
“Se ela chegar tarde, espera por ela. Se ela chegar cedo, espera por ela”
Um grupo de amigos reunidos num abrigo à volta de uma árvore de Natal com luzinhas feitas à mão e a piscar ligadas a um gerador, um casal que só teve tempo para se abraçar e proteger-se antes de a bomba cair e outro casal que teve tempo para mais, para fugir eventualmente, mas para onde? Ficaram, também se abraçaram, mas isso acabaria por não ser suficiente. Dima Nachawi ilustrou quatro histórias de amor de pessoas de Ghouta Oriental e uma de Alepo, ambas cidades sírias mutiladas por uma guerra selvagem. Dima e outra ativista síria contaram-nos o que sabiam sobre cada uma destas histórias e nós tentamos descobrir o resto
Texto Helena Bento Ilustrações Dima Nachawi Títulos das ilustrações Dima Nachawi
Dima Nachawi já tinha ficado afetada quando teve de ilustrar a história do homem que perdera a mulher num ataque aéreo em Ghouta Oriental, mas ficou ainda mais quando soube que não poderia fazer aquilo que decidira fazer assim que terminara a ilustração - entregar-lhe em mãos o desenho. Os bombardeamentos, que se foram tornando cada vez mais intensos, impediram-na de o fazer. “Ele estava muito feliz por eu o ter desenhado abraçado à mulher. Não consegui entregar-lhe o desenho, tal como gostaria, mas espero que ele esteja bem e que um dia eu possa dar-lhe pessoalmente a ilustração.”
A ilustração referida é a quinta e última que irá ver neste texto - e que faz a capa da edição deste Expresso Diário - e são todas da autoria de Dima Nachawi, artista síria nascida em Damasco. Ao Expresso, a artista, que vive atualmente em Londres, explica que teve acesso à história das pessoas aqui ilustradas a partir de textos e gravações que lhe chegaram através da equipa do site “Ghouta.com” (https://ghouta.com/), exclusivamente dedicado à situação que se vive no enclave nos subúrbios de Damasco e para o qual contribuem pessoas que vivem em Ghouta Oriental e outras que tiveram de abandonar entretanto a região cercada.
Ilustrar estas histórias, histórias de amor e de perda e muitas delas de pessoas que continuam a viver cercadas e em condições desumanas, foi para Dima Nachawi uma “grande responsabilidade”. Sentiu-se responsável “por mostrar ao mundo quem são realmente estas pessoas” e essa responsabilidade trouxe atrelada uma série de sentimentos aparentemente contraditórios: “Sentia-me preocupada, sentia-me entusiasmada e feliz e ao mesmo tempo triste e deprimida”. Para a artista síria, o mais importante é que consigamos ver estas pessoas, as aqui ilustradas e todas as outras - são mais de 350 mil as que vivem ainda em Ghouta Oriental - para lá do pó e dos fios de sangue que lhes cobrem o rosto e das pernas que fraquejam quando veem os seus filhos, mulheres, maridos ou pais morrerem. “Apesar do cerco, estas pessoas continuam com vontade de amar. E acho que aquilo por que estão a passar, todas aquelas experiências, aproxima-as e fortalece o amor que sentem umas pelas outras.”
“Amor é desafiar a dois a distância, o cerco e o medo”
Todas as noites, A., 31 anos, e M., 34 anos, sentavam-se à frente do computador, ela em Ghouta Oriental, enclave nos subúrbios de Damasco, e ele em Idlib, a cerca de 300 quilómetros de distância, e conversavam durante horas e horas no Whatsapp, partilhando os seus poemas e canções preferidos enquanto bebiam café em pequenos goles. De todos os poemas que trocaram, há um que A. não esquece e que foi escrito por um poeta palestiniano chamado Mahmoud Darwish, falecido em 2008. Dois dos versos dizem assim: “Se ela chegar tarde, espera por ela / Se ela chegar cedo, espera por ela”. Naquela altura, ele rezava pela segurança dela e ela rezava pelo segurança dele e é isso que continuam a fazer. A. continua em Ghouta Oriental e M. em Idlib, província no noroeste do país e um dos últimos bastiões rebeldes onde decorre já uma ofensiva do regime sírio. Não sabem quando é que vão estar juntos.
“Amor é contrabandear alegria para dar àqueles que amas”
Era o primeiro Natal dela em Ghouta Oriental e os amigos decidiram aparecer de surpresa no abrigo onde ela, o marido e o filho se encontravam. Trouxeram uma árvore decorada com luzes feitas à mão e ligadas a um gerador, comprada a um dos muitos comerciantes e rebeldes que faziam entrar comida e medicamentos na região cercada através de túneis que foram, entretanto, abatidos pelas forças do regime. Além da árvore de Natal, trouxeram alguns doces, poucos, comprados também no mercado negro.
O casal haveria de deixar Ghouta pouco tempo depois disso. Mudou-se para Gaziantep, destino de muitos outros sírios fugidos à guerra, no sudeste da Turquia. A situação na região cercada tornara-se insuportável. “Não podia ver o meu filho sofrer e passar por dificuldades. Não havia fraldas, por exemplo, e nós usávamos sacos de plástico. Um dia cheguei a casa e vi que ele estava a sangrar porque fez alergia aos sacos. Não podia continuar ali”, contava recentemente ao Expresso o marido, Mohamad Katoub, médico da Sociedade Médica Sírio-Americana (SAMS, na sigla inglesa), organização não-governamental sediada em Washington D.C..
