Opinião
Bruno Vieira Amaral, escritor
As bombas que caem sobre nós

A conversa vai longa. Sentado à minha frente, com toda a serenidade, o homem diz: “Não há crimes de guerra”. Protesto. Um protesto humanitário, carregado de boas intenções, ingénuo. Ele não levanta a voz, mas também não corrige a afirmação. Insiste, antepondo o meu nome: “Bruno, não há crimes de guerra”. Não há? Vejo um mar vermelho a correr pelas ruas de Ghouta. Vejo uma menina de rosto manchado de sangue. Vejo os cadáveres, os destroços, as ruínas, os mortos-vivos cobertos de pó. Não há crimes de guerra?
Em 1946, o escritor sueco Stig Dagerman escreveu sobre crimes de guerra em tempos de paz. Em visita a uma Alemanha devastada, em ruínas, repleta de seres humanos famintos, lívidos como peixes, a viver em caves frias como grutas, fez o relato desse país e dessa gente por quem era difícil sentir compaixão. Afinal, estavam a pagar pelos crimes cometidos pelo nazismo, de que eram considerados cúmplices, por ação ou omissão. Pagavam com a fome e a miséria individual os desmandos de um regime de loucos, sofriam eles a ressaca da embriaguez de destruição que tomara conta de Hitler e dos seus acólitos. Albert Speer, o arquiteto do Reich, contou como, em 1940, num jantar, Hitler falou dos seus planos para Londres: “Alguma vez olharam para um mapa de Londres? Está construída de forma tão acanhada que um só foco de incêndio destruiria a cidade inteira […]. Göring quer, por meio de inúmeras bombas incendiárias com um efeito inteiramente novo, lançadas nos mais diversos bairros de Londres, criar focos de incêndio, focos de incêndio por todo o lado. Milhares deles. Estes unir-se-ão, depois, para formar um fogo extenso gigantesco.” Porém, os aliados resistiram e retaliaram. Como afirmou Elias Canetti, “aquilo que ele [Hitler] tinha planeado para Londres, e que aí fracassou, tornou-se realidade nas cidades alemãs”.
Repare-se na descrição do historiador inglês Alistair Parker, citado por Júlio Henriques no prefácio a Outono Alemão, da destruição de Hamburgo pela Royal Air Force: “A 27 de Julho, de manhã cedo, um duche de bombas incendiárias ateou fogos no centro da cidade de Hamburgo, que se transformou num impressionante forno de destruição. As temperaturas atingiram os mil graus centígrados. Este inferno causado pela mão do homem aspirou ventos com uma força ciclónica que juntaram os diversos fogos e os transformaram numa tempestade de fogo que cobriu mais de quinze quilómetros quadrados. A falta de oxigénio sufocou os ocupantes dos abrigos, antes de o fogo os cremar. Entre 40 mil a 50 mil pessoas morreram em Hamburgo durante esses dias”.
Crime de guerra ou justa retribuição? Bem podia Stig Dagerman argumentar que a imposição do sofrimento aos alemães era errada “visto a miséria dos alemães ser coletiva , ao passo que, apesar de tudo, as suas atrocidades não o eram” e que, além disso, “a fome e o frio não figuravam na escala das penas previstas pela justiça dos homens”. No clima moral dos vencedores imperava a ideia de uma retribuição justa pelos pecados cometidos pela Alemanha nazi. Questionado sobre a demorada reabilitação das estações de Hamburgo, um militar inglês perguntava por que razão haveria de se reconstruir em três anos o que se poderia reconstruir em trinta. Até Hannah Arendt, muito clara na condenação do recurso à bomba atómica, justificou moralmente a destruição das cidades alemãs e a matança de milhares de civis com os planos e os ataques da Luftwaffe contra, entre outras, as cidades inglesas: “enquanto o bombardeamento de cidades alemãs tinha sido provocado pelo inimigo, pelos bombardeamentos de Londres, de Coventry e de Roterdão, o mesmo não pode dizer-se da utilização de uma arma inteiramente nova, com um poder de destruição devastador, cuja existência poderia ter sido anunciada, ou mesmo demonstrada, de muitas outras formas”.
