Antes pelo contrário
Daniel Oliveira
Na minha Síria não há ruínas

Podia fazer aqui uma análise fria e distanciada sobre a importância estratégica da Síria e como ela é tão relevante para o conflito israelo-árabe; para a relação de dependência umbilical entre o Líbano e o seu vizinho; para a situação sempre instável no Iraque; para os interesses do Irão na região tendo em conta a minoria alauita (que se considera xiitas) que governa o Damasco; para a questão curda, que afeta turcos, sírios, iraquianos e iranianos; para os interesses russos, turcos, iranianos, israelitas, sauditas e ocidentais na região... tudo isto ajuda a explicar o quebra-cabeças em que esta guerra se transformou para a qual ninguém tem uma saída.
Podia discorrer sobre a Primavera Árabe, a esperança que provocou e o caos em que degenerou, para cinicamente concluir que todos os ditadores devem cair mas nem sempre é tempo para caírem. E que é especialmente perigoso quando caem e não há ninguém para os substituir.
Poderia recordar, pela enésima vez, o efeito desestabilizador que a invasão do Iraque teve e como a tese do “dominó”, que levaria à democratização por mimetismo de toda a região, se revelou, como teria de se revelar para quem alguma vez tenha saído do seu gabinete ou redação, pueril. O dominó que caiu foi o do caos e da guerra.
Ou podia falar do preço que se paga por as antigas potências coloniais terem entregue o poder a minorias religiosas – os alauitas na Síria, os sunitas no Iraque, os cristãos no Líbano – na esperança de ter elites fracas e desligadas do povo e por isso dependentes do exterior. E como isso acabou sempre por determinar um poder de Estado baseado na opressão e minorias privilegiadas que se sabiam em perigo de vida no momento em que a situação mudasse. Dispostas a tudo para não deixar que ela mude.
Ou este texto podia servir para recordar que imperialismo é imperialismo e que quem apoia o russo para criticar outro apenas escolhe um outro lado da pilhagem e do crime.
Prefiro deixar aqui as memórias de um tempo de paz. De uma viagem que não foi de trabalho e onde descobri um dos mais belos países do mundo, que guardarei para sempre, intocado, na minha memória
Mas esta guerra é demasiado longa. Já dissemos tudo, já nos cansámos de o dizer e até já esquecemos que o tínhamos dito. Prefiro, por isso, deixar aqui as memórias de um tempo de paz. De uma viagem que não foi de trabalho e onde descobri um dos mais belos países do mundo, que guardarei para sempre, intocado, na minha memória. Este é o meu tributo a um dos países mais extraordinários que conheci.
Estava longe de ser a minha primeira viagem a um país árabe e não seria seguramente a última. Mas nem o Iémen, exótico e encravado no passado, o Cairo, verdadeira metrópole árabe, ou mesmo Gaza, claustrofóbica e revoltante, me marcariam tanto como aquele mês de julho de 2006, na Síria. O facto de ter chegado no início da guerra israelo-libanesa, a sentir o cheiro da história ali mesmo ao lado, que desaguava em magotes de refugiados que enchiam os hotéis de Damasco, ajudou a que aqueles dias me acompanhassem até hoje. A paixão foi de tal forma forte que não desisto de um dia cumprir a promessa de lá voltar. O que aqui deixo é adaptação das notas diárias que então escrevi e as fotos (minhas e da pessoa que então me acompanhou) são o que resta para não me esquecer o que já foi um país.
Damasco
Depois de chegar a Damasco e tentar atravessar uma rua aprendi o significado exato da palavra “caos”. Os sinais de trânsito eram, na melhor das hipóteses, uma sugestão e as multas uma lotaria sem lógica aparente. Nunca vi uma ditadura onde a autoridade fosse de tal forma desrespeitada. Os peões passavam quando desse e sempre depois de uma estridente buzinadela de quem não lhe compreendia tamanha desfaçatez. Ao fim de uns dias habituei-me. Ao fim dos dias habituamo-nos a tudo. Tirando a estrada, os árabes têm sempre tempo. Tempo para fumar narguilé e beber chá. Muito tempo para conversar. A cultura árabe é a cultura da palavra. Das conversas intermináveis, das frases poéticas e das discussões inflamadas. Tempo para a família, que os acompanha sempre em grandes manadas em restaurantes, cafés e viagens. E tempo para receber. Perguntar. Contar histórias.
