“É preciso que a opinião pública exija ações imediatas e específicas: temos que pressionar por um cessar-fogo imediato”

Foto Abdulmonam Eassa

Foto Abdulmonam Eassa

O Iraque e o Afeganistão foram como vacinas antiguerra injetadas na opinião pública ocidental em várias doses ao longo dos últimos 17 anos. Hoje ninguém quer sequer ouvir falar de intervenções militares e por isso não há pressão para que se passe da palavra à ação e se resolva a tragédia em Ghouta Oriental, a zona rebelde a menos de 15 quilómetros da capital da Síria. O Expresso falou com Bruno Cardoso Reis, professor e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL e do King’s College, de Londres, na área dos conflitos internacionais, que deixou um aviso: “Transição de regime não é sinónimo de transição democrática”

Texto Ana França

Há que aprender com o passado e evitar que a um regime autocrático outro semelhante lhe suceda e que guerrilhas terroristas usurpem os sonhos daqueles que legitimamente pediram mais abertura aos seus regimes. A solução? “Pressão direta sobre a Rússia para que seja imediatamente instaurado um cessar fogo e uma zona de exclusão aérea”. Por parte de quem? “De todos nós, junto dos nossos governos”, diz Bruno Cardoso Reis, professor e investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL e do King’s College de Londres na área dos conflitos internacionais.

Como é que chegamos a esse massacre?

É preciso entender a geografia. A guerra civil já se arrasta há sete anos e a oposição ao regime está concentrada nas zonas de fronteira ou a norte, ou a sul, ou a leste. A grande bolsa que ainda é significativa, tanto por ter uma extensão que ultrapassa os 100 quilómetros quadrados como por ainda ali habitarem mais de um milhão de pessoas, é de facto Ghouta Oriental. Ora esta zona está pertíssimo do centro do poder, a pouco mais de 10 quilómetros de Damasco, e isso faz com que esta seja a grande prioridade do regime. O governo está a querer consolidar uma faixa territorial contínua e Ghouta está no caminho. Embora haja uma enorme assimetria de meios, esta proximidade significa que Damasco está sujeita a ataques de morteiro, por exemplo. É um irritante muito grande para o regime.

Isto só vai ficar pior?

Pode acontecer que o impacto mediático das atrocidades se torne de tal forma preponderante que os Estados Unidos decidam intervir. De uma forma um pouco inesperada e como têm uma administração muito errática, isso pode acontecer. Em que moldes é que é mais difícil dizer. Podem pressionar mais a Rússia a implementar uma travagem ou forçar a evacuação dos civis mas o que é certo é que isso já foi tentado e a resolução não passou. A Rússia e o regime sírio estão a testar as águas, a ver até onde podem ir. Se não forem travados, eles vão destruir esta bolsa.

Mas esta escalada recente, desde novembro, que razões tem?

Estava toda a gente preocupada com o autodeclarado Estado Islâmico. Como isso, nessa área, está resolvido, agora é preciso voltar à reconquista do país. Nesse tempo o regime reorganizou-se, treinou mais homens, reabasteceu-se. O combate ao terrorismo, por causa das atrocidades do Estado Islâmico, tornou-se uma prioridade absoluta, a única real preocupação em termos de política externa que Trump demonstrou. Neste cenário o Presidente al-Assad acabou por ser tacitamente aceite como um mal menor. A derrota do ISIS teve este efeito perverso que foi o de reanimar todos os conflitos que tinham ficado de alguma forma postos de lado. Até a questão da Turquia, que está a combater os curdos em Afrin, voltou às guerras antigas.

Foto Amer Almohibany / AFP

Foto Amer Almohibany / AFP

Quais são, então, as soluções?

É muito difícil mobilizar meios significativos. Os discursos, os meios diplomáticos e as Resoluções são uma coisa, uma intervenção militar é muito difícil. Aquilo que é possível fazer-se, com uma grande mobilização da opinião pública, é pressionar os representantes dos vários países da ONU para que por sua vez pressionem a Rússia a abrir um corredor humanitário e a aprovar uma zona de exclusão aérea. É quase impossível saber, sem forças no terreno, o que se passa, saber quem está a lutar contra quem, quem diz a verdade e quem mente. Ora, não há apetite algum para se colocarem lá homens no terreno.

