
“Ela morreu, sabes?”: as marcas que a guerra deixou e que deixará
Maya, 10 anos, brincava com a amiga Loris todos os dias, depois da escola Foto DR
Maya ainda tem medo quando está deitada e ouve um barulho mais alto. O irmão, Abd, também. Têm 9 e 10 anos e fugiram da Síria. Yhia é mais velho e acredita que, se sobreviveu à guerra, consegue “aguentar tudo o resto”. Estes miúdos viram, ouviram, sentiram o que ninguém – muito menos uma criança – deve ver, ouvir ou sentir. Que marcas vai a guerra deixar? “O passado não tem de ser necessariamente futuro”
Texto Marta Gonçalves
“Aqui é a Loris”, diz Maya enquanto aponta para a menina de cabelos longos e amarelos, de olhos verdes no desenho que acaba de pintar. “Era minha amiga na Síria. Brincávamos juntas quase todos os dias.” Maya tem 9 anos e está com a família em Portugal há pouco mais de um. “Ela morreu, sabes?” Com a mesma naturalidade que descreve os jogos que faziam juntas anuncia-nos a morte de Loris. Para Maya, a morte tornou-se quase normal. De nós, espera ouvir qualquer coisa, mas não ouve. Com o silêncio, continua a falar porque a Maya não faltam histórias como esta.
“Um dia estava no meu quarto e ouvi um som muito alto. Pum! A minha mãe veio a correr ter comigo e só víamos sangue.” Maya não espreitou pela janela para ver o que tinha acontecido na rua, mas a mãe, Sanaa, 38 anos, fê-lo. “Eram partes de corpos que rebentaram”, conta quase em sussurro, para que filha não ouça. Viveram a guerra na Síria por quase cinco anos, primeiro em Alepo, depois em Idlib e, por fim, em Afrin, de onde caminharam por mais de uma semana até chegarem à fronteira com a Turquia. À medida que fugiam, a guerra aproximava-se. Com elas estavam Abd, 10 anos, e Saad, 44 anos. Agora, a família de quatro pessoas mora na zona do Cacém, nos arredores de Lisboa, e é aí que os encontramos.
Maya, Saad, Sanaa e Abd numa fotografia tirada no verão do ano passado Foto José Carlos Carvalho
Ao final de um dia de trabalho dos pais (Sanaa é contabilista, Saad faz manutenção numa empresa) e de escola para os dois irmãos, deixam-nos entrar em sua casa. Fazem questão de oferecer café, bolachas e fruta. A casa está quente, acolhedora. Eles estão agasalhados, secos. O cenário é bem diferente daquele que viviam há exatamente dois anos, quando chegaram à Grécia após duas tentativas falhadas de atravessarem o Mediterrâneo (na primeira, foram detidos na praia pela polícia; na segunda as autoridades turcas detiveram-nos ainda no barco; só à terceira alcançaram o destino).
“A vida era muito difícil”. Difícil é a palavra mais usada por Sanaa, é a única que usa para descrever a vida na Síria, já fala português mas o vocabulário ainda é curto. “Não desejo que ninguém sinta o que senti. Com dois filhos pequenos e a guerra, não sabia o que podia acontecer.” Muitas vezes, a meio da noite, acordavam com o estrondo de um ataque aéreo e corriam para a cave, e ali ficavam horas. Deitavam-se sem nunca saber se iam acordar na manhã seguinte.
“Acorda, acorda”. Maya recorda-se das noites em que era acordada abruptamente para se esconder. “Tinha medo”, diz quase envergonhada. Sentava-se ao lado da mãe, do outro estava o irmão, Abd. As mãos tapavam os ouvidos para ouvir o menos possível, os olhos ficavam cerrados. “Fazia assim, como a mãe me ensinou”, explica enquanto recria os gestos.
