Opinião
Ricardo Costa
Quem não vai à guerra

No domingo há eleições em Itália, um país que nunca foi um grande exemplo eleitoral. Mas desta vez há ali muitas coisas para olhar: o encolher da esquerda, o quase regresso de Berlusconi, o incrível sucesso de um movimento antissistema criado por um cómico e a força de uma direita com tiques nacionalistas e claramente antimigração. Com alguma probabilidade, a única solução de não entregar a governação do país a um movimento como o 5 Estrelas passa por um governo que assimile parte do discurso xenófobo e posições radicais perante os refugiados, trazendo para o centro das instituições italianas ideias e conceitos mais próprios das franjas políticas.
O que se vai passar em Itália já aconteceu em parte da Holanda e na Áustria, teve forte expressão na segunda volta das eleições francesas e afetou seriamente as eleições alemãs ou austríacas. Na Polónia, na Hungria e alguns países de Leste faz abertamente parte do discurso governamental e continua a ganhar terreno nas democracias ocidentais com mais tradição.
Kadhafi não teve sorte, mas Assad soube aproveitar o facto de ser o último dos autoritários regimes árabes a ser afetado por uma primavera que acabou por ser, em quase todo o lado, um enorme falhanço
Itália é a vítima perfeita, com uma longa costa mediterrânea e os territórios mais a sul quase encostados ao norte de África. O regime de Roma foi talvez o primeiro a “sofrer” com o recuo e o cinismo das potências ocidentais nos conflitos do Norte de África e Médio Oriente. Depois dos desastres políticos e militares do Iraque e e do Afeganistão, a administração Obama recuou e começou a anunciar que não haveria mais botas no terreno. “No boots on the ground”. Uma frase feita, tão poderosa quanto perigosa e que custou muito caro a todos, primeiro na Líbia, depois na Síria.
Kadhafi não teve sorte, mas Assad soube aproveitar o facto de ser o último dos autoritários regimes árabes a ser afetado por uma primavera que acabou por ser, em quase todo o lado, um enorme falhanço. Kadhafi morreu graças a uma intervenção internacional aérea que impediu um massacre e permitiu outro, acabando com um regime autoritário para criar o caos e o vazio, que havia de transformar a costa da Líbia num passador das redes criminosas que traficam refugiados e migrantes para a Europa. Assad percebeu que, depois do desastre líbio, ninguém o ia atacar. Respondeu de forma brutal e sem freio, obrigando a deslocar metade da população síria e colocando a Europa perante a maior vaga de refugiados desde a II Guerra Mundial.
Bashar al-Assad é o primeiro líder a conseguir forjar o seu poder na sequência do recuo americano e da ausência europeia. Percebeu depressa que ninguém o incomodaria, violou declaradamente a linha vermelha de Obama
Sem a Líbia e sem a Síria boa parte da política europeia seria hoje muito diferente, o neofascismo italiano continuaria acantonado e o governo que sairá das eleições de domingo nunca teria um discurso marcadamente anti-imigração. Quem não vai à guerra, leva com os seus estilhaços e destroços. A Europa achou que conseguia resolver a crise de 2008 salvando os bancos e a crise das dívidas públicas apertando os Estados. Mas esqueceu por completo o que (não) fez em países geograficamente próximos, deixando-os cair no caos e na anarquia e, mais grave, expondo urbi et orbi a sua inutilidade militar e diplomática em conflitos complexos.
Bashar al-Assad é o primeiro líder a conseguir forjar o seu poder na sequência do recuo americano e da ausência europeia. Percebeu depressa que ninguém o incomodaria, violou declaradamente a linha vermelha de Obama, ao utilizar armas químicas, aproveitou a vontade russa de mostrar força na região e jogou até ao limite na fundamental relação de forças entre o Irão e a Arábia Saudita. No fundo, apostou em todas as contradições de uma região criada a regra e esquadro, onde ninguém é sensível a democracias, para ser brutal e implacável, ao ponto de a sua saída do poder já nem sequer ser discutida.
Os países e as regiões são, tal como as pessoas, vítimas das suas circunstâncias. Das circunstâncias que existem, das que criamos e das que deixamos que se instalem por inação. A longa guerra da Síria nasceu da Primavera Árabe, mas teve este curso porque ninguém o quis condicionar
A guerra da Síria está ainda longe de acabar e o país nunca mais será o mesmo, correndo sérios riscos de ser desenhado em função de credos ou povos. Mas Assad e a minoria alauita serão sempre vencedores do conflito. Mantiveram o poder de Damasco, permitiram um corredor xiita que liga o Irão ao Mediterrâneo e reforçaram os laços com a Rússia, uma velha aliada que tinha perdido quase todo o peso na região. Ao trazer a Rússia e o Irão para um tabuleiro onde os EUA e a Europa não quiseram meter um pé, mostrou perceber o que é a nova Pax Americana e o que são as velhas hesitações europeias.
Ganhou e até conseguiu ter contra a si a nemesis dos seus adversários europeus e americanos: o Estado Islâmico. Essa foi a outra lição para quem não vai à guerra. O terrorismo, agora, está entre nós como nunca esteve, criando medos e alimentando políticas tão perigosas quanto necessárias. Os países e as regiões são, tal como as pessoas, vítimas das suas circunstâncias. Das circunstâncias que existem, das que criamos e das que deixamos que se instalem por inação. A longa guerra da Síria nasceu da Primavera Árabe, mas teve este curso porque ninguém o quis condicionar. Agora, é aprender a viver com uma nova realidade política, que pode corroer boa parte das democracias ocidentais. Domingo à noite, é bem natural que esse discurso ganhe alguma força.