
Uma guerra com muitas guerras dentro, em que todos chocam entre si e em que tudo vai dar a 1918
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A Síria é o tabuleiro e os sírios os peões de uma guerra-xadrez que, um dia, será lembrada como o grande conflito mundial do início deste milénio. Entre motivações estratégicas, financeiras, políticas e religiosas, tentamos delinear o mapa de interesses que, direta ou indiretamente, contribuíram para a morte de centenas de milhares de pessoas nos últimos sete anos
Texto Joana Azevedo Viana
De Damasco a Pyongyang vão quase 8000 quilómetros, mas a distância é só um número quando há interesses financeiros em jogo. A entrada da Coreia do Norte na longa e sangrenta guerra da Síria, que não é de agora mas que só agora foi confirmada, veio baralhar ainda mais as contas sobre quem é quem numa guerra que começou por não o ser, com protestos pacíficos que em 2011 descambaram numa guerra civil e que, em anos recentes, fizeram com que essa guerra passasse a ser uma guerra de todos, de milícias e mercenários, de religiosos e políticos, de exércitos contra exércitos — o “novo Afeganistão”, como definia há alguns dias a “Bloomberg”, num artigo que começava e acabava com uma premonição: “Esta guerra não vai ter fim.”
De Damasco a Bruxelas vão 3200 quilómetros, quase como de Lisboa à capital belga, mas a distância é só um número quando o que tem havido da parte da União Europeia é silêncio e inação face aos massacres de civis que se amontoam na Síria há sete anos, alguns deles com recurso a armas químicas proibidas, produzidas com os materiais que a Coreia do Norte tem feito chegar a Assad desde 2012, apesar das sanções internacionais a que o regime de Kim Jong-un está sujeito. Como referia esta semana Natalie Nougayrède no “Guardian”, “a Síria é a derrota moral dos europeus” — “Depois de 1945 a Europa disse ‘nunca mais’ mas o ‘nunca mais’ está a acontecer à frente dos nossos olhos no Médio Oriente”, mesmo às portas do continente europeu.
De Damasco a Washington D. C. vão 9500 quilómetros, mas a distância é só um número quando a preocupação da Administração norte-americana é guerrear com a Rússia que, por sua vez, continua a guerrear em nome de Bashar al-Assad e, acima disso, em nome dos seus interesses estratégicos geopolíticos. De Damasco a Moscovo vão 2500 quilómetros, que não são nada para a aviação russa fazer chegar apoios ao contestado Presidente sírio; isso continua a acontecer mesmo depois de Vladimir Putin ter anunciado a retirada das suas tropas da Síria, em março de 2016.
Entre Damasco e Moscovo fica a Turquia, que tem na guerra da Síria uma oportunidade de destruir as aspirações de independência dos curdos enquanto ataca posições do autoproclamado Estado Islâmico (Daesh), o inimigo de todos. Os EUA chegaram a financiar os curdos para que combatessem os extremistas sanguinários do califado no terreno (deixou de o fazer há menos de um ano), mas para a Turquia os inimigos dos seus inimigos seus inimigos são.
Ainda sobram neste mapa os libaneses do Hezbollah, aliados ao Irão, xiita - os outros dois grandes apoiantes de Bashar al-Assad -, e Israel, que até 2017 não assumiu oficialmente o seu envolvimento nesta guerra. E a par dos Estados sunitas do mundo árabe, aliados ao Ocidente contra Assad, com a Arábia Saudita à cabeça, até a China tem interesses a proteger nesta guerra. Pedimos ajuda a António Dias Farinha, arabista que dirige o Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Lisboa, para entender o complexo xadrez mundial que vai definir este século à custa da dilaceração da Síria e dos sírios.
O “regime” + Rússia, Irão e Hezbollah (extra: China)
“Houve mudanças evidentes nos últimos anos no que diz respeito aos aspetos estratégicos e políticos desta guerra, que hoje envolve as grandes e médias potências da região, e não apenas os Estados Unidos e a Rússia”, começa por explicar Dias Farinha. Contudo, vale a pena começar pelo que não mudou, que é o apoio de Moscovo a Assad. “Putin tem tropas e interesses na Síria, sobretudo porque é na Síria que tem uma importante base naval a ligar ao Mediterrâneo. É por causa disso e por causa dela que não vai facilmente deixar cair o regime de Assad, porque é um regime que protege os seus interesses.”
Sobre os russos, o especialista refere ainda o “papel extremamente importante” que têm tido nas últimas semanas face ao que está a acontecer em Ghouta Oriental, um subúrbio de Damasco cercado pelas tropas sírias que, desde meados de fevereiro, está sob intensos bombardeamentos das forças de Assad. A Rússia garante que não está a participar nessa ofensiva, ainda que o Ocidente garanta que sim. Aqui é importante notar, observa Dias Farinha, “que Putin disse que ia haver uma trégua de cinco horas por dia em Ghouta e, de facto, isso foi cumprido”, numa altura em que a ONU continua “a limitar-se a declarações utópicas e sonhadoras, a um trabalho nas nuvens” sem efeitos práticos.
