DEBATE QUINZENAL | ANÁLISE

O mecanismo gripado

A “geringonça" nunca foi um relógio suíço, mas agora move-se com mais dificuldade em direção ao quarto Orçamento. Poucas vezes o tom entre parceiros foi tão agreste como no debate quinzenal desta terça-feira

Texto Vítor Matos Fotos Tiago Miranda

Há Governo? São contra. Procure esta terça-feira perceber quem governa, quem apoia o Governo, quem acusa e quem defende. O PS esteve sozinho esta tarde. O primeiro-ministro passou duas horas solitário a defender-se da oposição e da oposição dos seus supostos parceiros por causa das negociações com os professores. A corda está esticada e os professores estão a testar a solução governativa mais uma vez: “chantagem inédita”, “prepotência”, disse Catarina Martins. E subiu o tom: “É muito grave.” Heloísa Apolónia, dos Verdes, falou em “arrogância”. E Jerónimo em imposição de forma “autoritária” da vontade do Governo. PSD e CDS disseram a mesma coisa que a esquerda. O jogo está baralhado. E este debate também foi um jogo de apropriações.

Mas apenas isto não chega para percebermos o que se pode estar a passar. Podia ser apenas retórica parlamentar acesa. Junte as peças. António Costa dramatizou com o chumbo do Orçamento antes do congresso do PS, numa entrevista ao “Diário de Notícias”. No congresso ignorou os parceiros. Recentrou a direção. Fez um acordo laboral com os patrões e a UGT, sobre precariedade, contra o Bloco e o PCP. E deixou as negociações com os professores numa posição de tudo ou nada. A quem aproveita mais este episódio da novela “tensão na geringonça”, temporada IV?

Ainda não se percebe claramente como caminha o argumento para o episódio final. Costa sabe que o tempo joga a seu favor. Está a testar os parceiros como talvez ainda não o tivesse feito. Tem um orçamento para aprovar daqui a poucos meses, as negociações estão prestes a começar, mas o clima de entendimento parede cada vez mais difícil nos pressupostos mais básicos. O que aqui conta é também a linguagem: o tom de voz de Catarina Martins, de Jerónimo de Sousa e de Heloísa Apolónia. E de António Costa. A maneira como respondeu à agressividade da coordenadora do Bloco de Esquerda não corresponde ao estilo condescendente como costumava encaixar as críticas de Catarina Martins: Costa reagiu à esquerda (mais a Catarina do que a Jerónimo) com o mesmo tipo de irritação com que costuma brindar a direita.

Pode ser uma posição tática de ambos os lados. António Costa chegou àquele momento em que pode apertar a esquerda até ver onde vão bloquistas e comunistas: se um dos parceiros rompe e não vota o Orçamento, o PS pode ir para eleições com o argumento do voto útil, porque Bloco e PCP mantiveram-se irredutíveis no fundamental. E aproximar-se da maioria absoluta. Isso interessa-lhes? Talvez não. E à esquerda interessa ir para eleições mais cedo e ser consequente com o que defende, ou aceitar políticas contra as quais sempre se bateu? O mais provável é que todos sejam pragmáticos e queiram transformar as fraquezas em forças de modo a partirem para a campanha só no fim de 2019 com o argumento eleitoral que Paulo Portas usou ao longo de anos - “dê-me força, dê-me força”, repetia ele em cada feira e em cada mercado. “Dê-me força”, dirão Catarina e Jerónimo. Fizeram o que podiam e não fizeram mais por causa da velha “correlação de forças".

Se o caso dos professores é apenas mais um problema da engrenagem do mecanismo, mexe com uma parte da base eleitoral do Bloco e do PCP - mas também com a do PS. Entre o tudo e o nada, algo se arranjará para ambas as partes salvarem a face.

Costa é definitivo quando diz que não há 600 milhões de euros para acomodar as carreiras dos professores. Mas está aberto para contabilizar 175 milhões de euros, ou seja, dois anos e nove meses das carreiras docentes congeladas. Portanto, haverá margem negocial.

Mas esta também foi uma tarde de apropriações no hemiciclo. O CDS apropriou-se da bandeira dos professores e da Fenprof que “diabolizava”, como lembrou Costa. O PSD fez o mesmo. Mas o Bloco fez mais, e apropriou-se da memória do próprio António Arnaut, tão homenageado no congresso do PS há semana e meia. Catarina Martins citou-o duas vezes para pedir uma nova lei de bases da saúde nesta legislatura (recordando o trabalho nesse sentido de João Semedo com o próprio António Arnaut). O primeiro-ministro recordou o seu grupo de trabalho liderado por Maria de Belém Roseira, cujo relatório estará pronto em setembro. Mas para o Bloco isso significa um adiamento da questão para a outra legislatura. Mais um foco de tensão.

António Costa também não parece ter gostado desta apropriação. A “geringonça” nunca foi um relógio suíço, mas o mecanismo já esteve mais bem oleado.