A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
Um amigo na Síria

Só vale a pena falarmos do calote polar se antes falarmos disto Foto epa
Na missa de domingo a ficha caiu com estrondo. O seu nome foi invocado e senti orgulho e vergonha em simultâneo. É que ele está há um ano na Síria a fazer voluntariado, mas eu não me lembrava dele há meses; senti orgulho por ter um amigo com esta coragem, senti vergonha por não ter invocado o seu nome nas minhas preces e conversas dos últimos meses. Aliás, todos os voluntários europeus que caminharam para a Síria, replicando na faixa do amor a migração que os combatentes europeus do ISIS fizeram na faixa do ódio, envergonham a Europa como um todo; uma Europa que perde mais tempo a falar do tempo, da natureza, do aquecimento global, de ursos, de cães e gatos do que a falar dos seres humanos que são gaseados há cinco ou seis anos à nossa porta. Como dizia ontem Ricardo Marques no Expresso Curto, “estranho mundo este em que um dia de chuva nos preocupa como se fosse uma guerra e uma guerra nos parece tão banal como um dia de chuva”.
Uma Europa que perde mais tempo a falar do tempo, da natureza, do aquecimento global, de ursos, de cães e gatos do que a falar dos seres humanos que são gaseados há cinco ou seis anos à nossa porta
Esta obsessão europeia com a natureza retira-nos espaço mental para nos preocuparmos com os restantes seres humanos. Nós, europeus, perdemos mais tempo a discutir animais, os domésticos e os selvagens, do que a discutir o que podemos fazer para ajudar seres humanos em sofrimento. É um dado objetivo. A Síria só aparece à superfície quando surgem imagens demasiado chocantes de crianças mortas. Foi assim Alan Kurdi (menino morto na praia). É assim com Ghouta. Mas estas imagens vão desaparecer, juntamente com a emoção volátil. Não vivemos tempos de posições morais, vivemos tempos de meras emoções. É a luxúria das emoções numa ventaria permanente. Na próxima semana, já ninguém se vai lembrar da Síria porque haverá outra comoção com gatinhos ou assim. Mas o meu amigo continuará lá.
Ainda há dias, Anthony Bourdain dizia qualquer coisa como isto: as redes sociais partilham com mais entusiasmo notícias sobre a morte de animais do que notícias sobre a morte e sofrimento de seres humanos. Dou dois exemplos portugueses. Onde está a indignação coletiva contra o crescente número de meninas que são submetidas à excisão genital feminina aqui na grande Lisboa? Não é em África, não é na Guiné, é aqui. E onde está a indignação ou debate sobre aquilo que Raquel Moleiro mostrou na reportagem “Escravos do Rio”, na revista do Expresso? Onde? Descobrimos que um exército de mil escravos apanha amêijoa debaixo dos nossos narizes ali mesmo na base da Ponte Vasco da Gama. Mas não se ouve um pio. Se estivesse cá em Portugal, era ali que o meu amigo estaria, enterrado no lodo lado a lado com os romenos e moldavos que são escravizados em Portugal no ano do senhor de 2018.