MIGRAÇÃO| ISRAELITAS EM PORTUGAL

A metáfora: Israel é húmus sem limão espremido

Elad, Itamar, Rona e David são 1,33% dos israelitas que vivem em Portugal - não há mais de 300, segundo números da embaixada. Continuarão a ser 1,33% porque há em Portugal o que sonham para Israel

Texto Marta Gonçalves Ilustração Ana Simões

“O prato é como uma tela em branco.” Vazio.

Elad Bodenstein está atrás do balcão de mármore, o olhar fixo no prato.

Com a colher cheia de um creme espesso e beije, desliza sobre a cerâmica antiga. Da direita para a esquerda, da esquerda para a direita. Esquerda, direita. Repete como um pincel que desce pela tela.

Agora, o prato já não está vazio. Tem uma camada irregular de húmus (pasta de grão) e quase parece um pequeno deserto – pela cor, pelos jeitos, pela robustez.

“Sei que é normal as pessoas espremerem limão, mas o sabor fica muito extremo.” Elad Bodenstein, 39 anos, está atrás do balcão de mármore, o olhar fixo no prato. “Não quero extremos ou sobreposições de sabores. Quero que ao provarem sintam um sabor homogéneo, a combinação de todos os ingredientes como se fossem um só.” É o que Israel está a tentar fazer, dir-nos-ia ele quase uma hora depois. “Israel é uma fusão de gentes. Temos de nos esbater num só para conseguirmos existir no Médio Oriente. Sermos homogéneos.” Com o marido, Itamar Eliyahuo, abriu há menos de um ano um restaurante no Bairro Alto, em Lisboa. Os dois fazem parte dos não mais de 200 ou 300 israelitas que vivem em Portugal.

Tantura é a vila piscatória não muito longe de Telavive que dá nome ao restaurante. Era lá que Elad e Itamar viviam. Trouxeram as memórias, juntaram-lhes as recordações dos locais por onde viajaram e acrescentaram as novidades daquele a que agora chamam casa. Ali, tudo funciona em harmonia: na pequena cozinha, os dois mexem-se como se dançassem, sem nunca se encontrarem, como se assistíssemos a uma coreografia milimetricamente ensaiada. “Têm de provar isto, é um queijo búlgaro.” Também eles são uma mistura: Elad tem origens polacas e romenas, Itamar vem de famílias iraquianas e tunisinas.

“Israel é como uma panela em que se pôs vários legumes totalmente diferentes a cozer. Que vão ficar ali a cozer até formarem um caldo homogéneo e saboroso.” O país ainda não está no ponto de caldo, mas os dois acreditam que lá chegará. “Israel é muito novo.”

Elad, sentado, e Itamar abriram o Tantura há quase um ano Foto Tiago Miranda

Elad, sentado, e Itamar abriram o Tantura há quase um ano Foto Tiago Miranda

Elad e Itamar conheceram-se online. Apaixonaram-se. “Adoramos cozinhar e receber pessoas.” Faziam-no tantas vezes para os amigos e familiares - aliás, foram os dois que cozinharam durante os três dias no seu casamento – que começaram a pensar que talvez fosse boa ideia trabalhar com comida. Em Israel tiveram um serviço de catering mas queriam mais. Precisavam de mais. “O desafio de ir para um sítio onde não tínhamos nada nem ninguém. Algo maior”, explica Elad. E vieram.

“Tínhamos visitado Portugal na lua de mel e adorámos. Regressámos algumas vezes para ter a certeza que não estávamos iludidos – quer dizer, quando estamos apaixonados tudo nos parece incrível. E não estávamos”, dizem enquanto se preparam para a fotografia. “Há qualquer coisa de inexplicável que nos faz apaixonar todos os dias: a postura muito digna e elegante ao mesmo tempo que é tudo muito descontraído. A junção entre o moderno e o antigo...”

