VERÃO DOIS GELADOS DE CONVERSA

Isa Gomes Professora

“Não dou aulas, ajudo os miúdos a quererem saber mais”

Transformou-se na professora mais conhecida do país ao dar a primeira aula da nova telescola, na manhã de 20 de abril, vista por mais de 400 mil pessoas. As lições de Português de Isa Gomes, professora do 1º ciclo no Colégio Corte Real, na Moita, bateram recordes de audiências e tiveram êxito junto dos mais novos. Nas redes sociais apontaram-lhe o uso excessivo do “OK” no final das frases, mas também a eficácia com que conseguiu chegar aos miúdos do outro lado do ecrã. Haverá um regresso da professora Isa à TV?

Texto Bernardo Mendonça Foto Ana Baião

Nessa tarde, a professora Isa Gomes veio de barco do Barreiro, para aproveitar o sol. E na sessão fotográfica entusiasmou-se de tal forma com a poesia do cenário deserto de gente no Cais das Colunas, em Lisboa, que deixou os sapatos para trás para tentar novos enquadramentos e refrescar os pés no Tejo. Um momento tão refrescante quanto os sabores escolhidos: framboesa e chocolate vegan [sem açúcar e sem leite]. “Escolhi framboesa pela cor. Juntei-lhe o gelado de cacau porque não é tão doce. Até sou mais de petiscos salgados. Aliás, esta rubrica deveria chamar-se ‘Dois copos de vinho tinto... de conversa’. Do Douro. Com um queijinho. É uma ideia.” Fica a dica da professora Isa, que deixa claro que só voltaria a ser um dos rostos do “Estudo em Casa” com melhores condições: mais dinheiro e mais tempo. OK?

Como recorda a experiência de subitamente estar a dar uma aula para a televisão, rodeada de câmaras, num cenário vazio de alunos?

Foi duro. E tudo muito rápido. Estava muito nervosa. Tivemos de nos preparar em menos de duas semanas. Tratava-se de uma coisa nova, um ambiente que nada tinha a ver com uma sala de aulas. Muito estéril nesse sentido. Não tinha os miúdos. Só pensei em como é que ia comunicar com eles do outro lado. O que fiz foi imaginar que estava com os meus miúdos na sala. Não pensei muito no resto. Na verdade, só na segunda semana de gravações é que foi para o ar a primeira emissão da aula. E nesse dia o telefone não parou, foi uma maluquice. Mas acho que consegui sobreviver àqueles 30 minutos de estreia. Há aquela questão do “OK”... Toda a gente falou disso.

Os comentários incomodaram-na?

Sinceramente, não. Eu própria tive essa consciência depois de gravar o primeiro episódio. E eu que não sou nada de redes sociais fechei-me um bocadinho ao Facebook e Instagram para me proteger. Mas não levei a mal. Encarei mais como brincadeira. Algumas pessoas minhas conhecidas também me enviaram comentários. Chegaram a fazer ‘tik-toks’ comigo a dizer “OK” [risos].

Essa foi a aula mais difícil da sua vida?

Não. Era a primeira vez, não tinha a consciência do que ia acontecer. Fi-lo com alguma ingenuidade, e talvez isso tenha dado a genuinidade que se queria ao momento. Não fui para estúdio tentar ser a Isa da televisão ou outra coisa qualquer. Quis continuar a ser a professora que sou todos os dias na minha sala de aulas. Só mais para a frente, pelo cansaço de ter de gravar 19 aulas, é que uma ou outra gravação foi mais difícil. Porque tudo o resto na minha vida continuava: a Isa mãe do Xavier de 3 anos, a Isa professora dos 17 alunos ‘Pintassilgos’ [nome da sua turma de crianças de 7 anos], a Isa mulher, namorada, filha, irmã, amiga... E a Isa aluna, porque além de tudo isso estou a estudar, a tirar uma pós-graduação em “Livro Infantil”. E tudo junto foi cansativo.

A verdade é que passou a rivalizar nas audiências com a CMTV e o “Programa da Cristina”, na SIC. No dia de estreia liderou as manhãs e, no momento em que atingiu o maior share, mais de 400 mil telespectadores estiveram a ver. Percebeu logo o impacto?

