30 minutos de luz e o resto de escuridão

FOTO ABDULMONAM EASSA/AFP/GETTY IMAGES

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A distância que separa a região de Ghouta Oriental de Damasco, capital da Síria, é quase a mesma que separa o Cais do Sodré do Parque das Nações, em Lisboa. Na capital, a vida segue a normalidade possível mas ali a vida passou para debaixo do solo. Em caves húmidas, escuras e poeirentas vivem às vezes mais de 20 famílias que nas poucas horas em que as bombas e os tiros cessam tentam encontrar combustível, comida e agasalho nos escombros das casas dos vizinhos, irreconhecíveis após quatro anos de cerco. O regime de Bashar al-Assad, com a ajuda da Rússia e do Irão, está a repetir em Ghouta Oriental o que já tinha feito em Alepo e se a História nos ensina alguma coisa é que não há idealismo que resista à imagem de vermos os nossos a passar fome

Texto Ana França, Helena Bento e Marta Gonçalves Infografia Jaime Figueiredo

Hassan Tabajo, voluntário de uma organização que presta assistência à população, decidiu confiar nas tréguas anunciadas recentemente pelo governo russo para sair do abrigo subterrâneo onde vive atualmente e ir a casa, em Douma, em Ghouta Oriental. Saiu com a mãe porque também ela queria respirar um pouco, caminhar e esticar as pernas, sentir o calor do sol a bater na cara. Embora sejam atualmente o único lugar seguro da região cercada, fora do alcance das bombas, os abrigos subterrâneos estão longe de poderem ser considerados uma casa. Os que ali vivem, e que são atualmente a maioria da população de Ghouta Oriental (cerca de 400 mil pessoas), usam quase sempre as mesmas palavras para os descrever - frios, escuros e pequenos para tanta gente.

No momento em que Hassan Tabajo preparava um café, um avião passou rasteiro a sua casa, tão próximo que o telhado abanou. Ele e a mãe correram de imediato para o abrigo. O café ficou em cima da mesa, na cozinha, a fumegar. Um testemunho é um testemunho e não serve de prova, mas aquilo que Hassan nos diz não é diferente do que têm dito civis, ativistas, fotógrafos e médicos que ainda vivem em Ghouta Oriental, região controlada por forças rebeldes e grupos terroristas e cercada pelas tropas do regime do presidente sírio Bashar al-Assad e seus aliados desde 2013. Embora a Rússia tenha concordado terça-feira impor um cessar-fogo de cinco horas diárias (entre as 9h e as 14h) para que os civis com necessidades médicas mais urgentes pudessem ser retirados e ajuda humanitária conduzida até ao centro do conflito, os bombardeamentos continuaram. “Os aviões e os mísseis não pararam. Continuo a ouvir o barulho de ataques. Ontem [terça-feira], o regime lançou um ataque contra Al-Shefoniya e as famílias foram forçadas a fugir. Vieram para Douma.”

Como sempre numa guerra, e na da Síria em particular, que dura há já sete anos, as forças inimigas culpam-se entre si. Neste caso, os rebeldes acusaram o regime de ter violado o cessar-fogo, lançando bombas e balas de artilharia, e os russos, principais aliados de Damasco, acusaram os rebeldes de criar problemas ao bombardear o corredor humanitário por onde era suposto passarem os camiões de ajuda humanitária. Foi assim que, mais uma vez, nenhum alívio chegou ao meio milhão de pessoas cercadas em Ghouta Oriental. Hassan interrompe o relato e diz que tem de voltar para dentro do abrigo, está frio, e lá dentro vai perder a ligação à internet.

FOTO ABDULMONAM EASSA/AFP/GETTY IMAGES

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“O meu filho tem três anos e sofre de desnutrição. Pesa apenas 11 kg”, diz ao Expresso Maram Obaid, 24 anos, professor de inglês e tradutor no Damascus Media Center, uma plataforma de notícias pró-oposição, a partir de Saqba, cidade em Ghouta Oriental. Em mensagens que vão sendo entrecortadas por longos silêncios, silêncios que chegam a ocupar dias inteiros, devido às dificuldades de comunicação impostas pelo cerco, Maram Obaid descreve o que vê à sua volta: “Estamos a ser atingidos por todo o tipo de armas e mísseis, inclusive armas químicas proibidas internacionalmente, como bombas de napalm, fósforo e bombas de fragmentação [bombas que rebentam no ar e libertam uma série de explosivos que se espalham em todas as direções, matando de forma indiscriminada]”. Ao professor de inglês preocupa-o sobretudo as crianças. “A maioria das pessoas que estão a viver em abrigos e caves frios e escuros são crianças que não têm nada para comer. Estão esfomeadas e assustadas. Quase 40% delas estão mal nutridas e não têm medicamentos nem qualquer tipo de vitaminas. É isto que mais me magoa. As nossas crianças têm os mesmos direitos das outras crianças. Têm direito a uma vida segura e normal, sem guerra e fome.”