E o tempo, onde se gastava melhor, era mesmo no souq. Sobretudo no enorme souq de Damasco. A sua rua principal era coberta. A cobertura, que não sei se ainda existe, estava cheia de buracos feitos pelos franceses a tiro nos anos 20. A ideia não era decorar o espaço, mas o efeito era magnífico. Parecia que estávamos debaixo de um céu estrelado. A confusão era absoluta. Milhares de pessoas compravam e vendiam fruta, especiarias, carne, roupa. Lingerie, tecidos, brinquedos, utensílios de cozinha… As lojas eram ultraespecializadas mas não havia nada que não se encontrasse.
Foram os árabes que inventaram os centros comerciais. Ali está o berço de muito do que consideramos hoje a nossa civilização. A civilização do comércio. E, no entanto, não foi ali que o capitalismo floresceu. Porque a acumulação não se fez, distribui-se pela família alargada, numa segurança social caseira, disse-me um amigo árabe e a tese faz sentido. Eram necessários muitos dias para conhecer o souq de Damasco. Os cantos, as galerias, os pátios. Os cheiros misturavam-se intensos e o barulho era infernal. Mais de 40 graus e eu por duas vezes fui salvo pela simpatia árabe com um chá ou uma maravilhosa limonada gelada.
Ao contrário de outros países árabes que visitei, a Síria era marcada pela variedade. Religiosa e cultural. Vantagens de uma ditadura laica. E isso via-se na rua. Havia as mulheres absolutamente tapadas. Para quem esteve no Iémen, como eu, nem se dava por elas. Mas quem tinha estado na Síria dois, três ou quatro anos antes, dizia que eram cada vez mais. E aumentavam ao longo dos dias pela chegada de mais xiitas vindas do Líbano em guerra. O mais habitual era o uso do hijab, grande parte das vezes com roupa ocidental. Mas as mais ricas, as mais cosmopolitas e as muitas cristãs que vivem em Damasco e Alepo usavam roupas ocidentais, tão ousadas como as de qualquer europeia. Arranjavam-se de forma mais espampanante do que por cá, mas não tão escandalosas como mais tarde vi em Beirute. A recusa da indumentária conservadora era mesmo uma forma de distinção social, como se podia ver nas revistas de cor de rosa locais.
Quando saíam à noite, as mulheres da alta sociedade só o faziam de carro para não se exporem aos olhares sempre indiscretos dos árabes. E mesmo o tipo de imigração que naquele altura fazia crescer a população do país, recordando que os movimentos humanos resultam de camadas de tragédias, não alterou este estilo de vida. Sobretudo iraquianos (cerca de um milhão de refugiados), palestinianos (quase meio milhão) e libaneses (perto dos 200 mil). Eram os três povos com maior tradição laica da região. Tal como vira no Iémen, o que a roupa escondia não pode o homem contar. Lingerie escandalosa, no ocidente apenas disponível em sex-shops, estava à venda em cada canto do souq.
Cheguei à Síria dois dias depois da guerra no vizinho Líbano começar. Aqui e ali apareciam umas bandeiras amarelas do Hezbollah (grupo nacionalista e xiita libanês) e imagens do seu líder, Hassan Nasrallah. As bandeiras começarem a ser espontaneamente vendidas no souq e nas lojas e, em poucos dias, Damasco e Alepo estavam repletas. Parecia Lisboa durante o Euro 2004. Todo o tipo de gente, de todas as classes sociais. Dos mais cosmopolitas aos mais religiosos. Dos mais velhos aos mais novos. Ter a bandeira amarela, símbolo da resistência aos israelitas, era um orgulho que se exibia para a fotografia.
Este é o drama do mundo árabe: ter de escolher entre líderes corruptos que alimentam elites incompetentes e as suas famílias e a pureza do fanatismo religioso
Há uma ligação próxima entre a Síria e o Líbano. Política, militar e geográfica, obviamente. Podia haver neste apoio popular ao Hezbollah um lado de vingança do orgulho ferido. Mas era sobretudo a satisfação de ver quem havia, entre os regimes fracos, corruptos e ditatoriais árabes, quem resistisse.