Em Israel, contam-nos, acordar depois das 7h já é ser preguiçoso. As rotinas são muito mais madrugadoras, o dia (e noite) acabam muito mais cedo do que em Lisboa. Em Portugal encontram a calma e a tranquilidade que não tinham. “Se os portugueses saíssem três meses daqui, percebiam o quão bom isto é. Vimos de um país incrível, embora rodeado de pessoas que preferiam não estar ali. É muito difícil e tens de estar sempre a lutar. Aqui, vive-se simplesmente”, explica Elad. Por cá, podem sentar-se à mesa com os clientes/amigos iranianos, egípcios e libaneses. Em Israel isso dificilmente (ou nunca) aconteceria devido aos conflitos históricos entre os vários países. “Falamos de cultura e comida. Tem sido tão épico que não queremos falar de política. [Israel] é um local problemático, mas o que se passa não é resolvido pelas pessoas normais. Não é escolha nossa”, diz Itamar.

Sentem falta da família e dos amigos. E têm saudades de ouvir cantar em hebraico.

“At one point, we are fighting with the panela.” O português mistura-se com o inglês, que por vezes foge para o hebraico. Elad conta como se fazem as delícias turcas - uma espécie de goma vermelha viva atravessada por frutos secos e coberta pela delicadeza do açúcar em pó. “Na Turquia é feito nas máquinas, nós fazemos manualmente.” Fica quase uma hora sempre ao lume enquanto alguém mexe até o líquido se transformar numa pasta pegajosa.

No Tantura a comida não só é israelita, é do Mediterrâneo. No entanto, é conhecido como o único restaurante israelita na capital e é por lá que muitas vezes podemos encontrar parte da pequena comunidade a viver em Lisboa. “Desde que abriram, vou lá várias vezes. Faz-me lembrar a comida de casa.” Rona Schliesser, 29 anos, casou com judeu português que conheceu numa festa em Telavive há dez anos. Depois de cumprir o serviço militar obrigatório - em Israel homens e mulheres são chamados a servir pelo menos durante dois anos -, terminou a licenciatura em Comunicação e Estudos Europeus e achou que era altura de viver uma aventura, de explorar outros lugares. “Portugal era mais fácil porque o meu marido tinha cá família. Quando vim não sabia se era para ficar.” Mas foi.

Calma, paz

Pinto, Castro ou Pereira... Se tem um apelido destes é muito provável que, de alguma forma, a sua família tenha origens judaicas. Sobretudo nomes de frutos, árvores e terras estão associados a cristão novos, forçados à conversão ao cristianismo há muitas, muitas décadas. Esta é uma das histórias que Rona conta nos passeios a pé que organiza para grupos de israelitas. Está em Lisboa há cinco anos e há dois viu na criação da ligação aérea entre Portugal e Israel uma oportunidade de negócio. Os percursos turísticos do Portugo – assim se chama a empresa - são acompanhados de guia e totalmente falados em hebraico. “Começámos duas pessoas, agora somos nove. Primeiro fazíamos só em Lisboa, hoje temos no Porto e vamos a Sintra, Cascais, Belmonte, Tomar...”

Rona está há cinco anos em Portugal Foto José Fernandes

Rona está há cinco anos em Portugal Foto José Fernandes

Rona chegou a Portugal com o marido em plena crise, foram morar para o bairro onde ele cresceu e onde sabiam que teriam o apoio muito próximo da família. “Vi o desenvolvimento económico nos últimos anos e foi incrível.” Hoje, Rona divide o dia entre o trabalho e a vida familiar, em breve vai ser mãe pela segunda vez. Emma, dois anos, já nasceu em Lisboa. Agora vem um menino (em Israel não há o hábito de dizer o nome antes do nascimento, é quase uma tradição para não dar azar).