Hoje, Maya ainda treme quando ouve um som mais alto, sobretudo à noite. “Quando durmo na minha cama e ouço as pessoas a falarem tenho um bocadinho de medo.” Abd também. Durante algum tempo nem conseguia dormir. “Ele não se esqueceu de nada. Maya também não, mas a forma como lidam com o assunto é diferente.” Ela fala mais, ele não.
O desenho de Abd, 10 anos, tem menos cor do que o da irmã Foto DR
Abd é mais tímido, refugia-se no quarto durante a conversa. “Abd, vem cá”, chama a mãe. “Abd, vem cá”, insiste o pai. Também ele fez um desenho das memórias que tem dos tempos em que vivia na Síria. Ao contrário de Maya, usou pouca cor e não há pessoas, apenas casas, montanhas e árvores. “Esta casa aqui à direita era a nossa casa em Alepo. Desculpe, desenhei um pouco maior do que era...” Abd fala sempre muito baixo e olha para o chão. Mas sorri. E aos poucos, vai começando a olhar os outros nos olhos. “Essa árvore era onde brincava. Subia muitas vezes e ficava lá em cima. Com os meus amigos jogava à bola, às escondidas – era mais fixe quando jogávamos às escondidas à noite.” Os irmãos já dominam o português, usam as expressões de outro qualquer miúdo da idade deles.
“O desenho mostra que são coisas marcantes, que deixam saudades”
A família Abdi faz parte dos mais de mil pedidos de asilo que Portugal recebeu desde que começou a Guerra Civil na Síria, em 2011. No total, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), 1051 sírios pediram para ficar no nosso país, 433 tinham menos de 18 anos.
A guerra na Síria tem sido várias vezes referida pelas Nações Unidas (ONU) como um dos conflitos mais perigosos para as crianças. Segundo a Unicef, em 2016 morreram pelo menos 652 crianças, e 280 mil viviam em zonas cercadas com acesso reduzido a bens de primeira necessidade. Mais de dois milhões estavam refugiadas em países como Turquia, Líbano, Jordânia, Egito e Iraque. “Muitas entraram nos barcos da morte para atravessarem o Mediterrâneo e chegarem à Europa”, lê-se no relatório da agência da ONU.
“Pouco se fala das crianças vítimas da guerra. Vemo-las, nas filas angustiantes dos refugiados, nos escombros dos prédios bombardeados, a vaguear como zombies nas cidades em ruínas. A guerra consegue acumular a fome, a violência física e a violência psicológica, o desprezo pelos outros cidadãos, o desrespeito pelos direitos humanos, só criando miséria e pobreza, mal-estar e feridas insanáveis.” O pediatra Mário Cordeiro sublinha que os traumas que a guerra deixa numa criança dependem muito da personalidade, temperamento e resiliência de cada uma delas.
Foto Khalil Ashawi/ REUTERS
Estes são miúdos que quase morreram, que muitas vezes viram outros morrer, que passaram noites ao frio, que perderam tudo. “Podem surgir alguns comportamentos regressivos. Por exemplo, uma criança que já não fazia chichi na cama, pode voltar a fazer. Não quer dizer que todos os que passam por experiências traumáticas venham a ter perturbação de stress pós-traumático, mas esse é um quadro que pode surgir. A questão do barulho é típica nestas crianças, porque está associada a bombas e aos sons da guerra”, explica ao Expresso Mariana Reis Barbosa, psicóloga e coordenadora de um grupo de voluntariado da Plataforma de Apoio aos Refugiados.
Quando desafiámos Maya e Abd a desenhar algumas memórias, nenhum deles recusou. Aliás, ambos souberam logo o que queriam fazer. “O desenho mostra que são coisas marcantes, que deixam saudades. Até pode ser bom sinal eles conseguirem falar e exteriorizar o passado”, diz a psicóloga.
“Se sobrevivi à guerra, consigo aguentar tudo o resto”
Yhia tem 17 anos e é sírio. Está em Portugal há mais de dois anos. Chegou a Lisboa no âmbito do programa de reinstalação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), veio com mãe, as irmãs, o irmão, os cunhados e sobrinhos.