Eu não quero saber de mais nada, só quero que Deus me ajude a encontrar comida todos os dias para a minha família porque não posso perder mais ninguém

Kareem está também em Douma, vive na garagem subterrânea do seu prédio com 20 vizinhos. “Antes desta ofensiva recente havia rumores de que ela estava aí à porta e começamos a armazenar combustível, cereais, roupas, conservas, mas estamos há dez dias debaixo terra e já não há nada, nada para comer”, diz ao Expresso o professor do ensino secundário, durante a madrugada de quarta-feira. “Saio sempre antes de o sol nascer porque os bombardeamentos acalmam um pouco. Neste momento estou caminhar até a uma quinta de um amigo meu que ainda tem alguns vegetais para vender e não os vende a preços tão caros, mas já não tem farinha, não há pão. Eu, a minha mãe, a minha irmã e a minha filha de 16 meses comemos cenouras e alface e já só fazemos uma refeição por dia”, conta o professor de 44 anos, que no ano passado perdeu o pai no bombardeamento sobre um mercado de Douma. Nesse mesmo ano perdeu também uma filha de um mês, que nasceu com um buraco no coração e que morreu na fronteira entre Ghouta e o resto da Síria controlada pelo regime por não a deixarem passar com a sua mãe para receber assistência médica. “Eu não quero saber de mais nada, só quero que Deus me ajude a encontrar comida todos os dias para a minha família porque não posso perder mais ninguém.” Durante o caminho, Kareem vai descrevendo as ruas, as enormes pilhas de entulho e as ruas desertas. “A maioria das famílias está um piso abaixo do solo mas é impossível saber se estão mortos ou vivos. Os bebés choram muito, muitas vezes os únicos sons que se ouvem quando os ataques cessam é esse”, conta. “Mais cedo ou mais tarde, o Exército vai entrar em força na cidade e toda a gente vai morrer. Nós sabemos o que aconteceu em Alepo e o que nunca chegou aos jornais. Todo o mundo árabe em silêncio, vocês em silêncio. Somos só humanos, se fôssemos animais alguém já nos tinha vindo defender”, diz o professor.

Número de mortos nas regiões mais afetadas pelo conflito

Número de mortos nas regiões mais afetadas pelo conflito

Ghouta Oriental é um dos últimos redutos na Síria ainda sob controlo das forças rebeldes - o outro é Idlib, província no noroeste do país. Recentemente, o regime intensificou os bombardeamentos na tentativa de fazer ruir o enclave oposicionista, levando a população a descer a abrigos subterrâneos para se proteger. Mas as condições em que ali se vive estão vários patamares abaixo daquilo que seria considerado suficiente, explica Hassan Tabajo, cuja organização de que é voluntário tem-se esforçado por melhorar as condições do espaço. “Em 80% dos abrigos não estão garantidas as condições básicas de vida. Não há água, eletrodomésticos nem aquecedores, tão necessários tendo em conta o frio que aqui faz. A higiene também é um problema. Tudo depende do esforço individual. Muitas pessoas estão a trazer tudo o que têm em casa para os abrigos. Quanto a nós, cabe-nos fornecer todo o tipo de serviços, desde água e comida, e ajudar a carregar os telemóveis.”

FOTO HAMZA AL-AJWEH/GETTY IMAGES

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Há ajuda a chegar à população, dada exclusivamente por grupos locais, mas isso não é suficiente, diz Hassan Tabajo. “Os grupos humanitários só conseguem chegar a 20% da população. A maioria das famílias perdeu as suas casas e por isso nem sequer pode ir buscar alguma comida que estava ali guardada. Muitas famílias sobrevivem apenas a pão. E há pessoas que comem uma refeição apenas de 48 em 48 horas. Tal como Maram Obaid, também Hassan Tabajo sublinha o impacto que tudo isto tem sobre as crianças. “A falta de comida e de água, e também de espaços para brincar, é terrível. Estamos a tentar dar apoio psicológico às crianças.”

