verão dois gelados de conversa

Afonso Reis Cabral Escritor

“Os meus romances partem da pulsão de contar o abismo, a falha do outro”

Afonso Reis Cabral foi duas vezes à Alemanha de camião TIR em busca de uma história, a primeira aos 13 anos. Mas foi a viagem a pé pela Estrada Nacional 2, de Chaves até Faro, que lhe valeu um sem-fim de histórias, publicadas no livro “Leva-me Contigo”. Autor dos premiados romances “O Meu Irmão” e “Pão de Açúcar”, Afonso já está a escrever o próximo livro e daqui a dois anos voltará a partir, desta vez na rota de Camões

Texto Bernardo Mendonça Foto Nuno Botelho

Acabado de chegar de Alqueva e prestes a começar as gravações de um documentário da autoria de Carlos Vaz Marques que inclui todos os vencedores do Prémio Saramago, Afonso Reis Cabral — distinguido em 2019 com o seu último romance, “Pão de Açúcar” — encontrou-se connosco no seu bairro, em Campo de Ourique (Lisboa). Dois cafés e dois gelados de conversa. Desta vez, o pistáchio junta-se ao morango. “Se um gelado de morango é bom, quer dizer que é uma boa geladaria. E este é bom. E pistáchio porque me faz lembrar umas férias em Itália, de mochila às costas, em que fiz o roteiro do gelado Grom, que me pareceu o melhor do mundo.” Começamos pelo sabor da sua última grande viagem.

No seu livro mais recente, “Leva-me Contigo”, conta a sua longa caminhada solitária pela Estrada Nacional 2, de Chaves até Faro. Quis descobrir o país enquanto se descobria melhor?

O meu propósito era fazer uma caminhada de Chaves até Faro, sozinho, numa espécie de exame de consciência ou ritual de passagem. Sei que já não tinha idade para rituais de passagem, mas queria que o esforço físico e a solidão fossem pretexto para um balanço. Da vida, dos livros, dessas coisas. Portanto, inicialmente, o olhar era mais íntimo e interior. Acontece que, apesar de ter estado sozinho a caminhar, os encontros com as pessoas eram o melhor pretexto para parar, descansar e descobrir novas histórias e novas pessoas. A descoberta dos outros passou a ser o mais importante. A isto aliou-se a descoberta da paisagem, do país de alto a baixo, do contacto com a natureza...

À medida que foi relatando a sua viagem nas redes sociais foi-se levantando uma onda de solidariedade por todo o país, que lhe deu cama, comida e amparo em cada paragem. O que descobriu sobre o país e os portugueses?

Uma enorme vontade de dar. Era como se falássemos todos a mesma língua, e nem era o português. Era algo que está para lá das palavras e que é difícil de traduzir. Mantemos ainda a ideia ancestral da hospitalidade, de abrirmos a porta a quem passa. E isso vive de uma certa inocência, da tal vontade de dar que não espera muito em troca mas que nos põe em carne viva. Ficamos vulneráveis ao outro. Talvez por isso muitas vezes nos ofendemos com facilidade. Eu sentia pudor em aceitar tanta generosidade, mas soube bem estar acompanhado na solidão.

Tal como escreveu no livro no final da jornada, como o explorador americano Richard Byrd pôde dizer sobre a estrada que leva ao mar: “Deixei lá o que me restava de juventude e presunção.”

O esforço de caminhar obrigava-me a pensar mais na gestão do corpo do que noutra coisa. É muito bonita a ideia do caminho interior, de “o caminho fazer-se caminhando”, como dizia Antonio Machado, e eu ouvi até à exaustão nesses dias, mas a verdade é que estive muito ocupado a conseguir mexer as pernas. No entanto, fui perdendo a presunção de depender só de mim, começar um dia sem saber onde ficaria à noite, confiar no acaso. E a caminhada pela Nacional 2, que tinha pensado como uma ida longa a pé para o mar, tornou-se mais uma caminhada para o desconhecido, confiando e dependendo de terceiros.

Essa viagem transformou-o?

