
Quando se percebe o que se perdeu
Bruno impressionou-se com a riqueza cultural de Alepo. Miguel adorou a ponte metálica de Deir ez-Zor. Cristina atravessou no centro da Síria um campo de oliveiras e não se esqueceu daquela paisagem bucólica. Rui viveu em Damasco e guardou na memória a vida daquelas ruas. Estes quatro portugueses visitaram a Síria antes de o conflito começar, em 2011, e descrevem um país que já não existe. Estas são as memórias da cor que a Síria perdeu
Testemunhos recolhidos por Soraia Pires
Miguel Vieira, assessor de imprensa da Federação Portuguesa de Futebol, 45 anos
Estive quase quatro semanas na Síria e fiz uma viagem grande pelo país. Planeei ficar dois dias em Alepo, no norte, e acabei por ficar uma semana, porque havia muitos sítios a visitar.
Alepo Foto: Miguel Vieira
Lá, fiquei numa zona muito comercial. Existiam muitos hotéis pequenos e nas ruas vendiam produtos feitos a partir de azeite, como sabonetes. Havia muitas pessoas na rua, muitas mesmo. Quando lá cheguei, aconselharam-me a ir tomar o pequeno-almoço num café. Foi lá que conheci dois homens que começaram a falar comigo e perceberam que eu entendia um pouco de árabe. Foi o início de uma bonita relação. Acabei por passar o dia nos arredores de Alepo com eles. No dia seguinte convidaram-me para fazermos um piquenique numa montanha e levaram amigos e o filho de um deles, o Hammoudi, que acabou por ser para mim um afilhado. Comprámos peixe e legumes e fizemos a refeição numa zona despovoada. Lembro-me que nesse monte havia um mosteiro abandonado, onde os casais deixavam lenços azuis pendurados numa árvore, com juras de amor.
Um dos mercados em Deir ez- Zor que Miguel Vieira visitou Foto Miguel Vieira
Gostei muito de visitar a cidade de Deir ez-Zor, que fica quase na fronteira com o Iraque. Tinha uma ponte metálica muito impressionante e uma vista fantástica sobre o rio Eufrates. Tocou-me particularmente quando soube que a ponte tinha ficado destruída depois de um bombardeamento. Quando percebemos o que se perdeu, nasce um grande sentimento de impotência.
A ponte de Deir ez-Zor antes de ficar destruída. Foto: Miguel Vieira
Fui sempre bem recebido em todos os sítios onde estive e algumas das pessoas marcaram-me. Fiquei com o contacto dos dois homens que me levaram a conhecer os arredores de Alepo e cheguei a prometer ao Hammoudi que o trazia a Portugal e lhe mostrava os pontos principais. Quando regressei a Portugal, falei com eles algumas vezes pelo telefone. Disseram-me que tinham saudades minhas. A última vez que falámos foi em 2012. Há seis anos que não tenho notícias deles.
Tenho uma memória engraçada da minha viagem naquele país: lembro-me de ver a publicidade do Cristiano Ronaldo a um champô. Lembro-me de olhar para o cartaz e pensar: “fogo, até aqui?”
A publicidade ao champô de Cristiano Ronaldo. Foto Miguel Vieira
Bruno Carvalho, jornalista, 36 anos:
Visitei a Síria em agosto de 2007. Fiz uma viagem que começou na Turquia e que terminou na Síria. Naquela altura, o país estava muito tranquilo, apesar das tensões que já se viviam. O que senti logo foi que a mentalidade daquele país era mais aberta do que no interior da Turquia. Na Síria havia lojas com lingerie nas montras e mulheres de minissaia e sem terem a cabeça tapada, e não estava à espera disso.
Passei mais tempo em Alepo. A cidade era muito dinâmica. Tinha uma riqueza difícil de descrever. Recordo-me claramente dos mercados, eram impressionantes: tinham muito comércio e muita gente, era uma azáfama enorme. As ruas estavam sempre limpas, cuidadas e cheias de restaurantes. Agora estão cheias de destroços. As pessoas vendiam desde têxteis a hortaliça e havia sempre muita gente em redor dessas vendas ambulantes. As pessoas lá eram muito simpáticas e o tratamento foi sempre muito acolhedor. Queriam falar sobre o país, e os jovens queriam contar qual era o sonho deles, que profissões queriam seguir. Agora não têm tempo para pensar no futuro.
Fotografia tirada em 2007 em Damasco. Foto: Bruno Carvalho
Em Damasco, uma cidade com alguma influência francesa, lembro-me bem da confusão que se vivia nas ruas. Havia muitos táxis, muito trânsito, muitas buzinadelas. E recordo-me também do mercado, que era fantástico. E, por incrível que pareça, havia algumas discotecas. Não fui a nenhuma porque não tive essa possibilidade, mas lembro-me de não estar à espera de espaços como aqueles neste país.