“Amor é fazer tudo para proteger aqueles que se ama”
Quando ele ouviu o som agudo do míssil a cair a pique, debruçou-se de imediato sobre a mulher grávida para a proteger das paredes e dos vidros quebrados. Enquanto as equipas de emergência tentavam resgatá-lo, repetiu várias vezes o nome da mulher - Waad - e insistiu para que a salvassem. Foram ambos transportados para o hospital com ferimentos. A filha do casal haveria de nascer meses depois, a 30 de dezembro de 2015. À noite, quando chegava a hora da história para adormecer, contavam-lhe como tinha sobrevivido a um bombardeamento antes de nascer.
Isto aconteceu em Alepo e não em Ghouta Oriental, mas decidimos incluir aqui esta ilustração porque além de Dima Nachawi, a artista, o ter feito, também a zona leste de Alepo esteve cercada pelas forças do regime sírio e seus aliados até 2016.“Sei bem aquilo por que a população de Ghouta Oriental está a passar. Também vivi numa região cercada, com ataques diários sobre casas, hospitais, ruas. Tudo se transformou num alvo, especialmente nos últimos dias do cerco. Muitos dos nossos amigos morreram e também nós estivemos perto de morrer muitas vezes”, recorda ao Expresso Waad Alkateab, a mulher que vemos na ilustração.
A jornalista viveu em Alepo durante cinco anos. Frequentava uma das universidades da cidade quando a revolução contra o regime sírio começou. Depois disso, começou a passar grande parte do seu tempo no hospital de campanha onde o marido, Hamza al-Khatib, trabalhava. “Ele passava o tempo todo lá.” Alguns dos vídeos que foram divulgados nas redes sociais durante os meses de cerco a Alepo, gravados em urgências improvisadas e em alas e salas de cirurgia, foram filmados por ela. Waad Alkateab vive agora em Gaziantep, na Turquia. “Ainda tenho o barulho dos ataques e das bombas na minha cabeça. Quando estava em Alepo, tinha a sensação de que a minha filha sabia o que estava a acontecer e por isso costumava pôr música a tocar para evitar que ela ouvisse o barulho das bombas.”
“Amor é encontrar soluções criativas para os pequenos problemas de quem amas”
R. adorava sentar-se à secretária, à frente do computador, ou de telemóvel na mão e escolher as melhores plantas para travar os zombies ou ajudar os pequenos smurfs a colher flores, pedras e outro material útil à construção de uma vila segura, mas nem sempre o conseguia fazer. O cerco dificultava o acesso à eletricidade e a bateria do telemóvel, ligado a um gerador, nem sempre carregava. Para ajudá-la, N. subia ao telhado da casa onde o casal vivia e ali ficava durante horas, muitas vezes à chuva, munido de um aparelho especial que criara para captar o sinal de Internet.
R. e N. já não vivem em Ghouta Oriental. R. foi a primeira a abandonar a região, há cerca de um ano. N. juntou-se-lhe pouco tempo depois: “Eu passava todo o meu tempo em casa quando estávamos em Ghouta, mas depois ela foi-se embora e eu fiquei sem ter onde ficar. Acabei por me ir embora também”, diz N. ao Expresso. R. e N. casaram-se em 2015 e trabalham os dois em organizações sobre as quais nada querem revelar (sabemos apenas que, no caso de R., se trata de uma organização feminista), do mesmo modo que preferem não dizer onde vivem neste momento. R. já não joga Smurfs nem Plants vs Zombies. “O Facebook fechou as aplicações.”
“Amar é abraçar o teu parceiro até ao último suspiro”
Era final de tarde e O. tinha chegado a casa há pouco tempo vindo do trabalho. Sentou-se a conversar com D., sua mulher, como sempre fazia, mas a conversa foi interrompida pelo barulho de um avião ao longe. D. ficou muito nervosa e O. não entendeu porquê - não era a primeira vez que ouviam o barulho de aviões e D. normalmente até se mostrava invulgarmente corajosa, saindo para a varanda para gravar o som dos ataques aéreos e ter assim uma prova caso fosse necessário. O. perguntou-lhe o que se passava, mas a mulher limitou-se a puxá-lo para o quarto, numa zona mais recôndita da casa. À medida que o avião se ia aproximando, abraçaram-se. Minutos depois, ouviram uma explosão e o quarto encheu-se de uma ampla luz vermelha. O. viu sangue escorrer-lhe pelo pescoço e percebeu que tinha sido atingido. Saiu para pedir ajuda aos vizinhos e quando voltou percebeu que D. também estava ferida. Chamou pelo seu nome mas não teve resposta de volta. O casal foi transportado para o hospital em ambulâncias diferentes. O. não teve notícias da mulher durante alguns dias, até se dirigir a Douma, também em Damasco, onde lhe disseram que estaria D. Foi ali que soube que a mulher tinha morrido.
Não sabemos quando é que isto aconteceu, do mesmo modo que não conheceríamos a maioria dos detalhes desta história não fosse um texto escrito pelo próprio O. e partilhado no site da ONG síria “Women Now for Development”. Sabemos, sim, que O. continua a viver em Ghouta Oriental, onde trabalha como engenheiro.
Nota final: Das pessoas cujas histórias aparecem nestas ilustrações, apenas Mohamed Katoub e Waad Alkateab quiseram identificar-se. As restantes pediram-nos para manter o anonimato e nós respeitámos, usando iniciais escolhidos aleatoriamente para identificá-las. Foram mantidos os títulos das ilustrações conforme aparecem no site “Ghouta.com”, onde foram originalmente publicadas. Um especial agradecimento à artista síria Dima Nachawi (https://www.facebook.com/Dima4480/) por ter autorizado a publicação destas ilustrações e a Marcelle Shehwaro, ativista síria e membro do site “Ghouta.com”, por nos ter ajudado a chegar a algumas destas pessoas e partilhado tudo o que sabia sobre aquelas com quem não conseguimos falar.