Este é o drama do mundo árabe: ter de escolher entre líderes corruptos que alimentam elites incompetentes e as suas famílias e a pureza do fanatismo religioso. Mas o apoio ao Hezbollah estava longe de ser, para muita gente, um apoio com motivações religiosas. E a febre das bandeiras amarelas acabou por ser aproveitada pelo regime, que, nos últimos dias em que estive na Síria, mandou pôr outdoors com a cara de Nasrallah. Um apoio pouco sincero mas que tentava cavalgar a emoção popular.
A Síria era (não sei se se pode dizer o que é exatamente agora) uma república monárquica. Ao pai, Hafez al-Assad, sucedeu o filho, Bashar al-Assad. Os dois tinham o carisma de anémonas. Mas, mesmo assim, não hesitavam em levar o culto da personalidade até ao enjoo. As fotografias de pai e filho eram omnipresentes. Todos os cafés, lojas, restaurantes e bares, quisessem ou não quisessem, eram obrigados a ostentar os retratos dos dois senhores. Nas fotos de propaganda do regime ao pai e ao filho juntava-se o Espírito Santo.
O filho predileto de Hafez, Basil al-Assad, era o candidato ao trono, mas morreu prematuramente num acidente de aviação. Ficou o filho Bashar, o mais ocidentalizado, que chegou a dar sinais de abertura nunca concretizados e, como sabemos, definitivamente esquecidos. Basil aparecia em centenas de imagens como herói, montado em cavalos. Ao que parece tinha praticado hipismo e conseguido um segundo prémio para a Síria. Sendo da dinastia Assad, isso chegava para ser um novo Saladino. As imagens estilizadas do defunto estavam estampadas nos carros.
Sendo das ditaduras mais brutais no Médio Oriente (e a competição era renhida), calhou à Síria ter estado do lado de lá do muro – ou seja, do lado dos derrotados. Mas falar de socialismo ali seria no mínimo exagerado. A intervenção do Estado na economia era maior do que nos países vizinhos. A repressão política também. A religiosa, pelo contrário, era mais baixa. Trata-se de uma ditadura laica que, da mesma forma que prendia e matava os opositores políticos, mantinha controlados os movimentos de qualquer tipo de fundamentalismo religioso que nunca quereriam nada com a dinastia Assad.
A ligação ao Irão era tática, não religiosa, já que a esmagadora maioria da população é sunita. O discurso panárabe era a base ideológica da ditadura. Todos os árabes tinham, supostamente, os mesmos direitos que os sírios quando ali residam. O país era pobre e o governo, para além de repressivo, era visivelmente incompetente. Foram as notas políticas que tirei de um país que não visitei em trabalho. Desconhecia por isso a dimensão do que aí vinha. Mas não estranhei quando veio.
Palmira
Os sírios chamam-lhe Tadmor, mas o mundo conhece-a por Palmira. É uma das mais imponentes ruínas do Mundo (as únicas da Síria que conheci) e vasculhando notícias nunca chego a perceber bem a dimensão dos estragos que a guerra lhe provocou. Há séculos que este era um local obrigatório para as caravanas de comércio. Foi chamada Palmira por causa das palmeiras no meio de um deserto agreste. Habitada muito antes dos romanos fazerem dela uma das mais importantes cidades do oriente. Em 129, o Imperador Adriano declarou Palmira Cidade Livre e permitiu-lhe cobrar os seus próprios impostos. Os seus cidadãos tinham direitos iguais aos de qualquer romano.
Depois de derrotar as tropas romanas, de conquistar a Síria, a Palestina e parte do Egito, no século III, a ambiciosa Zenóbia autoproclamou-se rainha do reino de Palmira. Dizia-se descendente de Cleópatra e conta quem a viu que não lhe ficava atrás em beleza e astúcia. Em 274 o imperador Aureliano capturou a senhora e expôs a sua presa nas ruas de Roma. Foi o declínio de Palmira, que se manteve, ainda assim, como entreposto comercial.