O massacre na “mercearia” da capital

De Ghouta Oriental a Damasco, capital da Síria, onde os cafés estão cheios e as ruas calmas, são menos de 15 quilómetros de distância. A distância que fica entre as quase 400 mil pessoas cercadas no leste da região de Ghouta e o acesso a cuidados médicos, alimentos e água é quase a mesma que separa o Cais do Sodré do Parque das Nações. As poucas imagens que nos chegam dos poucos meios de comunicação social autorizados a entrar na Síria parecem mostrar dois países a muitos milhares de quilómetros um do outro. Mas não é assim. A capital síria, que nunca chegou a ser tomada pelos rebeldes desde que a guerra contra a dinastia da família al-Assad começou há sete anos, contrasta com o leste de Ghouta, onde os bombardeamentos incessantes - quer por parte das forças militares do regime do presidente Bashar al-Assad, quer pelos seus aliados russos e iranianos - mataram mais de 550 pessoas em menos de oito dias.

O medo que sinto quando ouço o som de um avião a rasgar o céu é complemente indescritível

Antes de tudo isto acontecer, Ghouta Oriental era considerada a “mercearia” da capital, porque dali chegava a maioria da produção agrícola que abastecia Damasco. A fertilidade dos solos ajuda a explicar porque é que a crise humana só agora se está a fazer sentir com mais intensidade: durante algum tempo, as famílias em cidades como Douma, Mesraba e Harasta foram capazes de produzir a sua própria comida, plantar legumes, fazer pão. Mas com o intensificar dos ataques, tanto rebeldes como governo têm utilizado a escassez de comida, combustível e medicamentos para lucrarem com a sua venda à população desesperada e a preços proibitivos. A teia de túneis subterrâneos na quase exangue zona síria ajudava a que alguma coisa chegasse às pessoas mas, na primavera, as forças do regime tomaram controlo dos túneis e o que já era provação tornou-se tormento. A comida falta, a água falta, os médicos já estão a usar medicamentos fora do prazo para aliviar algumas das dores mais leves mas não há anestesias, eletricidade ou muitas vez lugar para operar quem realmente precisa de intervenções urgentes.

“A alimentação é à base de vegetais e uma refeição custa em média 13 dólares [pouco mais de dez euros]. Uma grande parte das pessoas consegue fazer pelo menos uma refeição por dia, outras, as mais pobres, comem um vez a cada 48 horas”, explica ao Expresso Hamza Al-Ajweh, 23 anos, nascido em Douma, em Ghouta Oriental. O dia de trabalho do fotógrafo resume-se a cerca de 30 minutos. Normalmente, é esse o mais longo intervalo de tempo sem bombas. “Olho para a minha casa, que foi completamente destruída pelos ataques aéreos. Naqueles minutos, aproveito para tirar o máximo de fotos que consigo.” Sete aviões sobrevoam a cidade Douma enquanto fala connosco. Nas ruas, diz ver “pouco mais do que destruição e corpos estendidos sem vida”. “As poucas pessoas que saem dos abrigos é para procurar comida. Os mísseis caem como chuva, os aviões passam constantemente. O medo que sinto quando ouço o som de um avião a rasgar o céu é complementa indescritível. Aqui só há bombardeamentos, destruição, sangue e gritos.” Também Hamza Al-Ajweh vive neste momento num abrigo, tal como praticamente todas as pessoas da cidade, num “estado de completamente terror”.

FOTO HAMZA AL-AJWEH/AFP/GETTY IMAGES

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A ONU tenta há mais de oito meses retirar 500 civis com doenças graves de Ghouta Oriental mas o governo, segundo o organismo internacional, tem-se recusado a deixá-los passar para áreas por si controladas. Destas pessoas, a ONU refere que 22 já morreram devido à falta de assistência médica. Em novembro, a ONU conseguiu que cinco dos camiões de ajuda chegassem às áreas afetadas mas, como escreve Mark Lowcock, coordenador dos esforços de ajuda humanitária da ONU, numa carta ao presidente sírio, datada de 19 de dezembro, “a ajuda só chegou a cerca de 200 mil das 400 mil sob cerco”. Em dezembro, continua Lowcock, “nenhum - nenhum - dos nossos camiões entrou nas áreas afetadas”. A 14 de fevereiro, a ONU conseguiu fazer chegar comida a 7000 pessoas. Sete mil. Tudo o que chega é insuficiente e a conta-gotas. “Precisamos que o conflito cesse com urgência para podermos entrar com ajuda”, disse no Twitter Jakob Kern, diretor do programa de ajuda alimentar da ONU para a Síria.