Gosto muito da rotina e baseio-me nela para escrever. E sou muito ansioso e agitado por natureza. Durante a caminhada não podia contar com a rotina, e não há ansiedade possível ao andar 45 quilómetros por dia, como aconteceu nalgumas jornadas. O cansaço trata de acalmar. E lidar com o inusitado a cada etapa e ainda assim ter confiança no dia seguinte foi uma boa aprendizagem. Agora, tudo o que é novo ou transformador acaba por cair na rotina, não podemos estar sempre empolgados. Não sei até que ponto não precisaria de uma estrada de x em x anos para me pôr no sítio novamente.

Impressiona uma criança dizer a um desconhecido: ‘tira-me daqui’

Foram muitas as vezes que se emocionou nesta viagem, imagino. Recorda alguma que o tocou em especial?

Particularmente, o episódio que dá o título ao livro, que depois publiquei com as crónicas diárias da viagem. À saída do Torrão [freguesia do concelho de Alcácer do Sal], perto da Nacional 2, encontrei três rapazitos ciganos, romenos, de 8, 9 e 10 anos. Eles ficaram muito curiosos comigo e eu muito curioso com eles. Depois de perceber que não estavam sozinhos, porque a família deles estava mais à frente num descampado, fiz-lhes sinal de que ia continuar a caminhada. O mais novo, que mal falava português, na despedida conseguiu articular: “Leva-me contigo.” Esta frase acompanhou-me em toda a viagem. Impressiona, de certa maneira, uma criança dizer a um desconhecido: “Tira-me daqui.” Certamente não estava feliz.

Curioso ter escrito sobre tanta humanidade e generosidade no “Leva-me Contigo” quando acabava de publicar antes o romance “Pão de Açúcar”, que parte de uma história verídica que abalou o país: o assassínio da mulher transexual Gisberta, com contornos de horror e maldade. Somos capazes do melhor e do pior?

O “Leva-me Contigo” não foi um projeto literário, mas como durante essa viagem mantive um diário, [esse livro] partiu de uma pulsão de contar o dia a dia. Já os meus dois romances partem de outra pulsão, a de contar o abismo, a falha, a distância, a fronteira... O querer contar o outro por mais diferente que seja. E isso para mim tem sido até agora o mote para a literatura. Já com “O Meu Irmão” se passava assim, o narrador que se conta na primeira pessoa tem um irmão mais novo com síndrome de Down, e daí vem uma enorme cisão que implica momentos de definição do narrador. E também o Rafa, narrador do “Pão de Açúcar”, tem de se definir perante a Gisberta, que seria a pessoa que mais precisava de ajuda e mais desamparada estava e em relação à qual eles, personagens, mais tinham de se definir. Na minha escrita, vou em busca do outro, e do outro desamparado. E em ambos os meus romances a bondade está sempre paredes meias com a maldade. Há uma fronteira ténue. Os narradores até poderão pender no início para o lado das boas intenções, mas acabam sempre do outro lado da fronteira. É um pouco a nossa condição [humana]. Esta ambiguidade entre os dois lados da existência.

Descobri uma enorme vontade de dar que nos põe em carne viva

Qual é a sua busca?

Há temas que me interessam explorar e que se encontram nos meus livros, um deles é a inveja... “O Meu irmão”, muito mais do que um livro sobre a síndrome de Down, é um livro que aborda a inveja. E aí num cenário extremo. Como é que um irmão com uma vida bem estabelecida e corriqueira, como é o caso do narrador, consegue olhar para o irmão mais novo, que tem síndrome de Down, e invejá-lo pela sua felicidade, pela vida que conquistou à partida? Se forem acarinhadas e o seu dia a dia estiver salvaguardado, essas pessoas, até pela sua própria condição, em princípio têm uma capacidade de felicidade muito grande e, sobretudo, de inocência. Como é que se olha para pessoas assim e se sente inveja? Tentei responder a esta pergunta no livro “O Meu Irmão”. Foi como deixar a inveja à solta.

Acaba de falar de inveja, a última palavra de “Os Lusíadas”, de Camões, que é o escritor que está na base da sua próxima viagem e projeto, “O Novo Canto para ‘Os Lusíadas’”, que o levará a percorrer os lugares por onde andou o maior poeta da literatura portuguesa...