Até ao princípio do século passado o povo beduíno de Palmira vivia dentro das muralhas, de onde foi expulso pelos franceses. Desde então, os seus tesouros eram uma das maiores atrações turísticas da Síria. Palmira é (era?) de perder a respiração. Um lugar onde tencionava voltar com alguém que percebesse realmente de História. Mas era um teste à paciência de qualquer turista. O massacre era absoluto. Para levar o turista de táxi por dez metros, arranjar um hotel mesmo que já estejamos noutro, vender tâmaras e falsas antiguidades, jantar e almoçar, mostrar o pôr-do-sol na fortaleza ou as magníficas torres tumulares. A tudo se ia dizendo sempre que não. Ou devia dizer-se. Infelizmente, uma das vezes esqueci-me de o fazer…
Ao fim da tarde ia-se ver o pôr-do-sol na fortaleza. Tive azar e o Sol não se pôs como devia. Perdi o que todos diziam ser um espetáculo deslumbrante. Mas vi, lá em baixo, as ruínas de Palmira. E isso bastou-me. Conheci um casal de um palestiniano e uma inglesa. Jantei, eu e a minha companhia, com eles. Ela calada e ele falador. Ele vestia roupa mais árabe do que qualquer árabe apesar de ter nascido em Londres. Muito viajado. Tentámos falar da situação no Líbano e ele começou a explicar porque é que o 11 de Setembro era obra da CIA. Mudámos de assunto.
No dia seguinte fraquejei. Passeava pelas ruínas, numa tarde estupidamente quente – seguramente acima dos 45 graus – e uma sombra e um homem com um chá foram demasiado tentadores. Dono dos seus camelos, propôs um passeio nos ditos, na manhã seguinte. Manhã, por aquelas bandas, é lá para as cinco. Que não, que preferia ir a pé. Que talvez, logo se via. Que estava bem, iria. Até amanhã então. Nunca mais pensei no assunto. Mas a autonomia de um turista em Palmira era coisa desconhecida.
Cinco da manhã, lá estava um empresário beduíno e os seus dois camelos à porta do hotel. Tinha de descer. De jejum e a dormir montei um camelo sem qualquer vontade. Mas o espetáculo da luz amarela nas pedras, mas os magníficos túmulos, mas o filho do beduíno que trepava as colunas e saltava entre ruínas, mas aquele espetáculo que nos deixa sem fala, fizeram esquecer a contrariedade.
Às nove, depois de um longo passeio, estava a tomar pequeno-almoço na “farm” do homem. A tentar esquecer que aquilo era tudo o que não queria na Síria (para isso tinha Marrocos, Egito ou Tunísia) e tudo o que, melhor ou pior, tinha conseguido evitar. Mas que se dane, um dia não são dias…
De Deir Zor a Raqqa, seguindo pelo Eufrates
Tive apenas um dia em Palmira. Fugi o mais depressa que pude do enxame de caça-turistas. Ao que parece, as coisas em Palmira estavam mais insuportáveis do que o costume. A guerra no Líbano fizera os visitantes fugir e os que lá foram pagaram pela escassez. Procurei o ambiente oposto e encontrei. A ideia era subir do deserto para o Eufrates e fazer o caminho junto ao rio, virando depois para ocidente até Alepo, já mais próximo da costa.
Cheguei de manhã à maior cidade do oriente da Síria, Deir Zor. Como quase sempre, tentaram-me enganar no preço do táxi da estação de autocarros para o centro. Quer dizer: quiseram enganar-me mais do que o costume. Fui salvo pelo dono de um hotel sem elevador. Salvou-me do roubo, mas não me salvou do quarto andar e do ar condicionado que se avariou no princípio da noite.
Almocei num restaurante que devia ser frequentado apenas por árabes. Conheci um sírio que trabalhava para a ONU para encontrar apoio à criação de pequenas empresas. Como a esmagadora maioria dos árabes que não são taxistas e não vivem em Palmira, a sua simpatia fez-me sentir em casa.