Ninguém quer guerras, e daí esse tal distanciamento da opinião pública no Ocidente em relação a estas questões. Mas não será também uma gigante manobra de desresponsabilização essa política aparentemente defensável da “não-ingerência”?

O ativismo virtual é um pouco o substituto de uma ação real. E também às vezes as pessoas aprendem ‘bem demais’ as lições do passado. O facto de ter havido erros no Iraque não quer dizer que se fossem repetir na Síria. A situação é completamente diferente e poderia justificar-se uma intervenção mais cuidada, mais calibrada mas passa-se do oito para o oitenta. Agora parecemos nem querer ouvir falar de qualquer tipo de intervenção, seja ela qual for. E os russos também têm sido hábeis na exploração destas incertezas. Têm tentado passar a mensagem de que é tudo muito complicado, há muitos obstáculos, não se sabe quem é quem e por isso é melhor ficarmos pelas discussões na ONU. O facto de, do lado da oposição, existirem tantos islâmicos radicais tão pouco recomendáveis, também desmotiva a intervenção porque não sabemos quem estaríamos a ajudar.

Mas não se pode pressionar a Rússia de nenhuma forma?

Eu acho que apesar de tudo havia espaço para mais pressão do lado do Ocidente, para um empenho mais forte que incluísse até a ameaça de consequências para a Rússia caso se continuem a recusar aprovar pelo menos um período prolongado de tréguas para permitir a saída de pessoas com a ajuda das organizações internacionais e com monitorização. Depois disso, seria preciso também a tal zona aérea interdita que evitasse a escalada permanente deste conflito com bombardeamentos consecutivos e um grande número de mortes civis.

Mapa que mostra as zonas de influência nas regiões mais afetadas pelo conflito

Mapa que mostra as zonas de influência nas regiões mais afetadas pelo conflito

Para exercer essa pressão, que ferramentas temos?

A opinião pública tem que exercer muito mais pressão. E tem que ser direta e não difusa. Ou seja, temos que pressionar os governos e a União Europeia para que este tipo de ações específicas e realistas sejam aprovadas. Direcionar o protesto em vez de nos contentarmos com estas manifestações genéricas e desagrado.

E como é que cada um de nós chega ao embaixador da Rússia ou à embaixadora norte-americana na ONU?

A pressão tem que começar em casa, sobre os governos de cada país da União Europeia. A esse nível depois já se conseguem fazer bastantes coisas.

Não há bons rapazes nesta Guerra. Como se posicionaria a Europa?

Exatamente. Há grupos responsáveis por abusos dos Direitos Humanos dos dois lados portanto é realmente muito difícil. Temos que ter algum cuidado com esta ideia de ativamente promover mudanças de regime muito violentas porque de facto é verdade que os regimes anteriores podem não ser muito recomendáveis mas em comparação com o inferno em que se transformou a Síria…

E que papel para Portugal?

É sobretudo diplomático mas existe, seja a nível das Nações Unidas seja ao nível da União Europeia. Por si só não tem peso suficiente para mediação ou facilitação. Estamos a falar de grandes potências pouco suscetíveis a pressões externas, mesmo por parte de Estados mais poderosos. A mobilização da opinião pública pode ser o nosso forte, porque quando mais países pressionem a União Europeia para assumir uma posição mais intransigente, melhor.

Mas as pessoas têm direito às suas reivindicações.

Sim. Nós não controlamos isso, se as pessoas se revoltam e por que é que se revoltam. Houve aqui um excesso de ambição no início por parte do Ocidente por exemplo exigindo que al-Assad se fosse embora como pré-condição. Isso bloqueou algum do progresso que poderia ter sido feito numa altura em que o regime estava mais fragilizado. Houve um esforço ativo para armar a oposição no qual o Ocidente participou desde muito cedo. Lições aprendidas para a frente, na Síria isso já vem tarde.