“Antes, Damasco era cidade muito boa, não havia outra igual no mundo”. Tudo mudou em 2011, quando Yhia, então com 10 anos, acordou a meio da noite com um som brutal e foi à janela. “O que é isto?”, questionou. A guerra tinha começado. E nas noites seguintes, custou a adormecer. “Habituei-me.” Habitou-se aos aviões a passar, às bombas a explodir, aos amigos a desaparecerem. Com o tempo, as conversas com os primos deixaram de ser sobre jogos e brincadeiras, passaram a ser sobre armas. “Parecíamos militares a discutir.”
Foto DELIL SOULEIMAN/AFP/Getty Images
“Se sobrevivi à guerra, consigo aguentar tudo o resto”, diz-nos Yhia. Este é o outro lado de quem passa pelo conflito armado, aprende a sobreviver. “Obviamente, há um conjunto de fragilidades nestas crianças pelo que viveram, mas ganham uma resiliência, uma capacidade de adaptação, uma independência e autonomia que as torna diferentes.” A psicóloga, quando estava como voluntária na ilha de Lesbos, na Grécia, olhava para aqueles miúdos e pensava: “daqui a uns anos vão mandar no mundo.” “Do ponto das aquisições mais formais vão ficar desfasados, ao mesmo tempo aprendem a desenrascar-se”, acrescenta.
Da Síria, Yhia sente falta do cheiro, do ar ali se respirava. “Não sei explicar, mas era diferente. Lembro-me perfeitamente”. Um dia, se a guerra que teima em não acabar chegar ao fim, quer regressar a Damasco. “É a única possibilidade de a minha família voltar a estar toda junta.”
“O passado não tem de ser necessariamente futuro”
“O que queres ser quando cresceres?”
“Médica”, a resposta de Maya sai disparada.
“Mas sabes que é muito difícil?”
“E então? Eu vou conseguir. Quero ser médica aqui em Portugal mas também na Síria para ajudar as pessoas a não ficarem doentes. Quero ser médica das crianças, vou brincar com elas para não chorarem.” Aos 9 anos, fala cinco línguas (português, inglês, árabe, curdo e um bocadinho de grego), que foi aprendendo pelas várias regiões por onde ia passando.
Abd está a repetir o quarto ano, ainda não falava português corretamente. “Gosto de matemática. É mais fácil do que português e estudo do meio, que é uma grande confusão.” Está na mesma turma de Maya. “Quero construir coisa, fazer casas e carros. Quero ser engenheiro. E também gostava de ser futebolista.”
Para Mário Cordeiro é necessário fazer renascer a esperança nas crianças com passados como o dos dois irmãos. “É preciso fazer o luto do passado, tentar dar a ideia de que são livres, na medida em que podem ser, progressivamente, senhores do seu destino. O passado não tem de ser necessariamente futuro.”
Foto HAMZA AL-AJWEH/AFP/Getty Images
O pediatra acredita que há “um enorme” trabalho psicológico a fazer, para evitar que a nova geração, que assistiu aos “requintes de tortura e malvadez”, seja revoltada e composta por pessoas que apenas conhecem “o argumento de arma na mão”.
“Acho que vamos ter grupos muito distintos: acho que as crianças que foram acolhidas vão desenvolver esses sentimentos de compaixão e empatia, vão ser as mais capazes de criar uma Síria de paz e estabilidade; por outro lado, as que não tiveram nada do ser humano além de conflito, violência e agressão, tendem a desenvolver uma visão do mundo com revolta e sentimento de ódio”, acrescenta a psicóloga Mariana Reis Barbosa.
O futuro de Sanaa, Saad, Abd e Maya passa por Portugal – onde “todas as pessoas nos sorriem, cumprimentam e nos tratam bem”. Um dia vão regressar à Síria? “Só se for para visitar. No meu país, irmãos mataram irmãos. É preciso muito tempo para que tudo seja esquecido”.