Sim. Esse projeto começaria em janeiro de 2021, mas por causa da pandemia teve de ser adiado para janeiro de 2022. Implica percorrer todos os caminhos de Camões, desde Ceuta até Goa e ilha de Moçambique, e desafiar várias pessoas, quer seja as mais destacadas, das ciências à literatura, quer seja outras que vá encontrando, a escreverem à mão as estrofes de “Os Lusíadas”. Uma estrofe por pessoa.

Tem lido nesta pandemia?

Quando começou a quarentena estive três semanas a um mês sem conseguir ler. Estava totalmente atento à atualidade, a minha cabeça era preenchida pelas notícias e pelos últimos desenvolvimentos da covid-19 e não conseguia ler. E a partir de determinado momento passei para o contrário. De tal maneira que li aproximadamente 30 livros em dois meses. Passei a uma voragem. A ler e a escrever.

Tenho falado com muita gente que me relatou que esta pandemia lhes perturbou a inspiração e a criatividade. Aconteceu consigo?

Passei muito mais a ler do que a escrever. E a escrever mais em revisões e reformulações. Este estado de coisas não ajuda à criação. Aliás, tenho visto muitos colegas meus escritores que estão intelectualmente esgotados. Senti muito isso. E também vi isso em mim em alguns pontos. Eu leio muito, mas não costumo ler 30 livros em dois meses. Essa voragem de leitura foi um escape. Mas isto para dizer que nesta fase também descobri outro tipo de leituras a que não estava tão atento, que são as novelas gráficas de grande qualidade literária. Por exemplo, a “Sabrina” de Nick Drnaso, que foi um dos finalistas do Man Booker [primeira novela gráfica nomeada para o Man Booker 2018]. Ou o “Maus”, do [cartoonista norte-americano] Art Spiegelman, a primeira novela gráfica a ganhar o Pulitzer [em 1992]. E muitos outros, como o “Watchmen” e “A Liga dos Cavalheiros Extraordinários”, de Alan Moore. Livros literariamente muito interessantes, que aliam a imagem à escrita de uma maneira espetacular. E que são sobretudo lições de como se conta uma história.

Qual é o melhor e o pior lado de ser escritor?

O melhor é sem dúvida a vida inte­rior que a escrita dá. Quando o livro está de vento em popa, a minha existência tem um sentido. O pior talvez seja alguns compromissos necessários de divulgação. Como a ideia de ser caixeiro viajante, que é hoje em dia necessário para a escrita, mas que muitas vezes é desgastante.

Se pudesse convidar alguém que não conhece para um gelado, quem seria?

Adorava conhecer a Maria João Pires. É o único génio que vive a duas horas de carro de Lisboa. E uma das minhas grandes ambições é ouvi-la tocar ao vivo os “Noturnos” de Chopin.

Agradecimento à Geladaria Giallo

Postais do Sul

A cidade perdida e a torre de origem desconhecida

No século I d.C., durante a ocupação romana, no Algarve, uma cidade rivalizava (há historiadores que dizem que suplantava) em dimensão e importância com Ossonoba (Faro). Tratava-se de Balsa, situada na Luz de Tavira, na área da Torre d’Aires, junto à ria Formosa. Incluía edifícios como um circo e termas e chegou a cunhar a própria moeda. Mas, com o tempo, entrou em declínio (nos séculos II e III), e hoje em dia poucos ou nenhuns sinais são visíveis desta urbe — depois de revelada por Eustáquio da Veiga, no século XIX, foi alvo de escavações em 1977, e no ano passado iniciou-se uma campanha arqueológica na zona, que está previsto que se prolongue até 2021. No local, o que existe atualmente, ligeiramente afastada para oeste do que se pensa ter sido o centro da cidade de Balsa, é a torre pela qual a área é conhecida. Com cerca de cinco metros de altura, com vista para a ria, a Torre d’Aires fez parte das fortificações construídas para proteger a costa. No entanto, não há consenso em relação à sua origem. Há quem diga que data do século VIII (ocupação árabe) e quem defenda que foi erigida na Idade Média. Aires Gonçalves, que dá o nome à torre, foi proprietário dos terrenos da zona já no século XVI. João Mira Godinho