Ao fim da tarde, um passeio pela zona de lazer. Na ponte que passa sobre o Eufrates e nos leva às piscinas públicas e a uns agradáveis restaurantes, os locais faziam as suas caminhadas de fim de tarde, como em qualquer pequena cidade. Os turistas não abundavam por ali e fomos sendo observados. Acabei a jantar num restaurante à beira rio, “com álcool”, o que era sempre uma sensação.
No dia seguinte, contratei um taxista que nos levasse pelo rio Eufrates até Raqqa, onde apanharíamos o autocarro para Alepo, com paragens nas ruínas Halabiyya e Zalabiyya, que defendiam a passagem pelo Eufrates de leste para este. As ruas estavam desertas e o souq local encerrado. Em alguns cafés as pessoas comiam e jogavam. Passava pouco do meio-dia de sexta-feira, momento da principal de todas as orações da semana. A maioria estava nas mesquitas. Consegui, ainda assim e sem dificuldade, um motorista disposto a levar-nos imediatamente pela estrada que se desenha na divisão exata entre o verde cultivado das margens do Eufrates e o amarelo poeirento do deserto. Os camponeses que aos dias de semana enchiam as ruas de Deir Zor viviam neste caminho. Vi Halabiyya e fiquei impressionado. Para chegar Zalabiyya tivemos de passar por uma ponte militar improvisada e dar explicações aos guardas que quando estão mais à vontade nem farda usam. De lá de cima vi o Eufrates em toda a sua imponência. Acabei por tomar banho nele na companhia de mosquitos que me deixaram marcas para o resto da viagem.
Raqqa, onde chegámos a meio da tarde, já foi uma cidade importante e casa de verão do Califa al-Rashid. Para mim, era apenas ponto de passagem e, até ver este nome nos jornais, anos mais tarde, um lugar de que guardava poucas memórias. Dormi num hotel que há muito não via turistas e acabei num restaurante com um simpático jardim mas que estava fechado. O que não foi – nunca é – um problema. Um comerciante sírio nunca diz que não é possível. O dono, que preparava a noite do que parecia ser o mais concorrido lugar do burgo, não nos deixou desistir do almoço tardio. Meia hora depois, ali estavam todos os nossos desejos: saladas maravilhosas, kebab acabado de fazer, sumos frescos de manga. No dia seguinte, parti cedo para Alepo, sem saber que abandonava aquela que viria um dia a ser a capital do autodenominado Estado Islâmico. Tudo isso ainda estava muito distante.
Alepo
Em Alepo, onde cheguei de autocarro, a reconstrução da cidade velha estava a ser feita por alemães. Os hotéis e os restaurantes de charme, com pátios magníficos, eram ao pontapé. Alepo era mais rica do que Damasco, menos populosa (ainda assim eram mais de 4 milhões de pessoas) e mais organizada. Nesta viagem, fui alternando entre hotéis baratos para estudantes e hotéis mais caros e lindos. Caros, na Síria, era o preço médio de um hotel português. Baratos eram dados. Em Alepo fiquei no melhor que conheci em viagens deste género, no bairro arménio.
A cidadela de Alepo, um dos maiores e mais antigos castelos do mundo, domina a cidade no alto de uma colina. Isolada do resto, resistiu a invasões e ocupações. Tem uma pequena cidade lá dentro, com os seus banhos, os seus templos e as suas casas. Com construções do Século X antes de Cristo, a sua fortaleza foi erguida no século III a.C. As ruínas da cidadela estavam em reconstrução lenta e esperava-se que, com a sua vista sobre Alepo, viesse a ser um importante ponto de atração turística. Sofreu enormes danos durante esta guerra mas parece que reabriu portas no ano passado. Poderá viver mais mil anos.
Se em Damasco a diversidade religiosa já se sentia, em Alepo ela era muito presente. Alepo diz-se o mais antigo local habitado do Mundo e a sua história é uma história de conquistas, reconquistas, ocupações e guerras. Que continua. Mas também era uma cidade de convivência. O hotel em que fiquei era num bairro maioritariamente cristão, semelhante ao que existia na cidade velha de Damasco. No domingo, fui assistir à missa dos maronitas. Podia ser em qualquer cidade europeia, mas eram árabes que ali estavam.