Esta é apenas uma dos milhares de vozes que todos os dias, nas redes sociais, pedem que a Rússia e os Estados Unidos usem a sua influência para convencer ambas as fações a pararem. A última personalidade influente a falar sobre o assunto foi o ministro dos Negócios Estrangeiros francês: “A Rússia é um dos poucos atores com poder para pedir ao regime que implemente a resolução”, disse Jean-Yves Le Drian ao seu homólogo russo, Sergei Lavrov, em Moscovo, referindo-se à decisão da ONU em impor 30 dias de tréguas. Já Portugal defende que a solução para a Síria passa pela “ negociação política no formato de Genebra”, ou seja, através de conversas entre o regime sírio e a oposição, com mediação das Nações Unidas. “Não há alternativa”, afirma ao Expresso Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros. O processo de Genebra arrancou em 2016, mas à parte algumas resoluções, nenhuma grande cedência foi ainda feita pelas partes envolvidas. Santos Silva sublinha as “repetidas violações” do acordo de cessar-fogo e também das leis da guerra, lamentando ainda “a utilização sistemática de escudos humanos, os bombardeamentos indiscriminados em áreas residenciais, escolas, hospitais”. “A lista de horrores é infindável.”

O drama de Ghouta Oriental é semelhante ao que se viveu no leste de Alepo, região que esteve controlada pelos rebeldes até ser reconquistada em finais de 2016 pelo regime sírio, depois de um cerco que durou quatro anos - um dos mais longos na História moderna - e que também deixou a população sem comida e à mercê de ataques diários, inclusive com armas químicas, cujo uso foi recentemente confirmado pelos especialistas das Nações Unidas. Na altura, muitos civis, jornalistas locais e ativistas pró-oposição abandonaram a região e dirigiram-se para Idlib, a cerca de 65 quilómetros de distância. Em Ghouta, no entanto, a possibilidade de uma saída é completamente diferente. Segundo os opositores do regime, sair de Ghouta pela “fronteira” de al-Wafideen, que liga esta zona ao resto da Síria controlada pelo governo, é impossível devido aos constantes bombardeamentos das forças pró-Assad e dos atiradores furtivos que estão perto da passagem. Mas também há acusações contra os rebeldes. Antes de o governo ter intensificado o cerco, foi permitida a passagem a homens com mais de 40 anos e a funcionários públicos mas um membro da organização não-governamental Reach Initiative, que monitoriza a situação humanitária na zona, disse à BBC que crianças e mulheres foram impedidas de sair pelos rebeldes, que terão alegado preocupações com a sua segurança.

FOTO MOUNEB ABU TAIM/ANADOLY AGENCY/GETTY IMAGES

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No caso de Nour Adam, jornalista e fotógrafo do Damascus Media Center, que vive em Ein Tharma, abandonar a região não é sequer uma hipótese. “Depois de o regime ter destruído as nossas casas e assassinado a população, seria uma humilhação para nós abandonar agora Ghouta, que é a nossa casa, a nossa terra. Além disso, iríamos para onde? Se formos embora, vamos morrer mais do que já morremos aqui. E aqui já morremos a dobrar, por causa das bombas e da falta de comida.” Nour Adam confia que as forças rebeldes, entre as quais o Exército Livre da Síria, diretamente ligado a um dos grupos oposicionistas que controlam a região cercada, vão proteger a população. “Acreditamos neles, acreditamos que vão proteger e lutar por nós enquanto puderem. E nós também vamos lutar enquanto pudermos, independentemente do que isso nos custe.”

Não é uma guerra, é um massacre, é um cerco, e há vozes, como a de Simon Tisdall, editor do diário britânico “The Guardian”, que dizem que Ghouta Oriental está a caminho de se transformar “uma segunda Srebrenica”. Em Srebrenica morreram em 15 dias mais de 8.000 muçulmanos às mãos de Ratko Mladic. Tal como em Srebrenica, o fornecimento de alimentos e assistência médica em Ghouta Oriental foi cortado. Em 1993, a ONU tinha declarado o enclave muçulmano “área segura”, no ano passado também Ghouta Oriental foi declarada “zona de apaziguamento” pelos russos. Apaziguamento? Parece cruel esta classificação, num sítio onde nem um cessar-fogo de cinco horas, decretado por Putin como compensação por ter sido a Rússia a violar o cessar-fogo de 30 dias que ONU queria, consegue ser respeitado.