Percebi. Recebi imensas mensagens, e-mails e áudios de pessoas que não conhecia. Quiseram dar-me um bocadinho de força. Em geral, o feedback foi muito positivo. Não sinto que os comentários negativos se tenham sobreposto aos positivos. E tendo em conta as características do projeto e o tempo de preparação que tivemos, a resposta foi válida. E saiu do esforço e sentido de missão de muitos professores. Eu dei a cara, mas o trabalho que está por detrás foi feito por um grupo de professores. Julgo que a grande audiência teve a ver com a curiosidade que as pessoas tinham com aquela primeira aula, como ia ser gravada. Era a expectativa.

Limpou do discurso os tais “OK”?

Esforcei-me para isso. Gosto sempre de melhorar. E não só o uso excessivo dos “OK” como o passar a olhar mais para a câmara, o ritmo. Na televisão tinha de falar mais devagar, porque os miúdos precisam de tempo para processar a informação. Mas não havendo interação é muito difícil, porque não tinha os miúdos a reagir na hora, a olhar para mim, não lhes ia lendo as carinhas, não os tinha a fazer perguntas. Inevitavelmente, imaginava o que os meus alunos diriam perante aquela situação. E, às vezes, ia vendo como os operadores de câmara iam reagindo. Eles chegaram a responder às minhas questões [risos].

Chegaram a fazer ‘tik-toks’ comigo a dizer ‘Ok’. Não levei a mal

O ensino do primeiro ciclo ainda está muito formatado?

Sinto que sim. Ainda há muito para mudar. É preciso ver e ouvir os miúdos, trabalhar mais a partir dos contributos e expectativas que eles têm. Melhorar as metodologias de trabalho nas aulas. Acho que o que faz a diferença são as equipas, as pessoas que estão nas escolas. Às vezes, associa-se o trabalho mais difícil a contextos difíceis. Mas já passei por contextos bastante difíceis enquanto professora e foram dos sítios onde mais gostei de trabalhar e onde mais cresci.

Que sugestões tem de melhoria?

A questão de a leitura e a escrita não estar tão dependente de um manual. E ir mais ao encontro daquilo que dizem os miúdos, os relatos orais, o que são as suas próprias conceções. Se se perguntar a uma criança de 6 ou 5 anos o que quer aprender, ela vai dizer que quer aprender a ler e a escrever. E se se perguntar para quê, vai dizer coisas supergiras, como para “escrever uma carta”, “ler um livro”, “tirar a carta [de condução]” ou “ler histórias à minha irmã”. Uma vez, uma miúda disse-me que queria aprender a escrever recados para a mãe.

As medidas tomadas pelo Governo no último período do ano letivo foram um penso rápido?

Foram uma resposta válida. Acho que o Ministério [da Educação] teve pouco tempo para construir uma resposta. Estando dentro do projeto, pude sentir a verdadeira intenção. Que era dar resposta a esses miúdos e essas famílias que não tinham escola e cujo contacto era mais difícil. A resposta foi de coração. Foi a que se conseguiu dar, e foi válida.

O que se poderia melhorar no “Estudo em Casa”?

A questão do tempo. Nós não tivemos muito tempo para preparar os materiais e os professores que estiveram a dinamizar o “Estudo em Casa” tiveram de continuar com os seus alunos. Foi muito difícil, um esforço muito, muito grande. Mas foi uma aposta ganha. Correu bem. Conseguimos chegar aos miúdos.

Aceitaria apresentar uma nova temporada do “Estudo em Casa”?

Nem pensar. Acho que já tive a minha dose. Se isso acontecesse, teria de ser em moldes completamente diferentes, com outro tempo para me dedicar a um projeto dessa natureza, que neste momento não tenho. Não poderia continuar com a minha turma enquanto dava resposta a um projeto destes.

Não sou leitora. Nunca fui muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los

Mas diz um não categórico à TV?

Não, não vou dizer ‘nunca mais vou fazer isto’, se surgir... não sei, temos de ver.

Se pagarem bem...