“De cada vez que preciso de alguma coisa nova, lá vêm novas palavras. Quando fui mãe, vieram as fraldas e as toalhitas. Quando tive o acidente com o carro, veio o seguro e a mecânica. Quando fizemos obras em casa, foram as torneiras e os azulejos. Ainda estou a aprender português.” E a falta de prática na língua também se deve aos portugueses, que quase sempre se disponibilizam para falar inglês quando percebem o sotaque cerrado de Rona. “Sempre me senti bem-vinda, nunca tive qualquer problema de racismo. As pessoas são sempre simpáticas, tentam ajudar.”

O clima de Israel é parecido ao de Portugal - à exceção da chuva no verão -, as pessoas não são muito diferentes - os israelitas um pouco mais próximos e com menos fronteiras - e até os sabores da comida são semelhantes - usam muito o azeite, o alho e o grão, por exemplo. Israel está a crescer e já é uma das grandes potências mundiais em start ups e tecnologia. Então porque não voltar? “Cá está muito mais tranquilo. Lá somos mais intensos, mais enervados. Há muito menos paciência, talvez por causa da situação complicada do país, nada pode esperar. Cá é muito o contrário. Há calma, paz. E isso não temos em Israel. Acho que encontrei paz. Estou mais tranquila. Sei que nada vai escapar. Aqui estou bem.”

À distância, Rona descreve Israel como um país muito moderno, sobre o qual muitas vezes há uma ideia errada (“acham que é muito religioso e conservador, que estamos sempre em guerra”) e onde se vive com pressa e a uma velocidade muito diferente daquela que tem em Lisboa. “Nada pode esperar para amanhã, porque ninguém sabe o que vai acontecer.” E acredita que as novas gerações estão cansadas de viver assim: “Não há eles e nós. Há espaço para todos. Sobretudo a minha geração está farta de guerras e quer que pare. É bom termos um sistema de defesa eficaz mas preferia que não tivéssemos de o usar. Não é forma de viver.”

David importou as primeiras gerberas para Portugal

“Com quem falaram mais?”, pergunta-nos Rona quando termina a entrevista. “Somos poucos israelitas em Lisboa”, explica. “Falámos com um senhor chamado David que vende flores.” Rona não percebe logo quem é. “David?” “Este senhor aqui”, mostramos-lhe o telemóvel com a fotografia. “Ah, já sei, o Dudu. Chamamos-lhes sempre Dudu. Ele já cá está há muitos anos.” O Dudu de Rona é David Yarkoni. E Rona tem razão: ele já cá está há muito tempo, desde 1986.

David foi sempre adiando o regresso a Israel, hoje não sabe se regressará Foto DR

David foi sempre adiando o regresso a Israel, hoje não sabe se regressará Foto DR

David, 63 anos, vive na outra margem do Tejo, em Alcochete. Também é por ali que tem a sua estufa. Engenheiro agrónomo, foi um dos primeiros a importar e a plantar gerberas em Portugal – hoje são das flores mais vendidas do país. “Lembro-me que comprei em Israel, que as trouxe para cá e vendi aos floricultores portugueses, que começaram a plantá-las nas suas estufas.”

Chegou com a mulher e o filho – a filha já viria a nascer em Portugal -, vinha para dar assistência e formação sobre o uso de uns novos adubos. Era para ficar por um ano, depois ficou mais um e outro. “As pessoas que encontrámos em Portugal eram totalmente diferentes das do resto do mundo. Especiais no aspeto humano - hoje ainda são, mas não tanto. Havia e há muita calma e simplicidade. Encontrámos muitas pessoas capazes e inteligentes. Ficámos cá porque gostamos de viver aqui. A vida é muito relaxada e com excelente qualidade: a comida, a paisagem, as pessoas. Tudo. Para nós foi um paraíso. É um paraíso.”

As gerberas têm dezenas de variações de cor: rosas, amarelas, brancas, lilás, na estufa de David predominam as vermelhas e as alaranjadas. Continua a ter casa em Israel, vai lá duas ou três vezes por ano de visita. “Antes dizia que para o ano é que ia regressar de vez a Israel, tinha esse objetivo. Deixei de o fazer. O tempo está a passar e já nem me atrevo a dizer se algum dia vou regressar.”