Nos bairros cristãos de Damasco e Alepo os símbolos religiosos (crucifixos e imagens de Cristo) eram tão visíveis como os símbolos islâmicos no resto da cidade. Nos anos sessenta houve tensões com os cristãos (arménios, ortodoxos gregos, maronitas e católicos latinos) mas os problemas não eram visíveis para um visitante. Havia ainda drusos, xiitas e alauitas, para além da maioria sunita. Tudo numa convivência relativamente pacífica.
O melhor desta viagem estava ainda para vir: o souq de Alepo. Milenar, grande parte dele coberto por maravilhosos tetos de granito, com focos de luz fortíssimos a vir da superfície. Ao contrário de outras cidades árabes, tudo é mesmo comprado no souq. O calor, naquela cidade subterrânea repleta de lojas, por vezes tornava-se insuportável. Mas havia sempre um oásis num pátio aberto, onde menos se esperava. O labirinto de ruas e galerias e pátios tornava quase impossível a orientação. Tudo isto, do que consegui perceber das imagens de drone que vi, desapareceu. Milhares de anos depois, para sempre.
No souq há os khan, expressão persa para os caravenserais. Eram espaços de estadia para os viajantes e para as delegações e embaixadas estrangeiras. Uma espécie de hotéis. Antes da guerra funcionavam como galerias comerciais. Eram muitos. Uns magníficos, outros já com construção no meio a esconder o seu encanto. E havia as oficinas. Oficinas de tudo. A cidade árabe não pára. Trabalha sempre, conversa sempre, vende sempre, come sempre. A qualquer hora Alepo oferecia animação.
Depois de entrar na principal mesquita de Alepo (uma irmã mais pequena da deslumbrante Mesquita dos Omíadas de Damasco, património mundial da UNESCO e o quarto lugar mais sagrado para os muçulmanos, que penso ainda estar intacta e podem ver na foto em baixo) entrei, quase sem querer, numa antiga madraça (escola). O diretor “civil” da mesquita estava lá e recebeu-me. Ali já houve uma Igreja cristã que sobreviveu à hegemonia islâmica. Depois dos cruzados e da violência acabou por ser arrasada. A versão de Mustafah era mais benigna para os muçulmanos do que a que conheço. Seja como for, recebeu-me e conversámos. Almocei ali, com ele e outros amigos. Conversámos sobre religião e ele, julgando-me cristão, tentou explicar como o Islão e o Cristianismo são parentes próximos. Mas o assunto principal foi, claro, o de sempre: a situação no Líbano. E o que ele queria compreender era o silêncio da Europa. Não lhe dei nenhuma explicação satisfatória. Mustafah foi, provavelmente, das pessoas mais simpáticas que conheci na Síria. Espero que ainda esteja vivo e longe de perigo. Porque a Grande Mesquita de Alepo, onde o conheci, foi seriamente danificada e o seu minarete reduzido a escombros, há cinco anos. As camadas de história e destruição continuam.
Confesso que não me entrego à nostalgia quando vejo as imagens de ruínas na televisão. Não consigo identificar os lugares por onde andei, onde dormi, onde comi, numa das mais maravilhosas viagens de uma vida razoavelmente viajada. A televisão tem a capacidade de tornar tudo irreal. Acredito que voltarei a Alepo e, numa noite quente de julho, me sentarei naquela minúscula esplanada numa rua estreita e empedrada do bairro arménio. A cidade extraordinária que sobreviveu a milénios de ódios humanos há de reerguer-se. Assim como Damasco, hoje transformada em matadouro.
A guerra é um lugar distante, mesmo quando se conhecem os lugares, as pessoas, os quotidianos. Mesmo quando se jantou e passeou e conversou em ruas que hoje não têm forma, quando se fumou narguilé e se falou sem pressa de vidas sem pressa com homens que nem sabemos se estão vivos – se o estão, serão seguramente outros. Poderia dizer que a memória que tenho da paz naqueles lugares torna a guerra mais palpável para mim porque dá rosto às suas vítimas. Mas é mentira. Nada liga o que está na minha memória da Síria àqueles escombros. Nada nos prepara para perceber a guerra se nunca a vivemos.