Agora é apenas aliviar o sofrimento?

Sim, na Síria agora o nosso esforço tem que ser no sentido da urgente ajuda humanitária.

Qual é realmente o objetivo da Rússia na Síria?

Um interesse cada vez mais claro e se voltar a afirmar como potência. O Médio Oriente é uma zona ideal para fazer isso. Os Estados Unidos estão em retirada não só porque sofreram uma série de derrotas mas também devido à política de Donald Trump em olhar para dentro do seu país primeiro. Depois há um vácuo de poder numa série de Estados e a Rússia tem interesse em mostrar que é fiável. Um fornecedor de armas fiável por exemplo. É aquela abordagem do “we deliever”, ou seja, ‘em nós podem confiar porque vetamos as medidas nas Nações Unidas, não fazemos bluff’. A Rússia quer demonstrar poder e capacidade de estragar, perturbar, anular a política ocidental.

Isso não lhes prejudica a imagem?

Sim, o jogo é arriscado. Alimentar uma guerra civil como esta dá hipótese a que mais grupos jiadistas e terroristas, muitos deles com voluntários da Chechénia e de outras zonas do Cáucaso continuem a conseguir subsistir. E há um impacto potencialmente negativo em termos de imagem entre os árabes sunitas, a maioria da população síria e o núcleo duro da revolta contra o al-Assad. A aposta de Putin é na ligação com os regimes que apreciem a força e que as pessoas nesses países saibam que ele não falha.

Foto Joseph Eid And / AFP

Foto Joseph Eid And / AFP

Mas quem se mete com sunitas mete-se por exemplo com a Arábia Saudita, que não é um inimigo que ninguém queira ter.

Os regimes sunitas, mesmo quando criticam a Rússia, no fundo respeitam esta ideia do poder, da força. A Rússia é vista como um aliado mais seguro de regimes autoritários do que os países ocidentais. Mas a população vê a Rússia com muito maus olhos, do Egito à Turquia o que não impede a Turquia de estar a aproximar-se da Rússia. É como se dissessem ‘nós com o Ocidente não podemos sempre contar, eles chateiam-nos com a questão dos Direitos Humanos ou têm políticas muito oscilantes por isso vamos tentar a Rússia’.

O Reino Unido disse recentemente que se ficasse provado que houve mais um ataque químico em Ghouta Oriental estaria preparado para intervir. Isto pode levar a que um dos maiores membros da NATO se envolva em confrontos com a Rússia?

O risco desse tipo de ataques é que não será assim tão indireto. Há um risco de haver um choque com a aviação russa ou com tropas russas que estejam no terreno. Já morreram mercenários, é mais indireto mas poderiam ter sido tropas russas. A não ser que fosse um esforço muito prolongado e muito bem direcionado também não é evidente que isso trouxesse algum alívio à população. Os meios aéreos são bons para atacar um determinado adversário mas para defender uma população civil não. Os ataques aéreos iam matar civis na mesma. O Reino Unido pode estar a usar isto como ameaça, para mostrar que estamos a falar a sério, estamos disponíveis porque os britânicos são muito contra a guerra, depois do Iraque é muito difícil.

Os Estados Unidos não podem depor também al-Assad, sem pedir licença a ninguém como já fizeram com outros homens fortes?

Eu acho que isso neste momento é impossível por causa das lições do Iraque. Representaria uma mudança radical de política que eu não vejo no horizonte. Seria um investimento monetário enorme e humano também com milhares de homens no terreno. E aqui há o risco adicional que não existia nem no Iraque nem no Afeganistão que é a presença dos russos. O que é que aconteceria quando as tropas russas se encontrassem com as norte-americanas? Também lá está o Irão. Haveria um enorme potencial de escalada da guerra por todo o Médio Oriente e fora, na forma de ataques terroristas.

Vamos chegar a ver Bashar al-Assad julgado em Haia?

É claro que existiram crimes de guerra dos dois lados mas para isso era preciso que o regime caísse, e isso não é um cenário realista.