Haverá crimes de guerra mais criminosos do que outros? Nos últimos dias, morreram mais de 700 civis na Síria, nos arredores de Damasco. Os russos, que apoiam o regime de Bashar Al-Assad, afirmam que estão apenas numa luta contra os terroristas. Mas há notícias de uma verdadeira campanha de terror para liquidar de vez a oposição, da utilização de armas químicas, de mulheres que pagam com o corpo o acesso a ajuda humanitária. É natural que o sofrimento passe para segundo plano. É apenas mais uma variável da equação política, e decerto não a mais importante. Que interessa o sofrimento quando já não é exceção, mas a regra? Aos que sofrem e a nós, que assistimos?
Como poderemos reconhecer a dignidade de cada uma das centenas de cadáveres que se confundem com os escombros?
O primeiro grande confronto da Guerra Civil norte-americana foi a Batalha de Antietam, a 17 de outubro de 1862. Num só dia morreram mais de 22 mil homens. Um mês depois, as fotografias da batalha foram exibidas em Nova Iorque. No New York Times escreveu-se: “O tropel de seres vivos na Broadway pouco se importa talvez com os Mortos de Antietam, mas imaginamos que haveriam de se acotovelar menos indiferentemente ao calcorrear a grande avenida, deambular menos displicente, se houvesse alguns corpos gotejantes de sangue, recém-chegados do campo de batalha, estendidos no pavimento. […] Os mortos dos campos de batalha raramente vêm ter connosco, mesmo em sonhos. Lemos a lista no matutino ao pequeno-almoço, mas apagamos a lembrança com o café”. (citado por Susan Sontag em Olhando o Sofrimento dos Outros.)
Ninguém pode ignorar um cadáver no meio de um centro comercial de uma das nossas cidades, nem sequer os corpos varados de balas nas esplanadas perto do Canal Saint-Martin. Mas como poderemos reconhecer a dignidade de cada um das centenas de cadáveres que se confundem com os escombros? Como isolar o sofrimento de um só homem, de uma só mulher, de uma só criança, da densa e impenetrável teia coletiva de sofrimentos e dessa forma entender cada dor como sendo única, a dor de um único ser humano? Como dignificar e honrar esse sofrimento sem cair em abstrações tão essenciais ao raciocínio como inúteis para a ação, como “Síria” ou “povo sírio”? Valerá alguma coisa encarar a menina de Ghouta que nos olha sem nos ver? Valerá alguma coisa saber o nome dela? Conseguiremos assim dar um rosto ao sofrimento? Será maior o nosso incómodo? Quanto tempo durará?
Stig Dagerman dizia que não se podia exigir lucidez moral aos alemães que sofriam com o frio e a fome. Apelar à empatia de quem estava a sofrer recordando, por exemplo, os bombardeamentos da força aérea alemã sobre as cidades inglesas era uma tarefa inútil: “não era lá que estavam os alemães. […] convém não esquecer que os sofrimentos sentidos na própria carne embotam a recetividade que se pode ter em relação aos dos outros”. Um exemplo desse fenómeno foi relatado por Canetti, citando o diário de um sobrevivente de Hiroxima: “Poucos dias depois, vem um homem de uma outra localidade e relata como absolutamente certo – ele tem-no da fonte mais fidedigna – que os Japoneses retaliaram com a mesma arma e não uma, não, mas várias cidades da América foram devastadas do mesmo modo. O ambiente do hospital muda instantaneamente, um entusiasmo apodera-se mesmo dos feridos graves. Volta-se a ser massa e julga-se que, por se desviar assim a morte, se está a salvo dela” (ênfase nossa).
Se as vítimas têm a sensibilidade embotada pelo próprio sofrimento, nós, meros espectadores, temos a sensibilidade embotada pela distância, pela sobre-exposição às tragédias, pelo nosso próprio egoísmo, pela ausência de cadáveres nas nossas ruas. Quando se diz que o que está a acontecer na Síria é uma derrota moral para a Europa, não se está a condenar apenas as instituições europeias, os políticos. A derrota é nossa. Não devemos esquecer que o que está a acontecer em Ghouta está a acontecer aqui, que as bombas que não têm poupado hospitais e clínicas, crianças e velhos estão a cair sobre nós, mesmo que, como os feridos de Hiroxima, nos julguemos ilusoriamente a salvo da morte ou que, a exemplo dos alemães, pensemos que a destruição de cidades longínquas nada tem que ver connosco só porque não estamos lá. Podemos ainda não sentir os seus efeitos, mas aquelas bombas já nos estão a destruir.
“Bruno, não há crimes de guerra”, diz o homem que, ao contrário de mim, conheceu a guerra, negociou com a morte. Penso então na menina de Ghouta e quando ele já não me pode ouvir digo: “Sim, meu velho, há crimes de guerra”.