso desta história. Em “O Estado Judeu”, livro fundador do sionismo, escrito em 1895, Theodor Herzl perguntava qual iria ser a língua de comunicação deste. E respondia que “não podia ser o hebraico, porque quem pode comprar um bilhete de comboio em hebraico?” Sendo húngaro e austríaco — e um dos jornalistas que acompanhou de perto o caso Dreyfus, em França —, Herzl aventou que a língua de um Estado judeu podia muito bem ser o alemão. E mesmo nomes como Haim Bialik, pioneiro da poesia hebraica moderna embora habituado a exprimir-se oralmente em ídiche, consideravam impossível transformar o hebraico numa língua falada.
Em Jerusalém, Ben-Yehuda imaginou o contrário. E contagiou, a pouco e pouco, muitos outros judeus. “Se pensarmos bem, não havia outra escolha razoável. Os judeus não tinham outra língua comum”, reflete Gabi. ‘Escolha’ é a palavra-chave que justifica o processo, estranho e fascinante, de trazer o hebraico para o campo quotidiano. “Em 1890, eles perceberam que tinham perdido palavras. Que naqueles livros em hebraico erudito havia termos para destino, vida, morte, sacrifício, mas não havia como dizer guardanapo, guarda-chuva, jornal, escritório ou dicionário!” Foi assim criada, nesse ano, a primeira Comissão para a Língua Hebraica, justamente para dar às coisas os nomes que faltavam, e também para evitar que as pessoas, entusiasmadas com a tarefa, “desatassem a fazer palavras”. “Todos queriam contribuir e, se assim fosse, em vez de uma só língua, teríamos várias”, delicia-se Gabi Birnbaum. E como se cria uma palavra? “Como todas as línguas semitas, o hebraico está construído sobre raízes e as raízes são padrões formados por consoantes. Não é assim tão difícil: a partir de um mesmo padrão, podem surgir muitos vocábulos novos. E agora já temos todas as palavras.”
Por volta de 1914, o hebraico era já a língua mãe dos judeus da Palestina. E era uma língua real. Quando a Academia da Língua Hebraica foi fundada, em 1953, o Estado de Israel já tinha cinco anos. E quando Ben-Yehuda iniciou a escrita dos 17 tomos do novo dicionário, em 1959, há dois que Gabriel Birnbaum residia no país. Por isso estava longe de saber que se tornaria linguista e que estudaria o hebraico até à exaustão, ao ponto de ser escolhido para liderar a equipa de 20 pessoas que hoje e há 14 anos trabalha no Dicionário Histórico do Hebraico. Este irá conter “todas as palavras em hebraico desde o início da sua história, com todas as entradas onde surgem, até aos dias de hoje”. Da Bíblia a Amos Oz. Está organizado “não por entradas, como os dicionários comuns, mas por raízes”. E nunca terá fim, porque uma língua não morre duas vezes.