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Se a Rússia apoia Assad com aviões de guerra e politicamente no Conselho de Segurança, o Irão continua a fornecer armas, linhas de crédito, aconselhamento militar e até, diz-se, tropas de combate para não deixar cair o regime sírio, com o apoio do Hezbollah libanês. Também tem sido Teerão a recrutar combatentes para milícias xiitas no Iraque, no Afeganistão e no Iémen. Aqui os interesses são não só estratégicos, mas religiosos. “Cerca de 10 a 12% da população síria é ligada a uma fação religiosa xiita que são os alauitas, um grupo de certa forma próximo dos duodecimanos do Irão, distinto da maioria sunita.” Os xiitas estão em minoria no país (e no mundo), mas ao longo de décadas o poder na Síria esteve sempre nas mãos dos alauitas através do clã Assad.
Para manter a força do xiismo, o Irão não pode deixar cair Assad. Para manter a sua importante base naval e o acesso ao mar, a Rússia não pode deixar cair Assad. E para se manter abastecida de petróleo, a China, apesar de não estar diretamente envolvida no conflito, não pode deixar cair Assad. “Os interesses da China ligam à Síria através do Irão, que abastece Pequim de petróleo e que é aliado próximo da Síria pelo xiismo e por ser contra Israel.” São duas potências que estão ao lado de Assad e têm poder de veto no Conselho de Segurança, a juntar a uma Coreia do Norte que conta com décadas de cooperação militar com a Síria.
Os “rebeldes” + EUA, Turquia e Arábia Saudita (extra: Israel)
Dias Farinha diz que é importante atentar no papel importante da Turquia nesta guerra, um país que, graças a ela, “volta agora a ser uma grande potência na região”. Membro da NATO, aspirante a membro da União Europeia, a Turquia de Erdogan “quer voltar aos tempos do Império Otomano” e, face a esta guerra, “acabou por ter de inverter a sua estratégia fundamental antiga de manter uma aliança com Israel”, explica. Neste contexto, Ancara aliou-se aos Estados árabes sunitas da região “também em representação de 90% da população turca, que é muçulmana”.
Com os crescentes riscos de o Daesh invadir o seu território, Ancara lançou uma ofensiva para destruir os jiadistas em território sírio mas aqui a coisa complica-se por causa dos curdos, a maior força de combate no terreno contra os extremistas, os grandes responsáveis pela falta de avanços dos terroristas. “A Turquia combate os curdos porque se, na sequência desta guerra, os curdos criarem um país independente, há o risco de os 25 milhões ou mais de curdos turcos reclamarem uma parte do território da Turquia para o seu novo país, o Curdistão, um país que, aliás, lhes foi prometido em 1918 aquando da divisão do Império Otomano”.
Mas e o Daesh não é sunita, como a maioria dos países árabes e muçulmanos que estão a lutar contra Assad? É, e isso trouxe problemas à Arábia Saudita. Em cada uma das duas grandes fações do islamismo, xiismo e sunismo, há um alargado leque de grupos, desde laicos progressistas a fundamentalistas religiosos como os que seguem o Daesh ou os que seguem a corrente do sunismo defendida e representada pelos sauditas, o wahabbismo.
Por se considerar protetora dos interesses islâmicos, “a Arábia Saudita e os seus aliados do Golfo começaram por apoiar os movimentos islamitas [anti-Assad], até ao surgimento do Daesh, mas quando Abu Bakr al-Baghdadi se proclamou como novo califa [em 2014], isso obrigou os sauditas a oporem-se”, explica Dias Farinha.
“Apesar de ninguém saber realmente quem eram os descendentes de Maomé há 1500 anos” — a questão fundamental que está na base das divisões entre xiitas e sunitas —, a Arábia Saudita apresentou-se sempre como representante máxima do islamismo, sendo até hoje, como lembra o especialista, “a guardiã de Meca e Medina, os dois locais mais sagrados do Islão”. Daí advém a eterna rivalidade com o Irão, xiita, que acaba sempre por marcar qualquer conflito naquela região (o caso da Síria é o mais óbvio, mas há a destacar também a sangrenta guerra por procuração que está a dilacerar o Iémen).
Nisto tudo, Israel aparece aqui como? Pela proximidade geográfica à Síria, que é tão só “o grande inimigo de Israel na região”, explica o professor da Faculdade de Letras. “Israel, que mantém acordos de paz com a Jordânia e com o Egito, está extremamente expectante em relação a esta zona do globo e interessa-lhe manter o mundo árabe dividido, contribuir para o enfraquecimento destes países, que, de resto, na sua maioria, não reconhecem o Estado de Israel.”
Mas e os rebeldes, afinal quem são e quem os apoia? Não há uma resposta simples, até porque, tal como acontece no islamismo, há diferentes correntes e ideologias a separar o que, de resto, era até há uns anos apresentado como uma frente unida para depôr Bashar al-Assad.
“Cada caso é um caso, mas pode dizer-se que vai tudo dar à formação da Síria, em 1918, no final da I Guerra Mundial, quando não se teve em conta a autonomia e as diferenças entre cada tribo em cada região”, remata Dias Farinha. “Organizou-se um país com várias nações, com várias tribos, antagónicas também na sua conceção do islamismo. Entre os chamados rebeldes há grupos de tendência laicista, adeptos do modernismo liberal, que quiseram aproveitar a vaga de legitimidades democráticas [da Primavera Árabe, quando eclodiu a guerra na Síria], mas que acabaram por sofrer com a sua própria desorganização. Hoje há variadíssimos grupos rebeldes, uns alinhados com Assad e o Irão, outros com a Arábia Saudita, outros até com o Daesh ou a Al-Qaeda e estes de tendência mais laica. Mas acabaram todos por chocar entre si e estão hoje presos a estas lutas.”