Quando olho para as imagens que nos chegam sinto raiva, porque os sírios foram envolvidos numa guerra bárbara, numa carnificina sem sentido e não sei se as pessoas que conheci estão vivas ou estão mortas. A Síria é um estado laico, com várias religiões, sejam cristãs ou muçulmanas, e percebeu-se bem isso. Acho que quando existir segurança e condições quero voltar, sobretudo para tentar ver se encontro alguém que conheci e para poder ajudar de alguma forma. A Síria vai demorar décadas a recompor-se. Espero, sobretudo, que sejam os sírios a decidir o seu destino, sem influência de forças estrangeiras.
Rui Almeida, antigo treinador da seleção olímpica de futebol síria, 54 anos:
Cheguei a Damasco em setembro de 2010, uns meses antes da guerra civil começar. Fiquei até março de 2012. Aquela cidade estava intacta quando cheguei e assim permaneceu enquanto lá estive. Damasco era uma cidade com ruas muito concorridas - o árabe é aquela pessoa que gosta muito de estar na rua e de conversar enquanto faz as compras diárias. É aquela pessoa que se junta com os amigos para fumar shisha (cachimbo de água) num mercado ou para andar de bicicleta. Eles andavam muito de bicicleta e de moto. No início estranhei que estivessem tantas pessoas na rua e tanto trânsito, mas depois habituei-me.
A vivência em Damasco era muito segura. A minha família visitou-me a primeira e única vez em dezembro de 2010 e, por diversas vezes, ficou sozinha e andou calmamente pela cidade. A minha filha, com sete anos na altura, andava na rua sem medo. De facto, era muito segura para os turistas. Até ao final do primeiro ano de contrato enquanto treinador da seleção olímpica da Síria, nada se passou em Damasco.
Uma das ruas de Damasco Foto Miguel Vieira
A partir de setembro de 2011 sentia-se um ambiente mais pesado e havia mais militares na cidade. As pessoas também estavam diferentes. No ano seguinte, começaram os cortes de energia. Não eram muito frequentes, mas começaram a existir. O ambiente tornou-se mais tenso. Eu gostava muito de ir aos souqs [bazares] e um dos primeiros sinais de que tudo iria mudar era o facto de já não se verem turistas nestes locais. A partir daqui, tornou-se muito mais difícil viajar porque havia locais que sabia que estavam a ser atacados.
Cristina Margato, jornalista, 47 anos
Passei duas semanas na Síria, em 2003. Percorri o país de norte a sul e, durante os 15 dias em que lá estive, passei por Alepo, no norte. Era um local muito bonito e o que mais me impressionou foi o souq de lá. Era impressionante: tinha muito brilho e estava cheio de quinquilharia e cores e sabores, e havia aquele cheiro das especiarias, tão comum nestes bazares, assim que entrávamos. Já estive em muitos souqs, mas o de Alepo era, de facto, estonteante, pela sua riqueza e antiguidade.
Lembro-me de visitar um castelo templário, o Krak des Chevaliers [a 65 quilómetros de Homs], que era único. Foi provavelmente o castelo mais bonito e imponente que já vi. Visto por fora era muito impressionante. Na altura em que o visitei ainda não tinha sido danificado, porque foi sobrevivendo a todos os conflitos e tinha uma arquitetura que diminuía o Homem, por ser tão grandiosa. Mas os bombardeamentos danificaram-no muito.
Algumas das ruínas em Palmira, antes de serem destruídas. Foto Miguel Vieira
Visitei também a cidade de Palmira e foi uma experiência mágica, por ser tão antiga - é de lá que vem a primeira escrita do mundo. Recordo-me bem de ver o pôr-do-sol no deserto através das ruínas. Foi o momento mais impressionante que tive lá. Agora não é possível ter a mesma experiência. Podíamos passear pelas ruínas e podíamos fazê-lo de camelo. Havia muito poucos turistas e isso ainda me deu uma visão mais bonita da cidade.
A poesia do Médio Oriente normalmente fala de lugares luxuriantes e de um passado muito interessante e, muitas vezes, quando chegamos a esses sítios, percebemos o quanto se perdeu. Na Síria, há uma imagem que não hei de esquecer: estava no centro do país e atravessei um campo de oliveiras; a paisagem era bucólica, porque a Síria ainda tinha jardins como os de que se fala na poesia. Agora já não deve ter isso. Custa-me muito.
Quando lá estive, sentia-se que a ditadura era férrea, que as pessoas estavam amordaçadas. Li sobre os presos políticos, sobre os que desapareceram. E uma das coisas em que pensava era: como é que as pessoas não se revoltavam? Mas quando o conflito começou, e com o desenvolvimento que teve, esta pergunta ganhou um novo sentido. Era uma ditadura horrível, mas o que tem vindo a acontecer não é menos horrível.