[risos] Não tinha pensado nessa parte. Isso compensaria alguma coisa.

Como será o professor do futuro?

Ao contrário do que se possa pensar, o professor do futuro não pode ser extremamente tecnológico. Tem de conseguir chegar aos miúdos. E isso não pode ser só através da tecnologia, mas também através da empatia, da relação. Porque, se não houver relação e confiança, não há aprendizagem. Isso é a mais-valia da escola. Um professor do futuro é um professor mais livre, sem receitas. E tem de ser alguém que fala menos e ouve mais, que dá mais espaço aos alunos para falar. Não é fácil. O nosso trabalho não é das 9h às 17h. O trabalho do professor é, às vezes, acordar a meio da noite com uma ideia e escrever no papel o que irá fazer com aquele determinado aluno. Já me aconteceu várias vezes...

Além de dar aulas e ensinar, tem outros talentos?

Não gosto da expressão “dar aulas e ensinar”. Eu não dou aulas, ajudo os miúdos a quererem aprender, a quererem saber mais... É um paradigma de aprendizagem e não de ensino. É diferente. Talento? Gostar de acolher as pessoas na escola ou em casa. Mas não tenho jeito para cozinhar. Tenho mais jeito para comer.

O que é um dia ganho?

Um dia em que eu e o meu filho Xavier [de 3 anos] saímos de casa de manhã superbem, sem discussões. Em que ele está autónomo a vestir-se. Em que demoramos três minutos a chegar ao colégio, ele fica na escola onde eu trabalho. O dia corre bem. Conseguimos trabalhar em conjunto na sala. É um dia em que consigo chegar a algum aluno. Em que sinto que o trabalho foi produtivo, em que eles evoluíram nalguma coisa. Sem conflitos. E, se houver conflitos, que se consigam resolver. E um dia em que dá para chegar a casa e tomar um copo de vinho ao final do dia. Em família.

O que anda a ler?

Leituras? Não sou uma leitora. Nunca fui muito de ler livros, mas sempre adorei tê-los. Os livros infantis são muito importantes para mim, sempre gostei de os ter. Mas desde que o Xavier nasceu ganharam outra importância. Em casa, na pequena biblioteca que tenho, e na escola, passaram a ser um grande contributo para o meu trabalho. Estou a tentar ler os “Contos de Cães e Maus Lobos”, de Valter Hugo Mãe. Tenho de o terminar este verão.

Se pudesse convidar alguém que não conhece para um gelado, quem seria?

O professor António [Sampaio da] Nóvoa [professor catedrático e candidato independente nas presidenciais de 2016]. É inspirador. Gosto da forma como fala sobre a escola, a educação, a aprendizagem. É um poço de conhecimento. Seria uma conversa extraordinária.

Agradecimento à geladaria Fragoleto

Postais do Sul

Restauração começou em Olhão

Estamos em 1808 e Portugal está ocupado pelas tropas de Napoleão. Em abril desse ano, os invasores chegam a Olhão, na altura um lugar na costa algarvia onde viviam maiorita­riamente pescadores. Os homens do mar não receberam com agrado as regras (e em particular as taxas) que os franceses imediatamente aplicaram e, a 16 de junho, revoltam-se. Durante três dias há escaramuças entre olhanenses e militares, até que, a 19, a população de Faro se junta aos revoltosos. Seguem-se outras localidades algarvias e, a 23 de junho, as tropas francesas são definitivamente expulsas da região. Mas faltava avisar a corte, que fugira para o Brasil dois anos antes. A 6 de julho, 17 homens metem-se ao mar no caíque “Bom Sucesso” — uma pequena embarcação com cerca de 20 metros de comprimento e duas velas — e atravessam o oceano para, a 22 de setembro, chegarem ao Brasil e informarem o príncipe regente D. João do sucedido. Depois de os recompensar, o futuro rei D. João VI decide elevar Olhão a vila, passando a chamar-se ofi­cialmente Olhão da Restauração. Hoje em dia, uma réplica do caíque encontra-se ancorada em frente aos mercados de Olhão e o dia da cidade é celebrado a 16 de junho, data do início da revolta. João Mira Godinho